O, woe is me,
To have seen what I have seen, see what I see!
(William Shakespeare – Hamlet, III, 1)
To live and die in Naples. Forte candidato a filme mais interessante do ano do qual ninguém vai gostar. Isto porque, depois do seu desvio pela linearidade autobiográfica, Paolo Sorrentino parece, numa primeira impressão, querer voltar às superfícies belas e ocas de La Grande Bellezza (2013), aos fetiches do corpóreo enquadrados num digital reminiscente da publicidade. O regresso a esses elementos verifica-se, sim, mas retendo o coração e a introspeção de È Stata la Mano di Dio (2021) como peças fulcrais para os desmontar (a chave estará no diálogo com uma certa atriz descabelada, a bordo de um navio), através de uma abordagem plenamente conceptual. Um ângulo que oscila entre o ostensivo e o subtil, o visualmente excêntrico e a candura intimista, e que alienará todos os que não estiverem disponíveis para ver (o ato mais difícil que existe, de acordo com o professor de Parthenope) além das frases feitas, das notas de erotismo parafílico ou dos apontamentos de onirismo felliniano.
Fazendo jus ao mitológico nome de batismo, Parthenope nasce dona de uma beleza hipnotizante. Inicialmente divertida com os efeitos dos seus encantos, cedo compreenderá que não há poder sem cruz. A morte marcará um ponto de inflexão neste entendimento, bem como no resto da sua vivência. A finitude pede respostas e Parthenope procura-as um pouco por todo o lado, entregando-se a um empirismo sem entraves (com exceção do seu distanciamento emocional). A jornada desta aspirante a antropóloga – algo que Sorrentino, de certo modo, também é – será cruzada por diferentes facetas sociais e humanas, plasmadas em coloridas personagens mais velhas, bem como por todas as obsessões antigas do cineasta: os corpos – esculturais ou grotescos – a religião, as assimetrias sociais, a beleza e a juventude, a paixão, a decadência, o futebol e o amor agridoce pela sua cidade. Neste percurso de vida esconde-se o do próprio autor, e nisso muito menos a vontade de “contar uma história” do que um pretexto para nos pintar, em pinceladas largas, o fresco nostálgico dos seus verdes anos e do que foi aprendendo – em ligação umbilical com a sua identidade napolitana – à medida que foi envelhecendo.
Ainda que de forma muito mais abstrata que em Mano di Dio – por força de uma montagem inusitada, de uma narrativa simbólica e de uma disposição ostensivamente artificial de atores, adereços e décors – este será, porventura, um filme muito mais autobiográfico, porque do presente. É a luta de um órfão de meia-idade com o seu próprio envelhecimento, em diálogo com a sua obra, nostálgico do vigor e da loucura da juventude, sempre entre o fascínio e o temor pelo prazer carnal, mas ainda profundamente apaixonado pela vida. Enamorado das vulnerabilidades humanas e em incessante busca pela beleza – especialmente a que se encontra onde a maioria desistiu de procurar. Uma paixão que se traduz na aceitação, mesmo que por vezes contrariada, de tudo e todos os que se unem sob o céu dessa triste e leda Nápoles.
À semelhança do outro grande projeto maximalista de 2024 – Megalopolis – a seriedade grandiloquente deste filme tempera-se com exageros que à superfície roçam o absurdo, o que poderá ter um efeito repelente para muitos espectadores. Nos tempos que correm, é o preço a pagar por quem nos pede paciência para contar a sua verdade com ingenuidade artística… Contudo, os que concederem a gentileza a Sorrentino cedo entreverão a sinceridade das emoções por detrás dos fogos de artifício, certamente tomarão conforto na compaixão antimoralista e no mistério da profusão de símbolos que este poema lírico oferece ao desvelo. Numa palavra, sairão de Parthenope amplamente recompensados.