Poucos realizadores no mundo comandam a atenção e reverência duradoura concedida a Pedro Almodóvar há mais de quarenta anos. Ao longo de uma obra que conta vinte e três longas-metragens, iniciada no já longínquo Pepi, Luci, Bom y otras chicas del montón (1980), “um filme de Almodóvar” tornou-se numa marca, um selo muito particular de qualidade e de um olhar artístico muito próprios que, longe de se manter estanque, tem permitido ao cineasta espanhol reinventar-se sem com isso comprometer os princípios fundamentais da sua identidade. O resultado é uma obra singular e com o cunho vincado de um autor que, há tantos anos nas nossas vidas, pode para muitos parecer capaz de viver para sempre.
Ninguém é, contudo, eterno. E Almodóvar melhor do que ninguém parece sabê-lo. Há muito que deixou de ser o jovem artista criado na irreverência do caldo cultural pós-Franquista e de La Movida Madrileña; hoje, aos 75 anos, as suas preocupações são outras. E o seu cinema também, ou não estivéssemos perante um cineasta cujo trabalho desde sempre assumiu como pedra basilar as experiências pessoais do seu criador.
“Perante [a morte] sou como uma criança, não sou alguém maduro. Não aceito a morte, tal como Julianne Moore em O Quarto ao Lado“, revelava há alguns dias por ocasião de uma conversa coletiva com a imprensa internacional, entre as quais esteve alguma da portuguesa. O seu mais recente filme, estreado na edição deste ano do LEFFEST e que esta quinta-feira chegou às salas comerciais, é acima de tudo uma confissão: Almodóvar tem medo da morte. A personagem de Moore, uma autora de sucesso confrontada com a doença terminal de uma amiga, corporiza esse receio, tanto quanto Tilda Swinton, presença sempre a roçar o insondável e o alienígena, personifica esse grande e incognoscível desconhecido.
O Quarto ao Lado é a abordagem mais direta do cineasta ao assunto da morte, mas não é a primeira vez que se acerca dela. Com efeito, neste que é o derradeiro período da sua obra descobrimos uma insistência cismante no fim — das relações, do trabalho, da própria vida. Algo que, longe de ser propriedade única de Almodóvar (quase todos os grandes artistas confrontam a certa altura o tema), é contudo de particular interesse, na medida em que nos abre uma janela às filosofias pessoais do realizador, a uma tentativa de definir o seu próprio legado e às preocupações que deixa às gerações e ao mundo futuros.
Vemos estas reflexões pela primeira vez em Dor e Glória (2019), filme que de autobiográfico só não terá a designação, mas que o próprio não esconde ser fortemente baseado no seu auto-retrato. Nele, Antonio Banderas interpreta Salvador Mallo, cineasta espanhol de sucesso mundial (faz lembrar alguém?) a atravessar uma profunda crise depressiva enraizada na morte da mãe, na impossibilidade de continuar a trabalhar e na saúde que se deteriora com o passar do tempo. É um filme sobre a velhice e a finitude da vida, mas também da criação artística. Para a retratar, Almodóvar rodou as cenas de interiores no seu próprio apartamento em Madrid e usou roupas suas para o guarda-roupa de Banderas. “Tento convencer-me de que estou a falar de uma personagem”, disse na altura ao britânico The Guardian. “Mas no fundo, sei que estou a falar de mim”.
Limitado pelas dores físicas e da alma, Salvador admite a certa altura: “A vida deixa-me doente, como um medicamento inútil. É quando tenho clareza de visão que percebo o quão fácil seria abandonar este tédio se tivesse a simples força de vontade”. Naquele filme, o Mallo de Banderas é alguém para quem a vida não faz sentido sem o trabalho, que encontra na arte a sua única forma de relação com o mundo. A restauração de um clássico antigo serve de pretexto para reconciliar amizades perdidas; um monólogo confessional para teatro reata a chama de um amor antigo; o regresso às origens pobres em Paterna, na Comunidade Valenciana, é revivido através do cinema, num dos mais belos exemplos da meta-narrativa do filme e da própria obra do realizador (recordemos por exemplo a infância retratada em Má Educação (2004).
O protagonista de Dor e Glória procura assim continuar-se através do trabalho. Mas o que acontece quando não há continuação possível? Almodóvar, o tal que não aceita a morte, procura uma resposta em O Quarto ao Lado, primeira longa em inglês, numa reinvenção que vinha sendo anunciada através das suas experiências recentes com a curta-metragem — primeiro com A Voz Humana, depois em Estranha Forma de Vida, exercícios de artificialidade e género também eles sobre ligações perdidas e a melancolia que sobra como único vestígio inevitável do passado.
Tal como Salvador, Martha (Tilda Swinton) está limitada às agruras do próprio corpo, devastado pela doença. Mas ao contrário de Banderas, a personagem de Swinton encara o fim nos seus próprios termos. “O cancro não me pode derrotar se eu me derrotar a mim primeiro”, diz a certa altura. A sua atitude pragmática contrasta com o terror de Ingrid (Julianne Moore), avatar do realizador que acaba de escrever um livro sobre a morte, fenómeno que não considera natural, (“porque é que uma coisa viva tem de morrer?”) numa tentativa gorada de a compreender. Quando a amiga lhe pede que se deite “no quarto ao lado”, para que esta não esteja sozinha enquanto toma balanço para tomar o comprimido da eutanásia, Ingrid é a um tempo cúmplice e testemunha da morte enquanto parte da vida. No final, não está mais perto de a aceitar, mas terá contudo compreendido que a neve continuará a cair, mesmo após a porta se fechar.
A mensagem pró-eutanásia, assumida pelo realizador em entrevistas, ganha outra gravidade ao consideramos que, além de uma morte pessoal, este é também um filme sobre a morte do planeta. A ideia é feita explícita na personagem de John Turturro, um homem que no passado teve relações íntimas com ambas as mulheres, e que no presente é consumido pelo pessimismo das alterações climáticas e do fim da humanidade. “As pessoas têm de uma vez por todas de tomar consciência do que estão a fazer à merda do seu planeta”, diz a Ingrid, a certa altura. “Há várias maneiras de viver sob uma tragédia”, responde-lhe ela. A morte como forma de encarar e dar sentido à vida.
Tal como Ingrid, Almodóvar escreveu o seu último filme numa tentativa de obter respostas. E tal como ela, falhou. “Quando acabei este filme, fui para casa e o meu gatinho Lucio morreu. (…) O veterinário disse-me que ele tinha cancro e que tinha apenas dois dias para lhe dizer adeus antes de ser eutanasiado. A última noite que passei com ele, os seus olhos pareciam-me tão vivos, mas saber que não iria existir no dia seguinte… percebi que estava exatamente na mesma situação de antes. Não sei nada sobre a morte”. A boa notícia é que enquanto existir cinema, a procura pode continuar.