Ainda que só tenha sido codificado como género a partir de Dracula (1931), de Tod Browning, o Terror existe no cinema há mais de 100 anos e tem sido, ao longo das décadas, um dos grandes laboratórios do seu desenvolvimento. Se, por um lado, as suas características transgressivas sempre conferiram, a quem o trabalhou, uma rara liberdade de movimentos na exploração de diversos temas a partir de um ângulo de negatividade – da natureza humana às mais variadas questões sociais – a perceção de “género menor”, junto de crítica e grande público, abriu caminho a muitos cineastas para experimentar e expandir a forma da Sétima Arte. Não é por acaso que encontramos, de Murnau a Carpenter, alguns dos mais lendários efeitos especiais, que, mais tarde, vieram a ser aceites e absorvidos pelo cinema mais “convencional”. É igualmente notável a forma inventiva como tantas obras de Terror serviram como documentos valiosos dos tempos e geografias em que foram produzidos, capturando de forma oblíqua a sua verdade. Por estas razões, este é um género particularmente querido pela equipa da Tribuna do Cinema. Reconhecemos, como tantos espectadores e cinéfilos, o contributo indelével que deu ao nosso médium preferido e temos especial prazer em descobrir alguns dos seus espécimes menos conhecidos. É esse prazer que propomos partilhar, neste Halloween, contribuindo para o enriquecimento das maratonas dos nossos leitores. Assim, deixamos aqui as nossas propostas de horrores fora do cânone, para deleite e calafrios de todos.
Let’s Scare Jessica to Death (1971) de John D. Hancock
Situado na riquíssima paisagem cultural do cinema independente americano dos anos 70, Let’s Scare Jessica to Death incorpora a veia experimental e crua do seu tempo e lugar, com uma narrativa solta e foco nas dinâmicas relacionais entre personagens, remetendo para um contexto social mais abrangente. Notável pelo aproveitamento dos seus modestos recursos, é filmado num estilo naturalista, semi-documental, que captura tanto a beleza e ritmos do mundo rural como o seu isolamento, construindo paulatinamente o sentimento de tensão que as personagens citadinas irão enfrentar. Esta história de fantasmas acompanha Jessica, acabada de sair de um hospício. O marido – hippie, mais velho – leva-a para viver numa grande e antiga casa campestre, afirmando que um estilo de vida mais ligado à natureza e ao trabalho no campo será benéfico para ela. Contudo, não vão sozinhos, e a promessa de uma vida idealizada em comunidade off the grid rapidamente se transforma num pesadelo de medo e paranóia, amplificado pelo estado mental de Jessica, a forma como é tratada pelos co-habitantes e o aparecimento da misteriosa Emily. O mergulho no tumulto psicológico de Jessica é o ponto forte, com um trabalho de câmara que emprega ângulos pouco convencionais e planos longos que deixam as imagens bizarras povoar todo o nosso imaginário. Contudo, há mais para absorver, tanto na estética american gothic via psicadelismo, como nos temas aflorados sobre a história e sociedade americanas num dos seus períodos de maior tensão, mudança e interesse. Uma verdadeira pérola a descobrir.
Gil Gonçalves
White of the Eye (1987) de Donald Cammell
Horror por um xamanismo perverso. White of the Eye abre numa aguarela delirante: dezenas de planos em segundos, confundindo os sentidos, apresentam um crime como se de uma revelação artística se tratasse. Manipulação ou verdade? Nada é verdade, tudo é permitido. Neste filme-tapeçaria há uma crença oculta na arte como destino do Homem. O problema coloca-se na materialização dessa mesma arte. Procura-se, então, encurralado entre o lixo dos anos 80, a interminável highway americana e os ecos de um passado atravessado por bestialidade (ainda conseguimos ouvir os índios e cowboys), um serial killer improvável. A violência surge como catalisador do seu génio. As boas maneiras, a família e tudo o resto são fachadas que coíbem uma performance cristalina e lúcida. É este horror – ter a verdade como parte de uma crença que exige chacina – que convoca o abismo, que acorda com um sorriso de aparências quando esconde, putrefacta, a matéria de uma caça inenarrável na mesinha de cabeceira. À medida que chovem pensamentos inimagináveis, lágrimas de uma mulher desembrulham este pesadelo. Fugir, fugir é a única solução… Como sair desta provação demoníaca? Donald Cammell, mago dos espelhos e arauto da ultimate performance, dá a chave com uma enorme explosão. Nunca tal fez tanto sentido, destruir o horror sem o perder de vista.
Eduardo Magalhães
La corta Notte delle Bambole di Vetro (1971) de Aldo Lado
Corpos esvaziados por detrás de uma cortina de ferro. Um giallo em estilhaços, com rasgos de onirismo, onde um repórter americano (Jean Sorel) se perde pelas ruas de Praga num enredo profundamente… kafkiano. A busca por Mira (Barbara Bach), a bela bambola misteriosamente desaparecida no silêncio da noite, a partir das memórias de um “morto” assombrado pelo desejo. Fragmentos de uma fuga frustrada, numa cidade adormecida, labiríntica (com belíssima fotografia urbana acompanhada de aliciantes experimentações sonoras de Morricone), onde nada parece fazer grande sentido. Bambole di Vetro (ou “Short Night of Glass Dolls”) é uma curiosa parábola política, onde uma sinistra sociedade de velhos (“figure di cera…” como lhes chamara Mira) extrai a essência dos seus jovens, cortando-lhes “as asas”. Esta será talvez a proposta menos “fora do cânone” nesta lista. Mas se Aldo Lado faleceu discretamente em novembro de 2023, poucos o colocariam, ainda hoje, junto aos três grandes nomes do giallo italiano : Argento, Bava, e Fulci. Corta Notte alerta-nos, enfim, para esse lapso. De uma profusa inventividade formal e de um apurado sentido estético, um filme que explora a impotência do indivíduo às mãos de uma sociedade de opressão. E contando “outros” tempos de paranóia, se uma saída parece por momentos se anunciar, vemo-la progressivamente mais distante, porque o desenlace cedo se revela uma concreta fatalidade.
Miguel Allen
Hagazussa (2017) de Lukas Feigelfeld
A história começou no Motelx de 2018 quando Lukas Feigelfeld apresentou Hagazussa, a sua primeira, e única, longa metragem até à data. Numa altura em que o folk horror estava provavelmente a atingir o seu auge (contemporaneamente falando), Feigelfeld filmou a história de uma jovem que vive isolada da sua comunidade no séc. XV, algures nos Alpes austríacos, após a morte da sua misteriosa mãe que os aldeões acusavam de ser uma bruxa. Na realidade a descrição narrativa serve apenas como moldura mística para a experiência sensorial perturbante e atordoante que Hagazussa constrói durante 102 minutos de hipnotismo. O espectador é transposto para a rotina desta mulher isolada, herege, inevitavelmente comparada à sua mãe, sugerindo-se até a sua convivência com o diabo. Observamos a natureza que a rodeia nas montanhas, em lume brando, sempre atmosférico, vertiginoso, construindo o horror camada sobre camada, em direcção ao clímax visceral que esteve a cozinhar em pano de fundo. Hagazussa não é um filme para todos os espectadores nem para todos os estômagos. Lukas Feigelfeld, o realizador austríaco, captura imagens (e também cores, como que tubos de ensaio repletos de químicos) inesperadas, aliadas a uma banda sonora rastejante e húmida, constantemente compenetrando o espectador no seu cenário paisagístico bucólico e fantasmagórico, com uma pontual palete de cores que nos transporta à alucinação e à paranóia. No seu clímax, o ritmo lento caminha para algo de doentio, provocando habilmente o espectador ao ponto de abandonar a sala ou, hoje, mexer no telemóvel. Como se disse atrás, Hagazussa não é para todos os estômagos, mas é uma das mais interessantes experiências sensoriais que o horror contemporâneo tem para oferecer.
David Bernardino
A Dark Song (2016) de Liam Gavin
Lançado em 2016 sem grande estardalhaço, A Dark Song (ou Vozes da Escuridão) é uma pequena pérola de baixo orçamento – uns modestos 50 mil dólares – que rende mais do que qualquer blockbuster. Com tão pouco para gastar, há que ter criatividade, e é isso mesmo que o filme nos oferece: com localizações contadas e um elenco reduzidíssimo, cria-se uma entrada genuinamente original no folk horror. A história gira em torno de Sophia, uma mãe destroçada pela perda, que, num último ato de desespero, recorre a um ritual antigo e exigente para buscar respostas. Para isso, contrata Joseph, um ocultista endurecido pela vida e pelos seus próprios demónios, que a guia ao longo do processo. Enclausurados numa casa isolada, os dois iniciam o ritual de Abramelin – sim, um ritual real, documentado num livro do século XVII. Diz-se que até Aleister Crowley (o famoso ocultista britânico) tentou completá-lo e falhou, tamanha é a sua dureza. Esta carga quase histórica dá ao filme um ar de “manual” credível de ocultismo, sem perder a ligação a temas banais e difíceis, como o abuso, o alcoolismo e a depressão.
Assumindo o ritual como centro da narrativa, A Dark Song não pretende ser um filme de sustos fáceis. Prefere, antes, tornar-se numa jornada lenta e angustiante pela mente e pela alma de ambos os protagonistas. Não há truques nem atalhos; o que se conquista, é à força. Cada deslize, cada passo em falso, traz consequências. Em vez de nos transportar para o terror de aldeias remotas ou de cultos sombrios, como é comum no folk horror, o filme coloca-nos num único espaço fechado: a casa onde o ritual decorre, numa experiência prolongada e claustrofóbica. E por baixo de toda a magia e cerimonialismo, palpita uma história humana de luto, de arrependimento, e da procura desesperada pela paz. Aqui, o horror não se resume ao sobrenatural, mas aos abismos da dor que alguém pode suportar para lidar com a própria tragédia.
Esta abordagem, emocionalmente complexa, faz de A Dark Song um filme digno de ser visto – lento e metódico, exige-nos tanta atenção quanto o ritual de Abramelin exige aos personagens, mas devolve-nos essa atenção com doses invejáveis de atmosfera, tensão e reflexão.
Carla Rodrigues
The Legend of Sleepy Hollow (1949) de Clyde Geronimi & Jack Kinney
Quando chega o Halloween, recordo-me sempre dos filmes que me aterrorizaram em criança. Lembro-me do sangue a escorrer pelo tecto em Candyman (Bernard Rose, 1992) e dos encontros com os mortos em The Sixth Sense (M. Night Shyamalan, 1999). Ainda hoje mexem comigo estes filmes, bem como o menos conhecido The Adventures of Ichabod and Mr. Toad. Este filme de animação foi produzido por Walt Disney em 1949 e consistia numa longa-metragem composta por duas curtas, ambas baseadas em clássicos da literatura. A primeira curta era uma adaptação de O Vento nos Salgueiros, conto infantil com ratos, toupeiras, texugos e sapos. A segunda, em completo contraste, transportava para o ecrã o fantasmagórico The Legend of Sleepy Hollow, de Washington Irving.
A história é a de Ichabod Crane, professor e novo residente da vila de Sleepy Hollow. Como é habitual nos títulos da Disney, o tom é jocoso e são vários os momentos musicais que ilustram a chegada de Ichabod, a sua injecção cultural aos moradores, e a sua instantânea paixão pela bela e abastada Katrina. Será precisamente numa festa organizada por ela que Ichabod ouvirá falar do Cavaleiro Sem Cabeça. O que se segue é um encontro fatídico e uma sequência verdadeiramente aterradora… que termina em aberto. O filme sugere-nos dois possíveis desfechos: um feliz, outro fatal. Ainda me lembro bem em qual dos dois acreditava.
Pedro Barriga
Apaches (1977) de John Mackenzie
Apaches é um filme comissionado pelo governo britânico com o intuito de alertar as crianças que vivem nas zonas rurais dos riscos inerentes ao normal funcionamento das máquinas agrícolas. Com uma considerável pitada de humor negro, o realizador britânico John Mackenzie transforma esta premissa numa perturbadora curta-metragem filmada segundo os códigos do género. A encenação das brincadeiras das crianças aos “índios e cowboys” aproxima-se efetivamente à de um verdadeiro western. Paulatinamente cada uma das crianças vê-se tragicamente envolvida em acidentes provocados pelos tais riscos. Mackenzie vai ludibriando as expectativas do espectador detendo a câmara nas principais fontes de perigo, ainda que nem sempre se concretize o desastre anunciado. Mais do que as mortes propriamente ditas o mais aterrador em Apaches é a ausência de luto. Vemos as roupas a serem retiradas dos armários, ou o material da carteira da escola, mas logo de seguida a brincadeira das restantes crianças prossegue, como se nada tivesse sucedido, como se simplesmente a morte fizesse parte da rotina daquele lugar. Os créditos finais do filme são compostos por nomes de jovens que efetivamente faleceram em circunstâncias análogas às ilustradas na curta-metragem, com referência à idade e à causa de morte de cada uma, um derradeiro e aterrador soco no estômago.
Bruno Victorino
Celia (1989) de Ann Turner
A nossa noção do conceito de folk horror está predicada na ideia de que há algo profundo e indelével por detrás dos costumes e hábitos das sociedades modernas. Nem sempre será fácil de perceber exactamente do que se trata ou até se existe algo no passado que nos define dessa forma, mas a noção do indefinível é sempre uma constante.
Honestamente, não sei dizer se Celia (1989) será mesmo uma relíquia de folk horror australiano, ou sequer se será de facto um filme de terror. A Severin Films reeditou Celia há três anos como parte de um compêndio de filmes de folk horror intitulado de All The Haunts Be Ours. Por outro lado, Ann Turner, a realizadora, à data com apenas 29 anos de idade, sempre torceu o nariz à designação de Celia enquanto cinema de terror.
O motivo de Celia é logo convocado por uma das cenas iniciais, na qual uma professora primária lê a fábula The Hobyahs aos seus pequenos alunos, desde logo uma amostra da forma como Turner vai estabelecendo o mundo dos adultos como fonte de violência convergente com o quotidiano das crianças. The Hobyahs é um conto infantil que retrata o ataque de um conjunto de mostrengos a um lar de família: as caras aterradas das crianças na sala de aula perante o relato de um rapto que nunca chegamos a saber como acaba, o poder do invasor enquanto tropo do fantástico. A de Celia é uma dessas caras a quem a professora diz que não vale a pena contar o resto, já de tantas vezes que o fez em instâncias anteriores. Uma menina que vive na convergência do seu próprio crescimento enquanto pequena mulher, no contexto da sociedade profundamente patriarcal e paranoide da Austrália rural do pós-Grande Guerra.
A vida de Celia é marcada pela vividez dos seus sonhos acordados, ora viajando entre o imaginário fílmico do noir policial ou do terror grotesco, ora simplesmente na permanente convocatória da sua falecida avó. Mas mais do que os temidos Hobyahs, é o seu quotidiano que se vê preenchido de violência. A entrada em cena de novos vizinhos sob a forma dos afáveis Turners, de classe explicitamente média-baixa e pelo menos com simpatias pelo movimento comunista, despoleta um sentido de divisão em Celia que a força a encarar a hipocrisia da sua pequena comunidade. Na Igreja, é confrontada com homilias sobre o “perigo vermelho”. Em casa, com um pai profundamente conservador, primeiro a queimar as cópias de Marx que tinham sido propriedade da sua falecida avó, depois a proibir qualquer contacto com os Turners, os “outros”.
A repressividade tem efeito imediato e devastador nas cenas entre crianças, filmadas aqui por Turner com uma dinâmica e vivacidade extraordinárias. As crianças não são tanto extensões dos adultos, desprovidas de agência, mas actores decisivos de uma tragédia a três actos, cuja violência casual e descomprometida surge quase como uma crueldade para o espectador. Veja-se a narrativa da adopção do seu coelho, bizarra mas afectivamente apelidado de Murgatroyd, no contexto de uma brutal campanha de eliminação da população de coelhos selvagens pelo estado australiano.
Aos avisos seguem-se os tons alarmantes da propaganda no cinema (sempre o mundo real a entrar no imaginário), e a estes se seguem os simples actos de violência, interpretados com malvadez pura pelas próprias crianças. A perseguição e o rapto de Murgatroyd pelo grupo de miúdos rivais (como no conto The Hobyahs), a intimidação do tio polícia na insistência pela eliminação do pequeno coelho, a resposta brutal de Celia. A moralidade deste conto está patente na última cena: Celia já não é mais uma criança a lutar contra um mundo impiedoso, é apenas mais uma criança que aprendeu a conviver com ele. The kids are not alright.
Hugo Dinis