Oh it’s great to be in love ! Assim exclamava Maurice Chevalier à sua “Merry Widow” no clássico de 1934 realizado por Ernst Lubitsch. Todos estaremos tentados a concordar, é certo, mas o “amor” tem, infelizmente, muito mais que se lhe diga. Foi, então, com esta problemática na cabeça que a Tribuna se lançou numa abordagem curiosa ao artigo de Halloween de Novembro passado. Desses “outros horrores” passámos aqui para “outros amores” e vasculhámos novamente a cinefilia individual de cada um para encontrar propostas de cinema diferentes para celebrar este Dia de São Valentim. Aqui ficam as nossas nove sugestões de filmes de amor fora do cânone.
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Frágil como o Mundo (2001) de Rita Azevedo Gomes
Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta
Continuará o jardim, o céu e o mar,
E como hoje igualmente hão-de bailar
As quatro estações à minha porta.
Outros em Abril passarão no pomar
Em que eu tantas vezes passei,
Haverá longos poentes sobre o mar,
Outros amarão as coisas que eu amei.
Será o mesmo brilho, a mesma festa,
Será o mesmo jardim à minha porta,
E os cabelos doirados da floresta,
Como se eu não estivesse morta.
Quando de Sophia de Mello Breyner Andresen, in Dia do Mar.
Frágil Como o Mundo segue uma dada tradição do cinema português que assume uma estreita ligação com a literatura. Os créditos finais assim o confirmam, referindo que os textos do filme tiveram por base Sophia de Mello Breyner Andresen, Agustina Bessa Luís ou Luís Vaz de Camões. Mas é a Sophia que o filme mais deve. Não só pelas citações que dão, inclusivamente, título ao filme, mas pelo tom poético que atravessa a narrativa, temática e formalmente cúmplice da obra da poetisa. Vera e João, adolescentes que vivem o encanto do avassalador primeiro amor, vão-se encontrando fugaz e fortuitamente e trocando correspondência através de cartas enterradas junto a uma remota vedação. Sensivelmente a meio do filme, numa das cenas mais memoráveis – um plano geral fixo no alpendre da casa onde vivem -, Vera pergunta ao avô (João Benárd da Costa): “Avô, acha que alguém pode mesmo morrer de amor?”. Na sequência da pergunta, o avô conta-lhe uma lenda antiga de amor impossível entre uma princesa moura e um príncipe, que acaba por profetizar os desenvolvimentos da segunda metade do filme, integralmente passada por Vera e João, no seu idílico desaparecimento pelos confins da Serra de Sintra. Frágil Como o Mundo é um filme profundamente místico, envolto em permanente neblina. Raramente se viram tão retumbantes planos de pessoas deitadas no solo, no magistral preto e branco de Acácio de Almeida, diretor de fotografia e frequente colaborador de Rita Azevedo Gomes. Preto e branco que contrasta com a cor que pontualmente vai surgindo, como na belíssima sequência onde, através da sobreposição de imagens, vemos um jardim progressivamente florescer, em metafórica sintonia com os jovens protagonistas. A realizadora estabelece uma profunda comunhão com a natureza, uma organicidade latente na terra que se entranha nas unhas, no constante repousar dos personagens no solo ou nos corpos flutuantes e espectrais dos amantes no leito do rio. Tal como as ruínas que vão despontando ao longo do filme, testemunhas da passagem do tempo e invadidas pela força da natureza, também Vera e João se entregam à inescapável efemeridade do amor e da existência, na certeza de que “continuará o jardim, o céu e o mar”. Um dos mais belos filmes portugueses.
Chilly Scenes of Winter (1979) de Joan Micklin Silver
Nada como o imaginário idílico de Salt Lake City, Utah, para evocar imagens do mais puro e genuíno romance. Chilly Scenes of Winter é feito de ironias e contradições. Na sua essência, conta a história de uma obsessão amorosa protagonizada por um funcionário público com um emprego de escritório por uma assistente administrativa. O affaire entre os dois, evidentemente recordado por ambos em perspectivas diferentes, foi curto mas intenso. Pelo menos é esse o ponto de vista de Charles Richardson (John Heard), agora que o objecto da sua afeição o abandonou para regressar ao marido. Um ano depois, Charles é alguém cuja existência parece girar apenas em torno da sua fixação romântica por Laura (Mary Beth Hurt) e da relação de dependência da parte da sua mãe (uma apropriadamente extravagante Gloria Grahame). A sua condição é a de miséria amorosa auto-imposta: Charles revive cada pormenor da sua anterior vida íntima com Laura sob o prisma da nostalgia obsessiva e não será o emprego que o irá salvar tão cedo (“my job is to read reports, and then I write reports on the reports“).
Esta figura do homem obsessivo, miserável e mesquinho no amor é já um clássico quando Chilly Scenes of Winter estreia finalmente em 1979, editado sob o título de Head Over Heels com um final reeditado por ideia da United Artists e perante o desalento da realizadora Joan Micklin Silver e a indiferença global do público, dois anos depois do Annie Hall de Woody Allen. Com efeito, é difícil não ouvir o lamento de Charles de que “It’s not that it doesn’t still hurt; it’s just you get used to it” e não apanhar um pouco desse miserabilismo de Allen. Silver coloca o espectador deliberadamente na perspectiva de Charles, o abandonado, e cria uma empatia notável em torno da sua angústia silenciosa, gerindo silêncios, monólogos internos, e pequenos desesperos de dia-a-dia. Charles lamenta o isolamento ao vendedor de chocolates no rés-do-chão do edifício do seu local de trabalho, bebe vodka durante o dia de trabalho e usa o que sobra para regar as plantas, e pontua as visitas à mãe com vigias ao exterior da casa de Laura (um característico A-frame, de formato triangular) e do seu marido Ox. Este é o mesmo homem que Silver consegue humanizar quando, ao ser abandonado por Laura, pergunta “why would you choose someone who loves you too little over someone who loves you too much?” e recebendo “because it makes me feel less of a fraud” como resposta, ameaça que irá violar Laura.
Chilly Scenes of Winter é o filme ideal para se ver no inverno e sentirmo-nos miseráveis na nossa existência curta e solitária. Para Silver, seria apenas a sua quarta longa metragem depois da fabulosa exploração da assimilação cultural na imigração judaica americana em Hester Street, da adaptação do conto de Fitzgerald Bernice Bobs Her Hair, e da comédia jornalística Between The Lines, já com John Heard como protagonista. Seja no fim dos costumes do velho mundo judaico ou na morte lenta das redacções jornalísticas ferozmente independentes, Silver especializou-se na leve amargura de mundos em estado necrótico avançado. Esta morte é tornada muito real e evidente na personagem de Charles, mas é sobretudo levada a funcionar pela excepcional interpretação naturalista de Mary Beth Hurt, no papel de Laura. Enquanto alvo da obsessão de Charles, é por meio dos flashbacks narrados por Heard que Hurt cria uma personagem arrematada pela culpa do abandono familiar, projectando uma perda de direcção emocional característica das relações de ‘rebound’, mas sempre com uma afectividade tremenda.
Sobretudo por isso, talvez seja apropriado terminar com as palavras de Paul Schrader, marido de longa data de Mary Beth Hurt num dos seus peculiares posts no facebook, sobre o filme: “It was three years before we met but my attraction to her in this film was instantaneous. (…) The phenomes were bouncing around our flatscreen viewing room like some archaic Pong game“. Ao ver Chilly Scenes of Winter, compreendemos exactamente o que ele está a dizer.
C’était un rendez-vous (1976) de Claude Lelouch
Haverá algo mais romântico do que correr para os braços da nossa cara-metade? Em Paris, ainda por cima? Foi esta a premissa a que Claude Lelouch se propôs quando, no papel de condutor, acelerou pelas ruas da Cidade da Luz para se encontrar com uma rapariga. São 10 quilómetros percorridos em menos de 9 minutos, na madrugada de dia 15 de Agosto de 1976. Filmado em 35 mm num único plano-sequência, o filme serve de roteiro de Paris: o Arco do Triunfo, os Campos Elísios, a Praça da Concórdia, o Museu do Louvre, a Ópera Garnier, o Moulin Rouge, a Sacré-Coeur… O carro (invisível) é um Mercedes-Benz 450 SEL 6.9. Uma máquina literalmente imparável – os semáforos tornam-se meros espectadores da mais louca corrida do mundo. Fast and Furious who?
All That Heavens Allows (1955) de Douglas Sirk
A concepção conservadora do amor nos anos 50 colide com a paixão de uma abastada viúva pelo seu jardineiro, um homem muito mais jovem e terra a terra, provocando uma onda de indignação e reprovação entre os seus filhos e amigos. Nesta obra de Douglas Sirk, Jane Wyman e Rock Hudson são os representantes máximos da melancolia e estoicismo, ao abandonarem os confortos de uma certa ética da normatividade, para cair no abismo de uma selva desconhecida que é o romance tardio (e sobretudo entre duas classes sociais tão distintas). Este romance, inicialmente introspectivo, de Cary por Ron vai-se elevando na narrativa, pelo olhar gracioso de Sirk, através das direcções insondáveis a que o amor nos leva, numa experiência emocional tão tensa quanto cândida. O cineasta utiliza a saturação da cor e o contraste claro/escuro para comunicar as emoções das suas personagens, num expressionismo que transporta a sobrecarga emocional interior para o quadro e para os cenários. Os sentimentos quase transbordam das personagens para a paleta de cores e a sombra escura representa tão fielmente a repressão emocional, que por vezes quase suga a cor e a luz da imagem. São estes artifícios técnicos, bem como o recurso ao Technicolor, que transformam All That Heaven Allows numa pintura clássica, na qual cada folha de outono e cada árvore coberta de neve parecem um batimento cardíaco. O ritmo desta história, onde o amor não é ruidoso ou vistoso, mas sim terno e transformador, faz sempre valer o risco. Neste mundo, o amor pode ser a resposta à solidão, a cura para o vazio e a maior dádiva que a vida tem para oferecer, mas só se formos suficientemente corajosos para o aceitar.
Who Am I This Time ? (1982) de Jonathan Demme
Um par de actores amadores encontra na representação uma linguagem que desalinha a sua partilhada timidez. Harry (Christopher Walken) projeta as tiradas de Stanley Kowalski como quem atropela a realidade, clamando um novo Ideal. Despertada pelo violento furacão no actor com quem contracena, Helen (Susan Sarandon) ganha fôlego e replica com uma Stella lesta a amansar a fera.
Onde param as performances? A representação tem duração e parece limitada ao pano de boca. Hábil na découpage, Jonathan Demme vai simultaneamente germinando um romance que parte da atração dos corpos e não se esgota no olhar. Os dois continuam a esgrimir posições para deleite de George (Robert Ridgely), o encenador, aqui tornado primeiro espectador. Não será todo o realizador um público? Revestido de privilégios é certo. Porém, é difícil ter George como a mão que embala o berço, neste filme onde os protagonistas tomam a palavra como a peça de roupa que importa lentamente despir.
Entre invenções e variações, grandes e pobres execuções, os intérpretes desencontram-se. O maestro já pouco pode fazer, o concerto ultrapassou o palco e deu lugar à improvisação. Who am I this time? Harry absorto no alcance da sua voz. Who are We this time? Helen força-o a regressar ao elementar. Sílaba a sílaba nas mais diferentes passagens, como crianças a contarem o tempo ao baterem com a palma da mão nas carteiras, encontram o ritmo. Ritmo alcançado as emoções são agora visíveis. Ah, como seria mais fácil se todos nos chamássemos Ernesto…
Heartbeats / Les Amours Imaginaires (2010) de Xavier Dolan
Em “Heartbeats” (ou “Les Amours Imaginaires”, título bem mais apropriado), Xavier Dolan arrisca, com toda a impetuosidade dos seus 22 anos, transformar a velha história do triângulo amoroso numa experiência visual estilizada, quase saída de um editorial da Vogue (da melhor maneira). É um filme sobre paixão, mas também sobre a ilusão dela – sobre a forma como nos projetamos nos outros, como construímos narrativas e expectativas dentro das nossas cabeças. Marie e Francis, os dois amigos no centro do filme, não se apaixonam por Nicolas tanto quanto se apaixonam pela ideia de estarem apaixonados por ele. E Nicolas existe num limbo entre o divino e o banal, um efebo distante que tanto pode ser um ingénuo perdido na sua própria beleza como um mestre na arte do teasing emocional. Dolan nunca nos dá uma resposta concreta, e esse é um dos encantos do filme. A amizade entre Marie e Francis transforma-se num campo de batalha disfarçado de flirt, num jogo de rivalidade travado em câmara lenta e cores saturadas, ao som de Dalida e The Knife. Entre olhares furtivos e encontros “acidentais”, vemos um amor que não é correspondido porque, talvez, nunca tenha sido verdadeiramente oferecido – apenas fantasiado. Dolan filma tudo isto com uma devoção quase fetichista pela estética. Claro que há momentos em que o estilo ultrapassa a substância, onde as repetições estilísticas sugerem mais um realizador a testar os seus brinquedos do que um contador de histórias a aprofundar os seus personagens. Mas Dolan compensa com uma energia arrebatadora e uma banda sonora impecável que eleva cada frame e cria excertos de pura poesia cinematográfica. No fim, não há vencedores neste jogo de desejos não consumados. Apenas três pessoas que, de uma forma ou outra, se perderam nas suas próprias projeções do amor. E talvez essa seja a única verdade universal que Dolan realmente nos oferece: não nos apaixonamos por pessoas, apaixonamo-nos por ideias. E às vezes, essas ideias são tão bonitas que nem queremos saber da realidade.
Mes nuits sont plus belles que vos jours (1989) de Andrzej Żuławski
Neste dia dos namorados, surpreende a tua cara-metade com um dos grandes e últimos filmes de amor do mundo – só não é um “filme de ilha deserta” por uma tecnicalidade: passa-se em Biarritz, na costa sudoeste francesa, mesmo quase em Espanha; não é portanto exactamente peninsular, mas enfim numa praia, e no hotel junto à praia, cheio de vibes de Verão.
Mes nuits sont plus belles que vos jours (“As minhas noites são mais belas que os teus dias”, 1989), de Andrzej Żuławski, é o boy meets girl no acelerador de partículas suíço: os protagonistas apaixonam-se no minuto 2:00 do filme, num encontro incidental numa esplanada. Lucas, um programador informático, acabou de ser diagnosticado com uma doença neurológica que lhe está a afectar a linguagem: compreensões semânticas, esquecimento de palavras, o nome das coisas. Blanche é a jovem estrela de uma trupe de oportunistas que monta espectáculos em torno do seu talento: uma aparente habilidade especial para entrar em transes que lhe permitem saber tudo sobre os espectadores que pagam para a ver em hóteis e casinos – os conteúdos das suas malas, motivações secretas, futuros das vidas. Adicionalmente, nestes momentos, só consegue falar se estiver a rimar. Ora, se como diz Lacan, o inconsciente é estruturado como uma linguagem, então podemos começar a imaginar a diversão que está reservada para os nossos protagonistas, nos seus últimos dias de férias em frente ao mar a ver as vistas.
Blanche e Lucas, consistentemente perturbados por coisas que têm dificuldade em nomear (Blanche fala numa “pequena pessoa que está dentro da pessoa grande”) aproximam-se cada vez mais do paroxismo do seu desejo. No hotel de Biarritz, uma baronesa, um bagageiro anão, um concierge consciente e um coelho de peluche juntam-se à festa para a despedida final desta situationship condenada a priori pela natureza das palavras: “O amor é dar algo que não tens a alguém que não o quer” (Lacan, Seminário XII), e a linguagem, a conversa entre um e outro, mostra-se absolutamente insuficiente. De entre várias cenas fabulosas, há uma, depois da primeira noite juntos, em que Lucas desce à recepção só com uma manta amarrada à cintura, para pedir pequeno-almoço (em vez de ter telefonado), que captura com perfeição a liberdade que é experienciada na breve sobreposição entre o objecto e o nosso desejo. Como lhe diz o recepcionista: Está um homem novo. Aqui, no fim, não existem mais palavras, só a violência.
Mas não tem de ser assim. Podemos, neste dia de S. Valentim, olhar para o amor como aquilo a que Badiou chama Evento, uma surpresa radicalmente contingente, transformativa para quem participa nela; situada no tempo do “futuro anterior” – o tempo do que terá sido – e não é esse o tempo do amor? Mais importantemente, as características de um Evento tornam-no incalculável, vêm da “parte excluída” do mundo. Por isso, segundo Badiou, em relação a um Evento não podemos fazer nada do reino do cálculo racional: a acção é algo que só pode ser decidido, ou uma coisa ou outra. É o Es Muss Sein! (Deve ser!) de Beethoven citado por Kundera: o amor é portanto uma experiência ética. Dava um belo postal.
Modern Romance (1981) de Albert Brooks
A expiação (passageira…) de uma ruptura. Atormentado e teatral, Robert (Albert Brooks) rodopia pela sua vida até ao alpendre da casa de Mary (Kathryn Harrold), com quem rompera meros momentos antes. Quaaludes, vitaminas ou desporto, nada parece funcionar, e Mary continua sem atender o telefone. Insistente como uma criança mimada, carente como o mais opressivo dos homens, Robert é penoso, para todos os efeitos um perfeito narcisista egocêntrico. E, no entanto, não deixamos de nos enternecer (um pouco) com o seu desespero – aquela impagável cena no carro, com Ellen (Jane Hallaren), o seu date quase acidental, ao som de She’s Out of My Life – como não deixamos de nos identificar – a cruel verdade na comédia romântica – com os seus piores instintos. A experiência da ruptura virá, é evidente, exponenciar as mais recônditas inseguranças do protagonista. A relação amorosa tinha pouco de “saudável”, é certo, servindo sobretudo a necessidade de projeção individual daquele homem no seu objeto amado. Mas Mary gosta da girafa de peluche, e Robert pode mesmo mudar. Por isso, ela tudo lhe perdoa, mesmo quando este irrompe inadmissivelmente pelo seu jantar de negócios. E se o filme transporta os necessários momentos de enlevo apaixonado de qualquer comédia romântica, é sob uma carregada camada de cinismo que o titular romance encontra aqui um lugar. Já o sabemos, até porque ambos o assumem: Robert e Mary não funcionam juntos – uma no-win situation, como “a Guerra do Vietname”, nas palavras delicadas dele. Mas como deixar aquele rosto iluminado de Mary, como deixar aquela entrega infantil de Robert? Existe uma certa crueldade amarga na história, uma franca auto-depreciação (não invulgar em Brooks) neste retrato de forte neuroticismo masculino (poucas personagens se assumirão tão detestáveis assim desde o primeiro plano). Mas a voz de Joe Cocker enche já a faixa sonora, e com os dois finalmente juntos, talvez não nos queiramos preocupar com outra coisa. Eles são mesmo tão bonitos um para o outro. Uma banalidade dizê-lo, é certo, mas o amor faz-nos mal. Já a solidão, essa só seduz quem não se lembra de a sentir.
Honeymoon Killers (1970) de Leonard Kastle
A premissa do amor ilícito, fatal, literalmente explosivo, é-nos garantida, incontestavelmente, nos primeiros minutos de The Honeymoon Killers – o quadro inicial, uma espécie de ínfimo prólogo, apresenta, ainda que em pequena escala, as consequências do amor exasperado. Este mote é aprofundado através da relação entre Martha, uma enfermeira solitária, e Ray, um criminoso que ludibria mulheres com o objetivo de as roubar, relação esta que é fruto de uma troca de correspondência – a carta surge sempre como símbolo de crença ilusória num futuro radioso. Nasce, então, uma cumplicidade macabra entre os dois. Martha age estimulada pela promessa de um amor incondicional, de uma vida conjunta insuperável. Mas este idílio pertence a uma segunda narrativa simulada. O teatro de Ray consome-a, – o ciúme, combinado com o papel que tem de interpretar, colocam-na numa situação desesperante, que se adensa na sua interioridade – e as artimanhas que concebe para ter a sua atenção têm um caráter tragicómico, constituindo as partes mais avassaladoras do filme. A inquietação do presente sobrepõe-se cada vez mais – até que totalmente, culminando num esclarecedor, mas não libertador, momento final – à esperança no futuro, permitindo a desconstrução de uma série de condutas em nome do amor, que se vão revelando fingidas, tal como acontece com todos os discursos cuja futilidade é desmascarada. Um filme de culto excepcional, com base numa história real, munido de imagens que, em nenhum momento, permitem que vejamos o amor como manifestação de sentimentos deleitáveis, de vontades humanas bem-intencionadas; aqui entendemo-lo somente como a brutal capacidade de exercer poder sobre a vulnerabilidade, transformando-a na força motriz da obsessão.