Past Lives: da Gentrificação

Miguel AllenFevereiro 13, 2024

Ainda choras com frequência ?

Não sei quando terá sido, mas a transição, parece-me, ainda levou algum tempo. Quando se tornaram estes nossos filmes, tanto quanto as nossas cidades, nesta espécie de imagem idealizada das nossas vidas ? As pessoas sempre foram ao cinema para “sonhar”, é certo, ou possível, mas o problema aqui é outro. O tema da chamada gentrificação é amplamente discutido em urbanismo e arquitectura, nomeadamente pelo seu efeito directo na crise da habitação nas grandes cidades ocidentais. Mas o que dizer de um cinema como o de Past Lives (Celine Song)? E o que dizer do valor cultural de um filme como este, ou, porque não, do aclamado Perfect Days? Se as falácias do “regresso à ficção” de Wim Wenders são mais fáceis de desmontar, Past Lives talvez viva da mesma pretensão e conforto burguês que enchem Perfect Days, ainda que se apresente de uma forma francamente menos desonesta. 

Não será uma surpresa, claro, que o selo da produtora A24 nos garanta um certo tipo de cinema socialmente “elevado” (o tema elevated, sendo muito apreciado quando se fala de horror, é hoje perfeitamente transversal à arte). Mas o caso de Past Lives é particularmente interessante pelo envelope praticamente infalível que reveste o filme. Elegante, sóbrio, e educado. Comovente onde conta. O movimento de câmara, lento, contínuo, e seguro, enquadra um mundo fotográfico que mimetiza na e em perfeição o mundo fotografado. Como um Terence Mallick “shot on iPhone“, e como acontece com Perfect Days, Past Lives é um filme que parece higienizar todo o seu conteúdo de qualquer potencial político, num método em tudo próximo ao que é feito pela publicidade. E vem mesmo à cabeça um outro indie oscarizado, o empoeirado Nomadland (Chloé Zhao, 2020).

Histórias com uma certa insistência em valores humanos tradicionais, um certo gosto, ou sabor, de generosidade. As suas personagens vêem-se enleadas nas problemáticas do mundo contemporâneo, mas apesar dos entraves “novos” que encontram, o sol continua a brilhar pela janela e um sorriso por skype pode iluminar o nosso dia. Choramos e amamos, mas pela recorrente vontade de simplicidade, confrontada com a recorrente focalização em tecnologias de conforto, são histórias onde o simples surge intrinsecamente associado ao (ou por efeito do) muito complexo. Será talvez difícil “não gostar” de Past Lives, cuja competência estética o torna, pelo menos, um filme suportável. Mas parece-nos impossível também se deixar plenamente transportar por uma obra que, afinal, se sustenta em frágeis banalidades e uma falta de sinceridade formal. 

Um Cinema de produto. Como qualquer outro objecto de consumo, Past Lives exclui necessariamente do (seu) discurso, tudo o que existe fora do plano. Um trabalho de “aparência”, ou talvez mesmo um contrário de Cinema, num filme que vive simplesmente do que nos propõe na tela, sem uma profundidade de campo que possa oferecer às imagens algo para além da sua capacidade formal. Uma sobre-competência do fotógrafo (Shabier Kirchner é verdadeiramente bom), pessoas bonitas, música “tonal” entre ambient e jazz. Past Lives transporta os recorrentes tiques do cinema de autor contemporâneo. E até ao “vento nas árvores” é dado o tratamento balofo de uma simples referência necessária de bom cinema.

Seoul de finais dos anos 90 surge-nos sofisticada e arejada sob a imagem bienveillante do cartaz de Céline et Julie vont en Bateau (Jacques Rivette, 1974), ao som de Hey, That’s No Way to Say Goodbye (sim, percebemos a deixa). Mas apetece por vezes dizer que a boa educação é provavelmente o maior flagelo do cinema de autor. Porque se os meus pais ouviam Leonard Cohen, ouviam também Juan Luis Guerra. E cá estarei quando fizerem enfim um Past Lives acompanhado de Burbujas de Amor. 

A produção destes filmes independentes é hoje em tudo contrária ao espírito das novas vagas que pretendem emular. Claro que, culpar o filme de um certo mal viver do cinema contemporâneo, é como culpar as inocentes tostas de abacate da morte urbana do centro das grandes cidades (e voltamos ao começo). Tudo será, efectivamente, parte de um processo muito grande de transformação de uma arte popular, de espaços populares, em produtos de consumo elevado. Mas será impossível, e desonesto também, não salientar os valores, por tanto que perniciosos, do filme. Se Greta Lee (Nora) é uma figura algo antipática, e John Magaro (Arthur) o designated loser da A24, Teo Yoo (Hae Sung) é verdadeiramente encantador – o jeito que dá ao cabelo ao olhar para o espelho de água no parque em Nova Iorque, antes do seu primeiro reencontro com Nora, é um raro relance de improviso natural no filme. A “poesia” dos diálogos (In Yun, vidas passadas, lá di dá) é banal e forçada, talvez, mas a ideia de um amante que sonha numa língua que não conhecemos, uma imagem romântica profunda e rica. E por muito que excessivamente controlado, o desenlace final é na verdade muito comovente – enfim revelador de uma identidade de Celine Song como realizadora, e esclarecedor do que torna o filme regularmente cativante ao longo de toda a sua duração.

Mas, e afinal, “ainda choras com frequência ?” Apetece justamente perguntar.

 

Miguel Allen