Para Dentro dos Véus da Morte: Uma Conversa com David Cronenberg sobre The Shrouds

Rafael FonsecaAbril 29, 2025

Em Novembro passado, no contexto do LEFFEST 2024, Lisboa foi um dos primeiros lugares do mundo a ver The Shrouds, de David Cronenberg, filme exibido pelas primeiras vezes em contexto de festival em Cannes, Toronto e Nova Iorque. A obra mais recente do realizador – um dos mais celebrados do mundo – vai agora estrear nestes próximos dias pelo planeta fora, e dia 1 de Maio em Portugal. Na conferência de imprensa que se seguiu às exibições exclusivas e esgotadas no São Jorge e no Nimas, no final deste Outono, alguém perguntou ao realizador de 82 anos se este filme configurava um regresso ao body horror. Cronenberg respondeu: “Francamente, não sei o que é o body horror. Sou aparentemente o padrinho do body horror, mas não sei o que isso é”. É uma réplica notável, muito simpática, a uma das perguntas exasperantes e preguiçosas que, aqui e em toda a parte, voltam com esta etiqueta a ecoar a teimosia geral e vagamente inexplicável de nomear assim uma obra que, como bem diz Nathan Lee, no MUBI Notebook, não produz um filme de terror desde 1986 (A Mosca). Recordemos o fotão hipnagógico em Videodrome – Experência Alucinante (1983), o jogo do mundo de eXistenZ (1999), o pulsional em crise em Crash (1996), o conceptual em crise em Cosmopolis (2012). Peçamos, de facto, como apela Nathan, uma moratória ao corpo enquanto coisa, destituída de psicologia. Voltará até nós, prenhe de significado, pela calada.

Terry (Diane Kruger) e Karsh (Vincent Cassel) conversam durante a noite em The Shrouds

Em The Shrouds, Karsh (Vincent Cassel) sonha com o corpo da falecida esposa, Becca (Diane Kruger). No seu estado de vigília, ocupa o tempo com praticamente o mesmo assunto: Karsh é um antigo “produtor de filmes industriais” que nos últimos tempos se tornou dono de vários cemitérios de luxo. É na verdade o criador dos “sudários”, ou shrouds, uma tecnologia funerária de ponta, dirigida aos muito ricos, que permite, através de sensores e câmaras, um acesso constante e em tempo real aos restos mortais dos entes queridos dentro dos caixões, seja por app, desktop, ou através de um ecrã colocado na campa. É nesta vigilância assídua que descobre uma espécie de estranhas calcificações douradas no cadáver já bastante decomposto da esposa. Não parece haver uma explicação clara: assim o desabafa com Terry, irmã de Becca, também interpretada por Diane Kruger, e com Maury (Guy Pearce), ex-marido desta. Uns dias mais tarde, o luxuoso empreendimento onde Becca está enterrada é vandalizado por uma facção desconhecida de indivíduos. Intensifica-se assim a pressa de Karsh para compreender o que se está a passar: quem seria capaz de vandalizar assim as campas? O antigo médico de Becca, que a tratou antes e durante o cancro, a tentar tapar algum rasto de maleficência? Espiões industriais, jovens delinquentes sinistros, os russos ou os chineses? Maury? Talvez uma sinuosa cabala entre Budapeste e Reykjavik – duas cidades interessadas em ter para si um dos cemitérios de Karsh: pode ser tudo e nada.

David Cronenberg na conferência de imprensa em Lisboa sobre o filme

No auditório do hotel da Lapa onde se realizou o evento, perguntei a Cronenberg: “Porquê o labirinto?” – Tem tudo a ver com “o luto, e a reacção ao luto”, diz. O realizador, que afirma ser “um ateu existencialista”, aponta como, na sua experiência, na sequência de um falecimento insuportável, as pessoas indicam frequentemente que existiu uma negligência no hospital, ou um mal-entendimento da parte dos médicos – que o especialista não foi o mais indicado, que o médico não gostava do paciente, que os medicamentos não eram os certos, que havia alguma intenção por parte das grandes farmacêuticas. “Há imediatamente, sempre, uma sensação de culpa na pessoa que sobrevive, e a sensação de que tem de haver uma razão para este evento completamente destituído de razão. A minha sogra, a mãe da minha esposa, tem 97 anos, ainda está viva. Porque é que ela está viva e a minha esposa não?”  Quando a perda é absurda, o luto leva-nos às orlas – ou às profundezas – da conspiração. Isto é capaz de conferir-nos algum poder: os outros não sabem aquilo que nós estamos na iminência de descobrir. Mas esta situação é “confusa, e nunca satisfatória”; “O filme torna-se muito subjectivo, em vez de ser objectivo”, explica-me o realizador.

Karsh embrulha-se nas mortalhas que criou, para experimentar a sensação, em The Shrouds

A temática e trama de The Shrouds ligam-se directamente com a situação e luto pessoal de Cronenberg. A sua mulher faleceu em 2017. Os dois estiveram juntos quarenta e três anos. O actor Vincent Cassel, diz-nos, sentiu que era suposto interpretar o próprio David, e Cronenberg foi cúmplice: pediu-lhe que tentasse ter um sotaque de Toronto, de onde o realizador é natural. Todos, de resto, vimos o penteado do protagonista e tecemos as nossas ilações.

Há um excerto interessante na conversa recente com o LA Times – Cronenberg refere que leu “O Ano do Pensamento Mágico” de Joan Didion, sobre a morte do seu marido, e que não se identificou com a experiência de luto descrita: “Didion praticamente não menciona o corpo do marido. É como se nunca tivessem tido sexo e como se a perda disso não significasse nada.” No filme, Karsh diz a Maury, quando este o visita em casa: “Eu amava mesmo aquele corpo. O corpo dela era o mundo. O significado e o propósito do mundo. Não creio que o consiga explicar”. É um sentimento incrivelmente pungente; o corpo e o sexo conhecidos de cor durante décadas: mortos. Karsh embrulhou a sua esposa nas mortalhas para que pudesse estar sempre a olhar para o seu corpo, em casa, no telemóvel, presumivelmente até ao dia em que este desapareça. Cronenberg rejeita completamente que o filme tenha inclinações espirituais: “O mais próximo que tive da morte foi a ser operado, com anestesia geral. Não sonhamos, desaparecemos.” Depois da morte, diz-nos, não acontece nada. 

De todas as suas qualidades, aquilo que nos parece mais impressionante em The Shrouds é o facto de ser – também – uma comédia: uma comédia ao seu estilo, claro. Como todos os grandes mestres, Cronenberg compreende que a comédia é a arena mais elevada onde se pode esgrimir – o absurdo atinge um estado gasoso: isto não é possível sem o riso. Cronenberg diz ter ficado agradado por saber que na sessão do São Jorge houve muita gente a rir – não acompanhou a sessão, estava a jantar. Em Toronto e Nova Iorque, também se riram muito, recorda, mas de formas diferentes: “The Shrouds é muito um filme de Toronto. Riram-se de coisas que vocês não iam perceber do que é que se estavam a rir, porque são tão Toronto, tão específicas de Toronto. Em Cannes sinto que não se riram o suficiente. Não é uma audiência normal… há distribuidores… há dois conjuntos de legendas – são muito respeitosos, há glamour, tuxedos, e acho que pensam que estão a faltar ao respeito se se rirem.”

The Shrouds principia-se no encontro que Karsh está a ter com uma mulher num restaurante de que é dono, nos terrenos do cemitério. Conta-lhe que o corpo da esposa está enterrado ali ao lado. Não é dita piada nenhuma: para certas inclinações, é potencialmente hilariante, sem deixar de ser nada das outras coisas. Este equilíbrio extraordinário está sempre nos filmes de Cronenberg: aquela sequência no último acto de Uma História de Violência (2005) onde Tom visita Richie no seu castelo; tudo o que em eXistenZ envolve viscosidade e orifícios – mas na obra desta fase final da sua vida, o tom está mesmo em ponto de rebuçado: Cosmopolis é um filme hilariante de fio a pavio, o que é extraordinário dado que também é fascinante e hipnótico na mesma duração de tempo. Crimes do Futuro (2022), que para mim foi como uma revelação quando o vimos aqui em Lisboa, há uns anos, é um filme também profundamente bizarro – causa um riso cristalino e desconcertado – em simultâneo com tudo o resto. O mesmo trabalho de mestre continua em The Shrouds: “Sem humor, acho que não há vida para se viver. A vida é engraçada, entre outras coisas”, conclui o realizador.

Quanto ao terror, basta-nos a medicina: “Uma vez que a pessoa está dentro de toda a máquina do tratamento médico, é bastante horroroso. E para mim isso é realista, e por isso não é propriamente body horror. É só realismo – é um filme muito realista.”

The Shrouds vai estar nos cinemas agora durante o mês de Maio. Embora com compreensíveis dúvidas anímicas (Cronenberg desabafou na mesma peça do LA Times que “o mundo não precisa do seu próximo filme”) – existe um projecto a ser trabalhado, isso é garantido – falou-nos a nós, por alto, no LEFFEST e confirmou recentemente à Variety. Trata-se de uma adaptação do seu próprio romance, Consumed; existe uma tradução (em português do Brasil), recorda. Diz que, de qualquer modo, o podemos comprar no Kindle. Até lá, ficamos nas salas com este filme de véus e ilusões, e mais uma obra-prima do grande mestre.

A Tribuna do Cinema gostaria de dirigir um agradecimento muito especial a David Cronenberg, a António Costa, a toda a direcção e responsáveis de produção do LEFFEST 2024, e a Andreia Mayer, responsável pelas fotografias.

 

Rafael Fonseca