Parsifal ou o erro de toda a existência

Eduardo MagalhãesJunho 25, 2024

No outro dia, ao passear pela rua, deparei-me com a loja de um criador de aves. Estarrecido, fiquei a contemplar a pilha de utensílios, todos arrumados e apetitosamente vestidos. De repente, apercebi-me que um homem depenava uma galinha, enquanto o ajudante tirava uma outra, viva, da gaiola e com um golpe cortou-lhe a cabeça. O grito lancinante do animal, bem como os guinchos de lamento mais fracos que fazia à medida que se preparava para morrer, petrificou-me a alma, tal era o horror… Ainda hoje me persegue…

(…) trata-se simplesmente de acordar a sensação de sofrimento partilhado no Homem, que, por sua vez, ao absorver a existência defeituosa do Animal torna-se o redentor do mundo, pois consegue reconhecer o erro de toda a existência…

Richard Wagner em carta a Mathilde Wesendock datada de 1 de Outubro de 1858

 

Se em Götterdämmerung, ópera final da tetralogia do Anel dos Nibelungos, Wagner concluía com a imolação de Valhalla e a morte dos velhos deuses, em Parsifal há a continuação lógica deste pensamento com a procura pelo Homem da transformação do paganismo numa ordem cristã centrada no Gral, elemento tão caro a Hans-Jürgen Syberberg. Todavia, o que é o Gral? O Gral existe?

Em “Hitler, ein Film aus Deutschland” (Hitler, uma História da Alemanha), filme que antecede esta adaptação da obra de Wagner, Syberberg lamenta o desaparecimento de uma sensibilidade cultural alemã em boa parte às mãos da mutação nazi e do espectro da sua vitória. Mesmo silenciada em 1945, a mentalidade fascista do espetáculo kitsch, alarve e que se suporta em próteses berrantes fáceis de consumir (e não de apreciar) parece ter triunfado e alastrado por toda a parte. A Europa e a Alemanha em particular irremediavelmente perdidas, por culpa própria, numa não-existência. Parcos centros turísticos em que o seu passado proporciona boas fotografias, ou, como o Monsieur Hulot descobriu, colunas gregas tornadas cestos de lixo. Contudo, rasgando essa sina, “Hitler, ein Film aus Deutschland” terminava com uma criança embrulhada num véu de película, há medida que o fim da Nona Sinfonia de Beethoven se tornava inaudível. Ainda há hipótese? Entremos como a personagem de Parsifal na ópera a que dá nome, despidos de qualquer preconceito, ideia ou memória.

Parsifal abre com fragmentos musicais, frases não acabadas e fotografias das ruínas da II Guerra Mundial e não só. O ensaio intrigante termina. Da tela escura irrompe o prelúdio luminoso da abertura. Mais fotografias, mais ruínas, um cisne morto, uma criança a brincar, um rapaz e uma rapariga em armadura, marionetas, um cálice, tantas e tantas imagens, tal é a prodigiosa imaginação do Homem. É a facilidade do cinema, conta de adição sem necessidade de resultado, cada qual julgará o seu cálculo.

A linguagem de Syberberg serve-se do exuberante na construção e do artifício assumido. Veremos a minúcia cristalina de um ourives e os rabiscos grosseiros de um caricaturista, design de lavra exigente e imagens de projetor a servirem de fundo do plano, atores dobrados por cantores. Em suma, a Gesamtkunstwerk (obra de arte total), que para Syberberg, e isto segundo o próprio, vai de Wagner a Brecht, sem esquecer os irmãos Lumière.

Os motivos da Morte, Sensualidade e Regeneração dominam a ópera. No tratamento de Syberberg, que faz cumprir o tempo integral da ópera sem alterar uma linha ou compasso, tais motivos além de se complementarem abraçam a duplicidade como veremos mais adiante.

O libreto de Wagner é rico em simbologia e presta-se à intertextualidade capitalizada pelo realizador. Vejamos, o rei do reino do Gral, Amfortas, foi ferido pela santa Lança, o que o impossibilita de olhar na direção do Gral. Trajado e penteado à César moribundo, Amfortas anseia pelo santo tolo, o Idiota das profecias que curará o reino. O velho cavaleiro Gurnemanz, coro grego da peça, lamenta a ferida do rei, resultado de um ataque de Klingsor, cavaleiro caído e revoltoso luciferino que se apoderou da Lança, e cujas obsessões sinistras o levaram a castrar-se erigindo um castelo e trono próprios (atente-se nas cabeças decepadas no décor). Titurel, pai de Amfortas, aqui encarnando Ludwig II da Baviera (rei patrono de Wagner), comunica com o filho além do túmulo. Kundry, mulher vista com desconfiança pelos habitantes do reino dado o seu comportamento desviante misto de bruxa nórdica com Lilith tempestuosa, regressa da Arábia com o bálsamo para a ferida. No meio de tudo isto, surge Parsifal em estado proto amnésico, com a única certeza de ter matado um cisne, assumindo a culpa como um infante inocente num reino que lhe é totalmente desconhecido. Está formado o quadro da ópera, tapeçaria medieval com pinceladas de mestres da Renascença tal é a sugestão no contorno e na forma.

E o Gral? O que é o Gral? Várias coisas. Um caminho nunca viajado que ultrapassa o tempo e o espaço. Uma iniciação na qual se é o próprio guia. Um corpo imaterial. Uma visão de olhos fechados. Parsifal e Gurnemanz atravessam o corredor, de um lado a Valquíria, do outro a Santa Mãe, está consumada a viragem. Sim, Wagner abraça a fé cristã, sem nunca a assumir. Em gesto deliberado, a câmara parece ser guiada pelo ânimo das personagens até nos apercebermos da repetição de um gesto técnico. Primeiro recuamos para o plano geral, contemplamos a ação, de seguida, aproximamo-nos em travelling ao ritmo da música para pertencermos a essa mesma ação. Haverá melhor prova que o coro dos cavaleiros do Gral, conclusão do baptismo não oficial de Parsifal e, por arrasto, nosso? Atentemos nas palavras dos cavaleiros:

Nehmet vom Brot,                                                       Tomai o pão,

wandelt es kühn                                                           transformai-o corajosamente

zu Leibes Kraft und Stärke;                                        para a força e vigor do corpo;

treu bis zum Tod;                                                         verdadeiro até à Morte;

fest jedem Mühn,                                                         firme em todos os esforços,

zu wirken des Heilands Werke!                                 para fazer a obra da Salvação!

 

Nehmet vom Wein,                                                       Tomai o vinho,

wandelt ihn neu                                                            transformai-o de novo

zu Lebens-feurigem Blute,                                         em sangue vivo e ardente,

froh im Verein,                                                              em alegre comunhão,

brudergetreu                                                                 fiel à fraternidade

zu kämpfen mit seligem Mute!                                 Para lutar com coragem abençoada

 

O mancebo de cabelo desgrenhado, hesitante, receoso e deslumbrado com o que se lhe oferece, ganha força. As figuras românticas não se levam muito a sério, antes acreditam seriamente na palavra e no ato. Ele será o Idiota que procuram, como Cristo, como Quixote. Alternando entre os prantos do rei combalido e a iniciação do moço por Gurnemanz, cavaleiros, escudeiros e restantes elementos do reino, o filme reforça a pujança alquímica do trajeto de Parsifal através do uso da cor, que, em certa medida, se assemelha às criações cinematográficas de Powell e Pressburger.

Não se fazem heróis e santos apenas por palavras bonitas e princípios valerosos. No episódio mais sagazmente espantoso de todo o filme: a tentação de Parsifal, Klingsor transforma as flores do jardim do seu palácio em belas donzelas. Syberberg catapulta as frases maníacas do coro num festim do mais diabólico dos ilusionistas. O palco é agora um labirinto. As flores imóveis perseguem o rapaz num nevoeiro intermitente, pesadelo entre Cocteau e Bosch. Tudo é irresistível, multiplicam-se as flores, multiplica-se a forma. A obra de arte total propalada pelo ritmo wagneriano assume a arquitetura, o teatro, a pintura e a escultura num cruzamento maniqueísta até alcançarmos Kundry… Não há didatismo possível neste cinema em que a planificação é organizada como constelação, resta-nos olhar para cima e perdermo-nos.

Diminuendo na fúria do delicatessen. Kundry reaparece como vértice da tentação de Parsifal. Revelação como espia do vilão Klingsor ou como imagem verdadeira do desejo adormecido do jovem cavaleiro? É aqui que temos de falar de Nietzsche, cuja cameo como cabeça decepada no trono de Klingsor, a par de Ludwig II, Marx, ou o próprio Wagner, não é por acaso. O beijo entre Parsifal e Kundry seria o culminar da vontade dos dois, no entanto, é a porta de passagem definitiva para aquilo que o filósofo entende como a neurose religiosa associada à solidão, jejum e castidade (ver “Para além do Bem e do Mal”). Parsifal grita o nome de Amfortas após o beijo de Kundry, ou seja, acima da sedução a tal sensação de sofrimento partilhado. A ferida do rei é mais importante para a demanda que a carícia, mas em que consiste o beijo de Kundry, segredo nunca revelado pelo compositor?

Nietzsche insiste que se nega a própria vontade em nome da Salvação, projeta-se na penitência uma força superior e, obviamente, tem-se a mulher como totem de santidade e nunca de desejo. Amar o próximo por amor a Deus, condição que o filósofo não perdoou ao compositor que tinha matado os deuses e criado em Siegfried e Brunhild ou Tristão e Isolda provas de Amor sem necessidade de bênção ou desvio santificador. Ter a castidade como insígnia não é assim tão distante da mutilação autoimposta por Klingsor, daí a desilusão de Nietzsche que via Wagner capitular, apesar de forma tremendamente sensual em que o fazia, perante o altar cristão.

Como finta o realizador esta crítica válida a Parsifal e Wagner? Siga-se o mote da trama. Mais que a morte, a sensualidade ou a regeneração, a transformação é a grande constante da ópera. As flores em donzelas, o cavaleiro em eunuco feiticeiro, a lança em cruz, o pagão no cristão. Parsifal passa de moço desgrenhado para rapariga de cabelo alinhado, transforma-se ou multiplica-se? Eis a questão. Antes do beijo temos Kundry, sedutora e forte, no lado esquerdo do plano, face ao Parsifal perplexo e absorvido no lado direito. Troquem-se os papéis! Agora é Parsifal, feminino e obstinado a ocupar a esquerda, enquanto Kundry tenta mais um beijo pela direita. De nada valerá. A sede de prazer também será transformada em aceitação da castidade por Kundry que, impregnada pela graça do cavaleiro, trocará as suas vestes da cor das folhas de Outono pelo manto azul mariano.

Talvez a nobreza da castidade e o caminho escorreito deste novo Parsifal seja uma forma mais lúcida de entender o erro de toda a existência. Já não hesita. Temerário, não pergunta, afirma. As outras personagens reconhecem-no, porém, a postura perante Parsifal não é a mesma. Tem a devoção de Kundry e o respeito de Gurnermanz. Impenetrável a sensações, só a palavra do Redentor interessa, tudo o resto são falsas fantasias. Veja-se como este Parsifal recusa Kundry, mas não a rejeita. As performances fabulosas das atrizes transformam uma discussão amorosa numa troca de argumentos sobre a vida e o mundo. A vingança de Klingsor é de somenos importância face ao novo conhecimento atingido.

O filme não deixa que o nosso protagonista esqueça quem é e várias vezes vemos juntos o Parsifal cor de bosque erguendo a lança nórdica e o Parsifal cor de leite ostentando a lança com a cruz. No abraço cúmplice entre os dois mundos o realizador alcança uma grande clareza, fazendo jus ao prelúdio da abertura.

Os mortos cantam. A máscara mortuária de Wagner, cenário de partes do filme, deita fumaça branca. Esclarecidos, continuamos com imensas dúvidas. Para onde seguir? Qual é o nosso mundo? O que Kundry segura nos braços, qual mão que embala o berço, ou será a roca máquina do mundo camoniana a que Parsifal nos conduziu? Se multiplicação e transformação do palco e personagens foram motes do filme, foi com intuito de abarcar tudo, o sagrado e o profano, o rio e o bosque, Parsifal e Kundry.

Enfim, sempre que um burguês enfadado declarar a morte do cinema, Parsifal verá nesta uma oportunidade e atento com a lança, proclamará: É a Hora!

 

Parsifal, de Hans-Jürgen Syberberg, passa no próximo dia 28 de Junho, na Cinemateca Portuguesa, no quadro de um ciclo permanente em torno das escolhas de Bénard da Costa.

Eduardo Magalhães