Os Papéis do Inglês, de Sérgio Graciano: As Paisagens Propícias

Rafael FonsecaNovembro 4, 2024

Os Papéis do Inglês é um marco de significativa importância na actualidade do cinema português: comecemos assim. É-o em dois vectores distintos, simétricos: trata-se do primeiro filme de Sérgio Graciano produzido por Paulo Branco, condição que reveste esta longa-metragem, doze anos passados desde a sua primeira (Assim Assim, 2012), de uma propriedade nova e de uma aura inédita, estreante, uma configuração com valências múltiplas que foram certamente experienciadas em pré-produção e na rodagem, outras a acontecer neste momento – depois de estrear em Portugal no passado dia 24 de Outubro, o filme teve a sua estreia internacional em Tóquio cinco dias depois, com uma segunda passagem na capital japonesa este dia 1 de Novembro.

O segundo vector é o outro lado do primeiro: trata-se da mais recente produção de Paulo Branco fundada na necessidade de fazer certos filmes que ainda tem por fazer, num paradigma pós-Oliveira, pós-Raúl Ruiz, situado após um “desaparecimento desses monstros”, como explica a Vasco Câmara numa entrevista que é essencial para compreender o contexto que faz surgir Os Papéis do Inglês, um paradigma actual onde há também diferenças nas liberdades – diminuíram – que regem os adventos de uma produção, diferenças no ‘meio’ do cinema português, diferenças na forma como as coisas se fazem. Paulo Branco adaptou-se, e começou com A Herdade (Tiago Guedes, 2019) o projecto de um novo cinema de produtor: a busca, o encontro e a criação de condições com os cineastas certos para realizarem os filmes que ainda quer que existam no cinema. Este projecto continuou com A Sibila (Eduardo Brito, 2022) e O Pior Homem de Londres (Rodrigo Areias, 2024): prossegue agora com este filme de Sérgio Graciano, uma espécie de promessa, dívida, homenagem de Paulo Branco ao autor, cineasta e antropólogo Ruy Duarte de Carvalho.

Este projecto de Paulo Branco é único: para ele, a sua implicação nos filmes que produz é total, configura “uma ligação praticamente eterna ao filme” (Entrevista a À Pala de Walsh, 2020). Não existe no cinema português figura parecida. A importância deste projecto é também colossal: Branco é responsável por ter dado criação a muitos dos mais magníficos filmes da história portuguesa (Francisca, Silvestre, Agosto, Cinco Dias, Cinco Noites, 98 Octanas, mas são praticamente todos) e mundial (podemos elencar recentemente Cosmos, Cosmopolis, Mistérios de Lisboa, incidentalmente três propostas suas aos respectivos realizadores, para adaptações de Gombrowicz, DeLillo e Camilo, e três obras-primas) – e esta importância não se esgota quando o DCP, quando o filme está entregue. Através dos seus cinemas tem mostrado estes e outros filmes continuamente ao longo das últimas décadas, criando uma ininterrupção ímpar na revisitação, criação e regeneração de público. Novos estudantes chegam a Lisboa e têm as suas vidas alteradas com estas obras no Nimas – isto não é um exagero: aconteceu a mim e a outros. Dado este revestimento, todas as produções de Paulo Branco são de uma importância crucial, se não até crescentemente crucial; dado este revestimento, a colaboração com Sérgio Graciano resulta no filme mais importante deste realizador até à data.

E este é um filme de Sérgio Graciano, não haja dúvidas. Foi Graciano que esteve no Namibe – Paulo Branco não esteve presente na rodagem. A Vasco Câmara explica: “Senti a necessidade de não ir lá. A minha presença podia ser nociva. Ele tinha de construir o filme dele.” Graciano, um dos ou o nosso mais assíduo working director (realiza dois, três projectos por ano, entre filmes e séries de ficção) esteve no passado também em Angola durante cerca de dois anos, a trabalhar. Realizou novelas (Jikulumessu, Windeck), e uma longa-metragem (Njinga, Rainha de Angola, 2013) – conhece bem o país. Juntou-se também José Eduardo Agualusa, escritor e jornalista angolano, para o argumento, e foi-se preparando esta adaptação livre que Paulo Branco pretendia não de um único livro de Ruy Duarte de Carvalho mas de uma trilogia e mais além, de uma poética, de ficções, alter-egos e de memórias.

Miguel Borges (Kaluter) e João Pedro Vaz (Ruy Duarte de Carvalho)

A minha curiosidade era significativa, debruçada sobre circunstâncias pouco comuns. Este tratava-se efectivamente – sob lei de facto – do novo filme de um realizador estabelecido. É certo, não estabelecido no sentido daquilo a que podemos chamar –  para passar a expressão e chegarmos a partes do texto mais interessantes – uma “aclamação crítica”, ou uma pertença a um “cânone” cultural contemporâneo, como se diria de um Gomes ou Canijo, mas estabelecido em grande experiência de indústria e prática artística – e era precisamente este posicionamento que fervilhava em matéria de excitação perante esta obra: Sérgio Graciano, se o filme fosse bom, habilitava-se aqui a uma pequena reconfiguração no seu projecto de autor, um acrescento; produzido por Paulo Branco, este filme faria automaticamente parte de um campeonato diferente, incorporaria automaticamente uma nova textura.

Há muito tempo que eu não estava tão desarmado na sala de cinema, sem saber o que esperar, como no início deste filme. Explica-se o motivo: quase tudo o que tinha visto de Graciano até à data, com uma excepção a que voltarei, tinham sido séries de televisão, ou, no caso de Soares é Fixe! (2024), um filme retalhado a partir de filmagens para uma série de televisão. Nestas situações, tudo está mais ou menos refém de uma necessidade de legibilidade que é mais ou menos entendida por todos os encarregados da feitura destes produtos, da produção à montagem, à realização. Por exemplo: há uma escala de planos a ser feita para um diálogo, e é muito difícil escapar-se ao campo/contracampo. Convém haver movimento nos planos gerais, seja um ligeiro pan, um ligeiro tilt, ou um ligeiro avanço ou recuo com slider. Por exemplo, numa cena de grupo, estamos a ver em grande plano quem está a falar. Ou por exemplo, a passagem de tempo é ilustrada por stock shots, planos de drone, ou recursos semelhantes.

O que iria acontecer então em Os Papéis do Inglês, um filme onde nenhuma destas coisas tinha de acontecer, em tabula rasa no que toca a códigos exigidos por um formato, canal, ou expectativas de um público? Sérgio Graciano é conhecido por conseguir fazer bem muitas cenas por dia, preparado para produções desafiantes e com grandes constrangimentos. Mas aqui, Paulo Branco afirma ter querido “comprar-lhe tempo”. O resultado, felizmente, mostra-se de um grande valor. Não só Os Papéis do Inglês é um belo filme, ponderado, de robustas imagens e interpretações, como torna claro que qualidades de Graciano estão aqui em jogo, aquilo que noutros projectos fica, em nome de uma “legibilidade”, mais escondido: as forças idiossincráticas de um autor, que em Graciano nomeio sem dúvida, além de uma solidez técnica muito forte, patente na escolha precisa dos planos (aqueles belas sequências filmadas de carro sobre um outro carro, às vezes de trás, e não ficaria bem ao contrário, às vezes de frente – e não ficaria bem ao contrário; o belo travelling a pé a acompanhar Kappa a empurrar a sua moto, para dar alguns exemplos), além desta solidez, uma relação muito privilegiada com os actores.

João Pedro Vaz (Ruy Duarte de Carvalho) e Joana Ribeiro (Camila)

Estou a aproveitar-me de algum conhecimento exterior à obra: é sabido no meio que Sérgio Graciano é um realizador com que os actores e actrizes gostam muito de trabalhar. Mas aquilo que está visível na obra é a tradução desta característica numa disponibilidade significativamente directa ao trabalho do actor, maior do que se costuma ver noutros realizadores. Para os intérpretes, uma má-relação de comunicação com a realização, a precariedade de um guião ou um insucesso conceptual ou estético podem ser obstáculos a um grande desempenho, mucosidades num trabalho que se quer desimpedido. Em Os Papéis de Inglês, assistimos a uma espécie de planície aberta também entre nós e os actores: o resultado, grandes interpretações, jorram límpidas.

Não é uma qualidade nova: para a escrita deste texto revi Assim Assim, a primeira longa de Graciano, e isso já está lá, num filme que abre com um diálogo a quatro entre Albano Jerónimo, Cleia Almeida, Ivo Canelas e Joaquim Horta e que, estreado em 2012, já parece impossível de se refazer hoje, não por causa dos actores, mas por acontecer num Chiado à noite vazio; a longa é uma série de vinhetas entre pares e quartetos de actores completamente livres para fazerem um bom trabalho e esse bem-estar resultou já aí num bom filme. Em Os Papéis do Inglês, Miguel Borges está óptimo, João Pedro Vaz é fabuloso, os angolanos Délcio Rodrigues e Carlos Agualusa são uma fantástica surpresa, numa “história-dentro-da-história” que toma as rédeas do filme numa hora que é belíssima – Joana Ribeiro e Carolina Amaral também sem falha. De todo o filme, apenas uma única cena destoa, que é o pequeno-almoço em 1974 entre Ricardo Pereira, Joana Seixas e Vicente Gil: é uma cena tão breve que não há tempo, para o espectador, para que nenhum dos três desapareça dentro das personagens; nota-se que foi talvez extraída de uma versão de montagem maior; há planos de ser lançada como série, imagino eu que dando uma outra presença a esta altura da história.

Délcio Rodrigues (Kappa) e Carlos Agualusa (Severo)

E então, que felicidade, ver as cenas que daqui resultam! Este filme tem aquele que é talvez o melhor plano de toda a filmografia de Graciano, um copo num restaurante entre Ruy Duarte (João Pedro Vaz) , o assistente-cozinheiro Trindade, Kaluter (Miguel Borges), Camila e Paula. O plano é fixo, colocado fora da mesa, a uns metros do lugar vago, e aí se mantém durante o fogo de uma conversa em que os actores fluem de uma maneira excepcional. E o plano não se mexe, não cortamos! Dura uns sete ou oito minutos. Tão simples, e não estou a dizer que um corte para pormenor ou grande plano ficasse necessariamente mal, mas a força de não se cortar! Um portento de cena, profundamente bela, mais ainda quando Camila se ajoelha à mesa em pedido para que Ruy, seu poeta de eleição, a leve com ele nesta sua expedição aos papéis…

Que papéis são estes? Não é fácil dizer, mas é assim mesmo. Existe um tesouro literário algures no Namibe, é incerto onde e o que dizem. “Quais papéis?” pergunta mesmo Ruy ao seu ajudante, no início do filme, e um primeiro acto termina na descoberta de umas revistas de actualidades antigas em que o pai de Ruy desenhara balões de fala com diálogos jocosos por cima de figuras políticas. Eram estes os papéis que tinham guardado do seu pai, mas haverá de certeza outros… o filme, surpreendentemente, é um filme de ocasos e elipses, construíndo-se à volta desta busca sem nunca em qualquer momento ser sobre ela. A certo ponto encontram um homem, Severo, que saberá mais sobre estes papéis, mas o que iremos acompanhar é a história de Severo, das suas mulheres Ulya e Mbambi e do seu amigo Kappa, durante os anos que o trouxeram a este momento. O tempo é leve como o ar, numa história que circula à volta de uns papéis que talvez ou talvez não levem a um “outro” tesouro, e é impossível dizermos se entre a primeira cena e a última se passaram três dias ou três anos – e que cenas belas, áridas, e calmamente misteriosas: o que é aquele plano longo à fogueira onde Severo fala sozinho, teatral, entre a sua voz normal e uma lisboeta que imita do seu pai? Episódios de tempo entre os dias e noites minerais filmados por uma câmara que nunca sai do chão ou do alcatrão. É importantíssimo, e é verdade: não há aqui um único plano de drone, seria impensável tê-lo.

A grande setpiece final é a concretização máxima desta experiência de Sérgio Graciano com o tempo e o espaço. Os personagens encaminharam-se para uma festa num grande vale. Começa de dia, e durará até muito tarde durante a noite. Haverá enlançamentos de bois, trocas de presentes, dança, música e encontros. Durante o confronto com os animais, as crianças, homens e mulheres a ver começam um aplauso rítmico, em grupo. Este aplauso mantém-se, em raccord sonoro, até quase ao fim da noite e do filme, numa sequência de cenas todas passadas nos arredores da festa – às vezes ouvimos o aplauso mais longe, outras vezes mais perto. Numa ponta do vale, por cima de uma rocha, alguns homens aguardam que Ruy chegue para lhe apresentar uma arca de papéis, em troca de algum uísque estrangeiro. Os aplausos ainda se ouvem ao longe. Depois, junto à fogueira, Ruy e Camila conversam. Kaluter talvez durma algures; na festa, no coração do vale, os restantes convivem. Ainda vemos o que acontece na manhã seguinte, mas francamente não me lembro como é que o filme acaba. Fiquei nesta festa, que dura minutos a fio, se prolonga sem custo por uma noite iluminada apenas por fogueiras. É uma sequência maravilhosa, e o filme um prémio, ou o próprio tesouro. Para o produtor e para o realizador, unidos num grande feito.

Rafael Fonseca