Já a noite ia alta quando começámos a entrever a enorme tarja do Porto/Post/Doc, na Praça da Batalha. Evidenciada pelas luzes do belíssimo Batalha Centro de Cinema, anunciava, com toda a pompa, o arranque da 11ª edição deste festival da Invicta. Este ano marca o início de um programa que abarcará uma trilogia de edições do festival, até 2026, sob o mote “O Movimento dos Povos”. Com o foco no Velho Continente, o tomo de 2024 intitula-se “A Europa Não Existe, Eu Estive Lá” e dá nome a uma das secções. Nela, a organização afirma a morte do ideal de uma União Europeia e propõe, em sete filmes, a busca pelos valores humanistas que permitam sonhar uma nova utopia.
Divididas entre as salas do Batalha e a sala do Passos Manuel, há mais 20 secções a descobrir, dois fóruns de debate e duas Masterclasses (uma com a realizadora georgiana Salomé Jashi, a quem o festival dedica uma retrospectiva, a outra com a realizadora e ativista franco-tunisina Meryem-Bahia Arfaoui). Destacamos as 5 Competições (Internacional, Cinema Falado, Transmission, Cinema Novo e Working Class Heroes), A Cinemateca Ideal dos Subúrbios do Mundo e ainda a Secção Antes e Depois.
Na hora da Sessão de Abertura, a Sala 1 do Batalha estava como se quer: lotadíssima. Depois da apresentação do programa e dos agradecimentos aos parceiros, Petra Costa subiu ao palco para apresentar o seu mais recente documentário, Apocalipse nos Trópicos. O filme escolhido para o pontapé de saída explora a crescente influência que os líderes evangélicos exercem sobre a política brasileira, e como a fé se tornou num elemento crucial para o enquadramento de massas nesse país. O milagre, esse, chegaria no fim, com a audiência inteira a permanecer na sala até aos créditos finais. Bom augúrio.
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Apocalipse nos Trópicos de Petra Costa – Sessão de Abertura
Algures entre a tentativa de ilustrar a relação simbiótica que a Igreja Evangélica estabeleceu com a extrema-direita brasileira e a crónica de “estado da nação”, encetada em Democracia em Vertigem, Petra Costa lançou-se num projeto altamente ambicioso. Apocalipse nos Trópicos reúne imagens captadas ao longo de 8 anos, numa linha temporal que vai da fabricação do candidato presidencial Jair Bolsonaro à invasão do Palácio da Alvorada, por parte dos seus apoiantes, aquando da perda das eleições para o recém-libertado Lula da Silva.
Enquanto objeto fílmico, há muito pouco que se lhe possa apontar: que tenha conseguido transformar os brutos de tantos anos numa narrativa coesa e empolgante, de pendor altamente cinematográfico, é um feito em si. A montagem, criativa como poucas, neste estilo de documentário, concatena sublimes imagens de arquivo da construção e arquitetura da cidade de Brasília – idealizada como símbolo de liberdade, futuro e democracia, e palco dos grandes acontecimentos narrados – com atestados históricos de momentos-chave da era Bolsonaro – incluindo bastidores políticos e a febre que tomou conta de boa parte da população, ao som das vociferantes tiradas dos pastores evangélicos. Será mesmo no poder das imagens não encenadas, que cristalizam momentos historicamente relevantes, ou em pequenos fogachos de vox populi, que este filme se cumpre. Acontece, porém, que enquanto projeto político, filosófico e antropológico, Apocalipse deixa muito a desejar. Sendo verdade que a autora se defende honestamente logo no início, ao afirmar a incompreensão da fé evangélica com que partiu para este trabalho, bem como a salutar vontade de se informar, de conhecer os motivos por detrás desta ascensão meteórica no Brasil – correspondente à entrada do país numa política do irracional – não podemos escamotear o facto de que o caminho procurado é sempre o da revalidação e não o do confronto ou do questionamento. Com efeito, o didatismo com que a cineasta nos fala, ao longo do filme – aliado a parca contextualização histórica e à análise mastigada de conceitos bíblicos (quase exclusivamente centrada no Livro das Revelações, ou do Apocalipse) – sempre envolto num certo pedantismo, erigido em torno de citações de filósofos ou boutades irónicas, não corresponde a um aprofundamento satisfatório nem da teologia da prosperidade, nem dos meandros da sua fundação e florescimento junto das camadas mais desfavorecidas da sociedade, mas apenas ao adorno de uma tese plenamente aceitável e “segura” para um público pré-determinado.
Petra Costa dedica, ao invés, bastante tempo àquilo que garantidamente torna a sua narrativa mais sumarenta: a exploração do circo mediático, os bastidores dos golpes palacianos e a ascensão e impunidade do televangelista mais importante da política brasileira, nas últimas 3 décadas – Silas Malafaia, improvável (e impagável) protagonista, “mentor” de Bolsonaro. Se daqui resulta um filme pujante e intenso? Sem dúvida. Mas ainda que a captação do interesse do espectador não possa ser descurada, esse não devia ser o principal foco de uma análise política tão ambiciosa. Pedia-se um corte mais fundo, um abalo maior nas crenças de quem vê (porque é de crença e fé que falamos, quando falamos de política, e em especial da brasileira), em vez de um produto facilmente digerível para o consumidor externo – em particular o da Europa, onde o filme anda a correr festivais. Ficam o brio técnico e a força tragicómica das imagens de uma democracia presa por arames… e, enfim, as boas intenções. Mas essas, já que falamos de Apocalipse, sabemos bem onde vão parar.
Gil Gonçalves
E.1027 – Eileen Gray and the House by the Sea de Beatrice Minger – Competição Internacional
Além de uma obra-prima modernista, a casa junto ao mar que Eileen Gray construiu na Côte d’Azur foi um palco onde ego e ideais arquitetónicos colidiram de forma dramática. Beatrice Minger traz este conflito à vida, centrando-se na E.1027 – o nome, pleno de significado, da casa que batiza este filme – como motor de conquistas, perdas, invejas, conflitos. O filme narra a luta de Gray por afirmação num meio hostil – uma mulher que ousou construir num terreno movediço de inveja masculina e normativas patriarcais, e que deixou, contra todas as probabilidades, uma marca profunda.
Minger não se limita a documentar a história da casa – o seu nascimento, abandono e eventual recuperação – preferindo colocar o foco no pulsar das relações que a moldaram e devastaram e, sobretudo, na mulher que lhe deu vida. A realização de Minger reflete a essência do trabalho de Gray: versátil, ousada e multifacetada. As técnicas visuais, que alternam entre imagens de arquivo, secções dramatizadas e encenações quase teatrais, são tão variadas quanto o portfólio da arquiteta e designer, uma diversidade de registos que resulta num filme estimulante, dinâmico, e profundamente envolvente. Torna palpável o atrito entre forças opostas: a criatividade de Gray, a passividade de Badovici e a mesquinhez de Le Corbusier, cujas intervenções na casa são tão intrusivas quanto emblemáticas de um sistema incapaz de reconhecer uma mulher como igual.
E.1027 acaba por ser um manifesto sobre resiliência e sobre o preço de ser reconhecida, vista e ouvida num mundo que prefere o sectarismo à inclusão. É um testemunho eficaz que se debruça sobre a criação, modernismo, arte, machismo, ego, arquitetura e as injustiças que se refletem nestas intersecções, contado com uma sofisticação que transcende as convenções narrativas do cinema documental.
Carla Rodrigues
Small Hours Of The Night de Daniel Hui – Competição Internacional
A quarta longa-metragem de Daniel Hui, alumnus do California Institute of the Arts, é um exercício formal bastante impressionante, focado na história política do seu país natal, Singapura. Os primeiros 40 minutos são compostos maioritariamente num belíssimo chiaroscuro, captado em 16mm, a preto e branco, numa mise-en-scène espartana, que coloca um homem (do qual só vemos a cara) e uma mulher (da qual quase só ouvimos a voz) frente a frente, numa sala de interrogatório. Os planos-pormenor e um magnífico trabalho sonoro transcendem a escuridão, pintando o espaço, físico e mental, que não é apresentado aos nossos olhos.
Durante esse primeiro diálogo, ambientado nos anos 60 (informa-nos o filme), logo após a independência da cidade-estado, há primeiros sinais de estranheza: a relação entre interrogador e interrogada, ainda que assente num âmbito policial, parece remeter mais para uma sessão de psiquiatria, onde as memórias da mulher se revelam erráticas, sobretudo quando confrontadas com gravações de sessões anteriores, das quais ela afirma não se lembrar. Ainda neste primeiro segmento, as identidades das duas personagens começam a dissolver-se, outros nomes começam a surgir, linhas de diálogo apontam para pistas associadas a outras identidades… e o par parece partilhar uma relação pessoal, num passado que teima em prolongar-se no presente, em mesclar-se mesmo com ele. Esta noção de borrão – temporal, identitário, psicológico e emocional – lembra a escrita de Marguerite Duras: difusões viscerais, com pano de fundo político, onde as personagens transcendem a individualidade e se vão escrevendo por linhas tortas.
Uma noção aprofundada no violento “segundo acto”, onde após um clarão e um berro de raiva, a mulher surge de corpo inteiro, sob uma luz branca implacável. Um ataque aos sentidos, reforçado pela mudança brusca de cenário, quando dois médicos surgem para lhe atar os braços. Após sedação, o interrogatório segue – mais errático, mais simbólico, aparentemente mais psicologizado (nota para o excelente trabalho sonoro, que emula o estado letárgico da mente drogada). Aqui o mistério começa por se adensar: um espelho e um relógio assinalam a metáfora, o homem desapareceu, só lhe ouvimos a voz, mas o interrogatório continua e começa a correr datas e nomes de pessoas julgadas. A interrogada lembra-se, mas como? As datas são no futuro. Subitamente, já não estamos nos anos 60 e, a partir daí, o filme começa a perder um gás que não mais recuperará, à medida que as pistas se vão revelando. Isto porque o desvelo acontece da forma mais desinteressante possível: monólogos que nos contam a história das personagens, que revelam por demais a ideia esquemática do filme – a de ter uma personagem-compósito de várias pessoas julgadas ao longo dos anos na “iliberal democracia” de Singapura – que desembocam num melodrama romântico (que nos é, apenas, mais uma vez, vocalmente exposto) e na imiscuição do documental (os casos de julgamento são reais, remetem para a história do país) de forma robótica e enumerativa.
Todo o interesse erigido pela forma inicial se esboroa, de tal modo que quando chegamos ao epílogo, fora da casa, indubitavelmente no presente, todas as imagens bonitas parecem forçadas, todos os índices de “experimentalismo” nos fazem torcer o nariz e o final pretensamente catártico terminaria com um bocejo, não fosse a maravilhosa canção utilizada. Uma dor de alma, face a uma obra que se anunciava genial.
Gil Gonçalves
Ethiopiques Magnetic Suite de Stéphane Jourdain – Competição Transmission
Há algo indiscutivelmente encantador em assistir a alguém dedicar a vida a uma paixão tão absorvente que se torna inseparável da sua identidade. Em Ethiopiques Magnetic Suite, o documentário de Stéphane Jourdain, conhecemos Francis Falceto, uma figura cuja obsessão pela música etíope moderna transformou uma cena musical esquecida num fenómeno cultural global. Falceto é apresentado como um ícone da contracultura francesa dos anos 70 e 80, um arqueólogo musical movido por uma convicção imparável – a de que a música etíope precisava de ser recuperada, divulgada e amada além das fronteiras do seu país de origem. A sua descoberta acidental da música etíope foi o início de uma missão que atravessou décadas, da procura de gravações feitas durante a ocupação fascista nos anos 1930 até à ditadura DERG, passando pela libertação em 1991 e culminando na criação da lendária coleção Ethiopiques em 1996.
Contudo, a abordagem que celebra Falceto como um herói do arquivismo musical, também revela as limitações do documentário. A sua estrutura seca e relativamente rígida, juntamente com a escolha de se focar quase exclusivamente na perspetiva de Falceto, tornam o filme monolítico. É uma carta de amor ao arquivismo, mas raramente dá espaço para outras vozes – etíopes ou internacionais – que poderiam expandir e diversificar a narrativa. O resultado é um retrato que, embora fascinante para os já apaixonados pela música etíope, dificilmente atrai quem chega ao tema sem interesse prévio.
No fim, este documentário é mais um tributo do que uma ponte. Um arquivo precioso, sem dúvida, mas sem a acessibilidade ou o dinamismo necessário para cativar novos ouvintes. É um espelho da própria obsessão de Falceto: uma paixão por preservar o passado, mas que, no processo, arrisca deixar o presente para trás.
Carla Rodrigues
Sur La Stre Nuro – Na Corda Bamba: Diálogos sobre o Experimentalismo Sonoro em Portugal de Luis Fernandes – Competição Transmission
Por definição, o que é experimental nunca está fechado. Isso nos demonstram as duas dezenas de testemunhos que compõem Sur La Stre Nuro, a 3ª longa documental de Luis Fernandes. Nela, acompanhamos as diferentes abordagens conceptuais, técnicas de composição, gravação e interpretação de alguns dos mais relevantes artistas experimentais portugueses. Mergulhamos fundo nos seus processos e na forma como encaram a sua própria produção musical. Apesar da proposta relativamente convencional, a nível de estrutura – com recurso constante às talking heads, que alternam com gravações de performances e algumas imagens de arquivo – denota-se, apesar de tudo, a intenção de inovar, neste documentário. A inserção de elementos divergentes em pós-produção, do ruído à alternância de cores com o preto e branco, garante que raramente temos dois planos iguais. O uso de imagens de arquivo de ligação mais metafórica ou subtil ao que escutamos, emula não só a índole experimental e irrepetível da música em análise, mas também o poder evocativo que toda a música tem – as imagens que suscita na nossa cabeça e que a complementam. É aqui que reside a maior força deste Stre Nuro: assumindo a impossibilidade de sobrepor as imagens ao tema retratado, coloca-as inteiramente ao serviço da música, como seu complemento. Um apaixonado e enternecedor projeto de nicho.
Gil Gonçalves
Tardes de Soledad de Albert Serra – Competição Internacional
O plano longo em Albert Serra – e por vezes não são planos longos que vemos, mas a sensação de plano longo dada por uma montagem de momentos e ações de grande semelhança entre si: temos a impressão de assistir a touradas inteiras – o plano longo em Serra, dizíamos, é diferente do oliveiriano, do apichatponguiano: recordemos o sereno ardor dos planos de Liberté (2019), que “tranquilizava” uma grande luxúria, de um sexo lunar, na pura duração, na imagem-tempo. Serra, um realizador que é memorável ouvir pessoalmente, de grande energia discursiva (um complemento interessantes aos seus filmes), posiciona-se quase como “anti-documentário”, no que toca àquilo que interessa ao seu cinema. Gesto artístico preguiçoso, o documentário tem como seu superior a ficção em praticamente qualquer caso, com algumas excepções: aquelas onde as coisas atingem já uma espécie de irredutibilidade, uma expressão máxima, na vida real; Tardes de Soledad (2024) é um tal caso: imaginemos os trabalhos e recursos necessários a ficcionalizar com fidelidade uma tourada quando ela já existe da forma que aqui vemos em Madrid: treinar actores, arranjar animais, figurantes, duplos… não se chegaria perto do fenómeno real. Portanto, para este assunto, Serra cede ao documentário: seguimos o toureiro matador Andrés Roca Rey, uma espécie de glamstar de vinte e oito anos, entre touradas e viagens no carro – são maioritariamente os únicos cenários, com duas ou três excepções memoráveis em camarins e divisões de hotel. Nas touradas, além do som directo que é capturado em Andrés (este será um documentário de visionamento importante para operadores de som) temos também sempre microfones junto à cerca que separa a praça da primeira fila de espectadores, normalmente composta por outros cavaleiros e restantes membros da quadrilha íntima do matador. O resultado é uma espécie de tourada com comentário, descoberta a posteriori na montagem (Serra não sabia, durante as filmagens, o que os outros conversavam). E nestas conversas, o filme descobre-se como surpreendente comédia do real, ou pelo menos da agonística aqui presente: seja a natureza do comentário positiva (Estás entre os maiores! Que cume! Que ser humano incrível que és!) ou de alguma consternação (Com calma, com calma!), também por parte do próprio Andrés (Esta orelha [morte do touro] vai receber críticas. Tive sorte, não tive?), o eriçamento e o estado de excitação é permanente. Já tínhamos essa sensação durante o filme, mas Serra confirma-nos o dado estatístico: a palavra mais usada no filme é “tomates”, prefixada de “grandes”, “que par de”, “que demonstração de”, e por aí fora.
O perigo é real: quanto mais rente Andrés faz o touro passar por si, mais está “entre os maiores” (os medíocres invejam-te, é por isto que as pessoas te odeiam, diz-lhe um colega a certa altura) – vemos várias vezes os resultados disso, com o touro a jogar Andrés ao chão, a esmagá-lo contra as barricadas, visitas a médicos a seguirem-se às corridas, em que Andrés entra em carros de bata de hospital. “A vida não vale nada!” exclama um dos toureiros a certo ponto. Deste risco constrói-se tudo, as suas poses extravagantes e olhar distante, a sua monomania e a dos outros. Tudo o resto, de facto, é também real, e compreendemos aqui o triunfo deste documentário sobre qualquer ficcção.
Serra conta-nos, e é um dado supremamente interessante sobre o filme, havendo sempre aquela questão em documentários de como terá sido a relação com os sujeitos filmados, que os toureiros – nas cenas de limousine de transporte têm uma câmara fixa colocada directamente para si – estavam tão intensamente “ligados”, tão keyed in, que era igual para eles estarem a ser filmados ou não, sabiam que a câmara estava lá mas era irrelevante, irrisório, estavam preocupados com assuntos de muito maior importância, elevados a uma outra dimensão. A certo ponto no filme, após uma tourada, entram todos no carro e um dos toureiros que auxilia Andrés (uma hora inteira depois da tourada, informa-nos Serra, não foi logo a seguir) emociona-se e passa a viagem inteira com os olhos marejados, Andrés e os restantes reflectem constantemente no que se passou: “Hoje calaste muita gente, Andrés. Com que verdade mataste o touro… És o cume, estás entre os grandes, tens um grande par de tomates.” Andrés raramente responde a estas coisas, por vezes mostra-se pensativo e inseguro: “Aquele primeiro touro era agressivo… o touro não tombava…”. Na arena, os colegas são quase sempre acometidos de fúria: “Mata esse filho da puta!”. Para o realizador, na ficção, consegue os resultados que busca nos actores através da pressão. Aqui, diz-nos, essa pressão já existe, constantemente: eles estão a fazê-la a eles próprios. A câmara e os microfones desaparecem. Era depois das filmagens que por vezes os toureiros pediam a Serra para tirar uma coisa ou outra que tinham dito, por vezes informação pessoal ou delitos ofensivos: no momento, não estavam a pensar nisso.
A maior resistência, é importante notar, foi mesmo com as imagens do touro a morrer em grande violência. Os toureiros não queriam que isso aparecesse no filme, não querendo “dar uma má imagem das touradas”.
Dizíamos que o plano longo de Serra é diferente dos outros. Só assim é que as cenas intermináveis na arena (alguns espectadores devem ter concluído, sim, o filme é mesmo só isto) operam um efeito neutro, porventura meditativo – não me causaram quase nenhum mind wandering. O realizador diz que filmou centenas de horas (“500, 600. Não, isso foi em Pacifiction, aqui foram umas 700) e que trabalhou com outros três montadores “sete dias por semana durante nove meses” – “mais ninguém faz isto como eu”, diz-nos, numa das suas saídas sui generis. De facto, temos estado a pensar no filme desde aí.
Rafael Fonseca
Sempre de Luciana Fina – Competição Cinema Falado
… tantos anos depois, é como dar notícias de um sítio que não existe, informações sobre um tempo que realmente existiu – Robert Kramer, a propósito de Cenas da Luta de Classes em Portugal (1977)
Há muitas formas de olhar o passado, mas recordar é sempre um ato dialético. Uma operação que opõe aquilo que foi àquilo que é. Antes da projeção de Sempre, a realizadora, Luciana Fina, afirmou que este não era um filme com qualquer intento nostálgico, uma vez que “a memória pertence ao presente”. Uma importante ressalva que deixa a nu o posicionamento da cineasta, e que se reflete no seu objeto artístico: um filme que não se contenta em celebrar o passado, remetendo-o para um contexto histórico fechado. A intenção é a de mostrar a revolução portuguesa, desde o estertor da asfixia fascista até ao PREC e à descolonização, não através de um elencar cronológico dos seus eventos marcantes, mas através dos seus processos. Mostrar a extensão de uma revolução que, num curto espaço de tempo, criou raízes profundas em todas as latitudes (geográficas e sociais) de Portugal, confrontando esse país possível com a realidade atual.
Isto é feito de duas formas. Uma, mais óbvia, ocorre através do que a realizadora chama de “interferências”, isto é, da imiscuição de sons do presente em imagens do passado. Por exemplo, quando nos são mostradas as barracas de outrora, nos arrabaldes de Lisboa, escutamos um muito atual “casa para viver!”, captado numa de muitas manifestações que se têm feito em torno do tema da habitação, nos últimos anos; quando vemos imagens das primeiras manifestações de mulheres, organizadas por coletivos como o MDM, ouvimos palavras de ordem captadas na manifestação do 8 de março deste ano… A outra forma, menos ostensiva, diz respeito à estrutura do filme e ao espaço que abre para que a dialética se opere entre o que é mostrado em tela e o que é convocado por omissão, isto é, na experiência do espectador na atualidade. Se, por um lado, Luciana Fina sabia que nada teria a acrescentar aos excertos de filmes e arquivo televisivo que compõem Sempre – que qualquer ato de identificação, nomeação ou classificação seria limitar o seu significado e reduzir o seu poder – não deixou de ver neles o potencial de acrescentar algo ao tempo em que vivemos. É este gesto de colagem, plenamente consciente do potencial único do distanciamento histórico, que faz emergir um filme que só poderia existir agora, e que atribuiu, no presente, uma nova força a estas imagens do passado. A força de pintar todo o fresco revolucionário em ações e emoções, de “provar”, em todas as suas dimensões, a existência de um outro país, num lugar que hoje já não existe.
Um filme alegre e triste, que nos emociona pela emancipadora vontade de futuro a que assistimos – nas pinturas coletivas de murais políticos, nas escolas de Lisboa, onde as crianças são incentivadas a exercer a democracia, e a tomar decisões que lhes dizem respeito, no proto-rap politizado de um careto transmontano, no Alentejo, onde do nada se deram mãos para que todos pudessem ter qualquer coisa, na coragem de uma desempregada a defender a greve dos trabalhadores do jornal Setubalense, na zona abastada da cidade, ignorando todos os insultos a que é sujeita, nas discussões ideológicas no meio da rua, nas canções, no teatro, no cinema português, angolano e moçambicano. Um filme que também nos consterna quando descemos da nuvem e esbarramos num presente sem futuro, do lado de cá da tela. Ainda bem que assim é. Nunca foi de confortos e consensos que se passou à ação, e num tempo em que a produção artística – mesmo a que se diz partidária de alternativas políticas, económicas e sociais – se move amorfamente por homenagens, ambiências e nostalgias anestesiantes, nada há de mais revolucionário do que a provocação. O país que o filme nos mostra não durou para sempre, mas sempre existiu. Tudo é possível.
(escrito a 25 de novembro, porque neste dia é de abril e de maio que me lembro)
Gil Gonçalves
The Flats de Alessandra Celesia – Competição Internacional
Psicodrama de violências perenes. Joe, Jolene e Angie vivem num enclave de maioria católica e republicana em Belfast. New Lodge, um bairro conhecido como Murder Mile na época mais sangrenta dos infames Troubles, passou de campo de batalha a uma terra de ninguém, esquecida pelo poder central, em decadência material e infestada pelo tráfico de droga. Apesar da progressiva degradação do local, alguns vizinhos fazem por manter um sentido de comunidade e aliviar, entre si, o peso de vidas inteiras de dor. Entre a partilha de histórias pessoais, em estilo psicoterapêutico, imagens de arquivo e um método de realização que oscila entre o cru e o poético, The Flats coloca o privado e o histórico lado a lado para nos dar uma visão muito clara da pobre sutura que, tantos anos depois, está longe de sarar os efeitos de uma guerra fratricida.
Íntimo, dolorido e terno, este é um documentário que caminha por uma linha perigosa, ao captar os seus protagonistas em momentos de extrema vulnerabilidade. O foco nas histórias do seu passado, captadas dentro das suas casas, dos bares onde costumam ir, ou mesmo em sessões de terapia, facilmente poderia descarrilar em exploração. Felizmente, a abordagem fly on the wall de Alessandra Celesia é suficientemente paciente para deixar os protagonistas respirar, poupando-os a julgamentos e dignificando-os com a bondade, espírito de resistência e até humor que deles emana. É essa persistência de proximidade com estas pessoas que nos mostra a quão profundas são as feridas de um conflito que, silencioso, persiste até aos dias de hoje. Não apenas no trauma individual de cada personagem, cada uma com cicatrizes próprias, mas também nos sinais de divisão comunitária (festividades dos protestantes vedadas aos católicos, portões que fecham ruas a uns e a outros, a forma como vemos as personagens a falar dos “costumes deles”, como se fossem estrangeiros os vizinhos que falam a mesma língua e nasceram no mesmo país), que ainda hoje tem influência direta no dia a dia da população.
À brutal honestidade do presente, atravessa-se um passado tenebroso, pontuado, por um lado, por raros (mas cirúrgicos) pedaços de arquivo – que assinalam a raiz do problema – e, por outro, pelo recurso mais engenhoso deste filme: a recriação. Fugindo à regra habitual de encenação “alienígena”, protagonizada por atores silenciosos, The Flats coloca os próprios protagonistas a reavivar eventos do seu passado. Por vezes de forma ostensiva, mostrando um protagonista a dirigir outros, que se tornam, assim, atores. Outras vezes recorrendo apenas ao encadeamento da montagem, que coloca protagonistas mais novos na pele dos mais velhos. Um dispositivo altamente (meta)cinematográfico que gera narrativas paralelas, ao longo do filme, conferindo duplos significados e um sentido de verdadeira catarse a vários planos. Uma obra corajosa, que, devido à sua integridade artística e originalidade formal, se eleva uns pés acima do mar de conteúdos em torno de um dos mais sinistros eventos da história europeia contemporânea.
Gil Gonçalves