Verão é sol, alegria e cor, e o cinema, ao longo da sua história, sempre procurou retratar a época de veraneio com todas as suas idiossincrasias, enquanto tempo de repouso, suspenso das amarras do quotidiano. A equipa da Tribuna do Cinema decidiu juntar-se para eleger vários títulos marcantes e ideais para os tempos de calor que vivemos, cruzando os estados de espírito da realidade e da ficção. O resultado é uma lista diversificada, que vai das escolhas onde a referência à estação é mais óbvia, como nos filmes de Éric Rohmer, até outras onde o verão não é aludido diretamente, mas cujas características são fundamentais no desenvolvimento da trama, como no filme que encabeça a nossa lista. Boas férias e bons filmes a todos!
30º The Florida Project (2017) Sean Baker
Gelados derretidos, insufláveis fluorescentes, piscinas lotadas, móteis coloridos, cabelos pintados, fast food americano e crianças sem saber o que fazer num longo e quente Verão, são as representações estéticas cor-de-rosa de The Florida Project. Mas engane-se quem pensa que esta obra tem apenas mérito visual. Sean Baker pega em crianças fruto de famílias marginalizadas e pais ausentes para nos contar a história de uma precoce criança de seis anos, Moonee, e do seu desorganizado grupo de amigos, cujas férias de verão estão repletas de aventuras infantis, mil possibilidades de asneiras e um completo sentido de desembaraço, enquanto os adultos à sua volta lutam por um lugar ao sol em tempos árduos de desemprego, precariedade e pobreza numa Flórida onde todos procuram a sua Disney World mas ninguém a encontra.
Rita Oliveira
29º Midsommar (2019) Ari Aster
Após aquele que é considerado por muitos uma obra-prima do terror moderno, Hereditary, o jovem realizador Ari Aster partiu para a Suécia para a sua segunda longa-metragem, filmada totalmente sob a luz do sol do solstício de Verão, clara, branca, ofuscante. Um grupo de amigos convence a sua amiga enlutada a ir a uma festa de celebração desse evento numa vila remota, estudando as suas gentes. O que se segue é uma experiência alucinogénica desconcertante, crueza e desorientação, com uma linguagem cinematográfica original. A natureza, a cor, a luz, fazem deste cult horror uma experiência única dentro do seu subgénero, mostrando bem a ambição de Ari Aster em se afirmar como um dos novos mestres do horror.
David Bernardino
28º Le Mépris (1963) Jean-Luc Godard
Como todos os filmes de Godard, um filme sobre cinema. Como todos os filmes de Godard, um filme sobre a vida. Inseparáveis e indivisíveis, ficção e realidade. Fritz Lang (a fazer de si mesmo) filma a Odisseia de Homero, em glorioso cinemascope, captando Brigitte Bardot e Michel Piccoli na Casa Malaparte na solarenga ilha de Capri, cuja arquitetura e contraste com o mar é responsável por alguns dos planos mais icónicos e arrebatadores da história do cinema. Um cruzamento perfeito entre o cinema clássico e o cinema moderno, carregado de luz e de cores vibrantes banhadas pelo mediterrâneo.
Bruno Victorino
27º Aftersun (2022) Charlotte Wells
Pai e filha de férias na Turquia. Um filme discretamente devastador. Sem cenas tristes, sem grandes explicações e, no entanto, pequenos detalhes começam a acumular e a dar forma a algo pesado: seja uma máscara de mergulho perdida, um karaoke solitário, uma mensagem de “game over”, um cuspo no espelho, um souvenir rosa fluorescente em forma de mulher nua, um cigarro apanhado do chão, uma canção de aniversário desconfortável. Ambos os protagonistas – o cansado Mescal e a inocente Corio – são formidáveis. Além disso, Aftersun foi filmado em película, pelo que as cores parecem saltar da tela, seja o azul de uma mesa de bilhar ou o vermelho de um tapete turco. “This is our last dance” canta David Bowie. Pode bem ser.
Pedro Barriga
26º Sideways (2004) Alexander Payne
Uma comédia sobre camaradagem e amizade masculina, Sideways, escrito e realizado por Alexander Payne, segue a viagem de dois amigos: Miles (interpretado brilhantemente por Paul Giamatti) e Jack (Thomas Hayden Church), pela solarenga Califórnia, com o objetivo de celebrar o casamento de Jack. Se Miles é um escritor falhado, deprimido e conhecedor de vinhos, Jack é um ator ultrapassado, que deixou os seus melhores papéis no passado. A combinação entre as duas personalidades resulta numa amizade desequilibrada, insuportável, mas que serve de suporte para ambos numa altura em que não encontram outra rede de segurança. A viagem dos dois leva-os em busca dos melhores vinhos, da melhor companhia e, no fundo, em busca da melhor versão deles que ficou algures no passado.
Francisco Sousa
25º Bonjour Tristesse (1958) Otto Preminger
Otto Preminger, porventura o mais cruel dos realizadores americanos, oferece-nos as recordações, em forma de confissão, da jovem Cécile (Jean Seberg). O tempo é o Verão dos seus dezassete anos, o espaço a Riviera Francesa, a ação as aventuras amorosas do pai de Cécile (David Niven) e as maquinações da filha. Contudo, não se julgue que caminhamos para um enredo sustentado na teoria freudiana. É nas cores garridas e na paisagem convidativa das férias que mergulhamos, e também na sucessão de quadros em que a protagonista se encontra simultaneamente apertada e segura, qual pivot impiedosa das regras do jogo. Fará sentido falar numa jovem movida por paixão ou prazer, quando a canção escutada por Cécile, que partilha o título do filme, diz: “My smile is void of laughter/My kiss has no caress”? Terminado o Verão, findas as recordações em off, temos a resposta num plano de Cécile ao espelho – prova que Preminger comia o famoso “Hayes Code” (as guias censórias do cinema americano) ao pequeno-almoço.
Eduardo Magalhães
24º Sommarlek (1951) Ingmar Bergman
Bergman nunca escondeu o Verão como tela ideal para muitos dos seus filmes. Desde Um Verão com Mónica, Sorrisos de uma Noite de Verão ou mesmo Persona e Em Busca da Verdade, o Verão sempre foi terreno fértil para um mergulho de nostalgia dramático e onírico, tantas vezes trabalhado pelo mestre sueco. Um Verão de Amor (também conhecido por Summer Interlude ou simplesmente pelo original Sommarlek) traz-nos uma viagem nostálgica ao passado de uma mulher e do seu primeiro amor, um romance de Verão enterrado na areia, que terminou de forma trágica. Ao recordar o seu diário sobre esse Verão, a protagonista revisitá-lo-á, procurando apaziguar o seu passado. Sommarlek é provavelmente a obra maior da primeira fase da filmografia de Bergman, apelidado por Godard como “o mais belo dos filmes”.
David Bernardino
23º Sommaren Med Monika (1953) Ingmar Bergman
Antes de mergulhar no existencialismo temperado por crises de fé e psicanálise que torna a sua obra tão reconhecível, o cinema de Bergman apresentava uma marca de realismo social, na qual Sommaren Med Monika se enquadra. Embebido no êxtase físico da juventude, conta-nos a história de um rapaz e de uma rapariga de classe trabalhadora que fogem aos constrangimentos da cidade, do trabalho, dos abusos familiares e da pobreza, para viver de amor e uma cabana, no arquipélago de Estocolmo. A líbido despudorada, a ausência de julgamentos morais e a virulência da vida conjugal (que marcariam, de forma mais aprofundada, o restante corpo de trabalho do realizador), são aqui ensaiados, num filme que, à altura que foi feito, gerou controvérsia pelo choque com um universo dominado pelo puritanismo do cinema americano do “Hays Code”. Diegeticamente, este verão assume uma dimensão de (dissimulada) libertação. Um mero parêntesis na vida dos jovens, que mais tarde terão de regressar ao mundo real. Cá fora, significou um olhar diferente sobre o cinema e cultura suecos, a nível internacional, e a maturação de uma das carreiras mais lendárias deste médium.
Gil Gonçalves
22º Roma (2018) Alfonso Cuarón
Roma é o filme catástrofe mas também o mais biográfico e familiar que Alfonso Cuarón alguma vez realizou. Passado na década de 70, na Cidade do México, a obra foca-se na rotina laboral de duas empregadas domésticas que, colocando as suas vidas em segundo plano, não só trabalham como vivem diligentemente para uma mãe de quatro filhos enquanto o marido está ausente por um longo período de tempo. A fórmula parece simples mas é o tórrido calor mexicano que desajuda todos os subplots desta narrativa. Todas as cenas do filme parecem ser banhadas por uma luz que provém de fonte transcendente. Temperaturas árduas, ventoinhas incapazes de amenizar o ar, a ausência física de um pai que torna a gestão familiar irrespirável, são factores que aproximam Roma de um verão insuportável. O drama, a paródia, as tradições populares mexicanas, retratadas a preto e branco, não nos permitem ser ofuscados pelas labaredas de calor, mas antes pelas guerrilhas políticas, manifestações anti-governamentais e as dificuldades de quem é pobre num México desabastecido.
Rita Oliveira
21º Estate Violenta (1959) Valerio Zurlini
Uma parte importante do trabalho de um cineasta é tentar entender a natureza humana. Estate Violenta é a história de Carlo e Roberta, dois italianos…em 1943! Se a diferença de idades entre os dois indicava um melodrama, a turbulência vivida em Itália nesse ano, que culminaria na capitulação, apontaria para o drama histórico. No entanto, o filme é alheio a catálogos. Zurlini procura seguir a pista de Tolstói, seu herói, e edificar um fresco de pequenos grandes momentos históricos e pessoais. E quão impressionantes são esses episódios! A cena de abertura bloqueada pelo genérico, que nos mostra um homem a ser encaminhado para uma ambulância. Uma mocinha apavorada por um avião alemão ter interrompido o tranquilo serão dos veraneantes. Uma ida ao circo por um grupo de jovens. Os gritos nas ruas. Fugir, não fugir. O mundano abraça o cenário histórico, que, por sua vez, dá lugar ao íntimo, e é impossível não deixar de ver.
Eduardo Magalhães
20º Thelma & Louise (1991) Ridley Scott
Nem todas as prisões têm grades, nem as fugas para a liberdade são um fim em si mesmas. As férias que Thelma Dickinson e Louise Sawyer combinam, para escapar brevemente das agruras pessoais, rapidamente se transformam no (muito acidentado) caminho para a emancipação. Se a vida conjugal e doméstica de Thelma parece um tragicómico inferno, a selva que se segue não se revelará melhor, para as duas amigas… Com tanto de presciente sobre um discurso que hoje é relativamente comum, como de assustador por quão atual se mantém – apesar das suas hipérboles narrativas – este road movie feminista continua a ser espantosamente ímpar no panorama mainstream. Numa era em que todas as marcas se arrogam defensoras de direitos sociais vários, pouco houve de tão ousado sobre o tema, nas grandes produções americanas, desde Thelma & Louise.
Gil Gonçalves
19º Call Me by Your Name (2017) Luca Guadagnino
Romances de verão algures no norte de Itália. Nunca se esquece o primeiro amor, e também nunca se esquece Call Me by Your Name. Um filme melancólico, erótico, de corpos esculturais, esculturas sensuais e corações partidos. Luca Guadagnino cria um mundo estival, repleto de calções de banho, passeios de bicicleta, piazze, mergulhos no rio, saídas à noite, estátuas emersas, pêssegos… Facilmente nos lembramos de Pedro Almodóvar no seu melhor. O elenco, magnífico, conta com a melhor interpretação até à data de Timothée Chalamet. E, claro, Michael Stuhlbarg com possivelmente o melhor discurso de um pai para um filho.
Pedro Barriga
18º Pierrot le Fou (1965) Jean-Luc Godard
Que bom seria experienciar o lado venturoso das novelas de Stevenson, Conrad ou Júlio Verne. A arte sempre foi industriosa em criar refúgios. E nós? Pierrot, de seu nome Ferdinand, em permanente corrida e mudança de indumentária, mastiga Marianne Renoir, sua musa e companheira de fuga e/ou viagem, em palavras truncadas num diário. Num filme que ensaia uma lentidão como a sonolência dos dias de Verão, a linguagem de Godard, muito ciente das suas referências, namora o abismo com a linha do mar, essa linha com que nos deparamos no nosso calendarizado ócio. Namora também através dos versos de canções: “Ma ligne de chance…ma ligne de chance”, ou “Est-ce que vous m’aimez?”. Pierrot le Fou é uma odisseia, se falsa ou verdadeira caberá ao espectador, tantas vezes interpelado, determinar. Entretanto, Velazquez pinta, na faustosa corte dos Filipes, o maxilar dos Habsburgo; Harold Wilson procura a via diplomática para resolver a guerra do Vietname. Quem diria? As lengalengas godardianas envelheceram bem.
Eduardo Magalhães
17º Caro Diario (1993) Nani Moretti
In vespa. Páginas cheias dum diário escrito pelas ruas despidas do Verão de Roma. Divagações sobre cinema, política, e Jennifer Beals. O diário íntimo enquanto retrato topográfico de uma cidade. O sol sobre “le case” de Garbatella e a praia de Ostia, onde morrera Pasolini. O primeiro episódio de Caro Diario é o Verão desocupado na metrópole, quando todos partiram para férias de mar. E será esse mar que enche o segundo capítulo do filme, Isole, com um divertido périplo pelas ilhas Eólias, tentando fugir (ou talvez não) ao frenesim da vida moderna. Um terceiro capítulo, já longe do Verão, levará esta odisseia muito pessoal a um muito hipocondríaco (mas justificado, veremos) estudo dos comportamentos da classe médica romana. Um brinde final ao espectador, na forma de um salutar e matinal copo de água (óptimo para os rins), a vida pelos seus episódios mais prosaicos. “In realtà il mio sogno è sempre stato quello di saper ballare bene.” E porque não começar ao som daquele baião de Silvana Mangano (voz de Flo Sandon’s), pela televisão, ao pequeno almoço ?
Miguel Allen
16º Viaggio in Italia (1954) Roberto Rossellini
Uma história aparentemente simples mas ilusória sobre um casal inglês, abatido pela rotina, que viaja para Itália para encontrar um comprador para uma casa herdada de um tio. Esta viagem apesar de fisicamente pesarosa, mais tarde irá tornar-se numa corrida contra o tempo, ou seja, numa viagem emocional e com trilhos psicológicos instáveis. A narrativa presumivelmente simples é transformada por Roberto Rossellini numa complexa e apaixonante história de ciúme, crueldade e cinismo à medida que o casamento deste casal se vai desintegrando. Com efeito, trata-se de uma obra que aborda hostilidades emocionais, que se foca em desconfianças e suspeitas e que culmina num declínio marital enquanto o verão italiano é tragicamente responsável por queimar um fogo que tende em não mais arder.
Rita Oliveira
15º Jaws (1975) Steven Spielberg
Quando em 1975 um jovem chamado Steven Spielberg realizou um filme chamado Jaws, poucas pessoas poderiam adivinhar o que o futuro reservava. No entanto, 48 anos depois, é inegável a influência que tanto o realizador norte-americano como o seu terceiro filme tiveram na história do cinema mundial. Com uma produção algo atribulada (o filme ultrapassou os dias de gravação e orçamento) devido, sobretudo, às gravações na água e aos tubarões mecânicos, Spielberg utilizou o espaço negativo e uma banda sonora icónica de John Williams para criar medo e antecipação não só a todos os espectadores como também aos banhistas. Jaws foi um sucesso comercial, tornando-se inclusivamente no filme com a maior bilheteira na altura, redefinindo o conceito de blockbuster de verão.
Francisco Sousa
14º Y Tu Mamá También (2001) Alfonso Cuarón
Y Tu Mama También, o quarto filme de Alfonso Cuarón, foi o seu regresso ao cinema mexicano depois de A Little Princess e de Great Expectations. Um road movie, filmado como um documentário, que segue a viagem de dois rapazes adolescentes (Gael García Bernal e Diego Luna) e de uma mulher mais velha (Maribel Verdú) pelo méxico rural. Y Tu Mama También é simultaneamente um retrato realista da sociedade mexicana e das disparidades no seio desta, e uma janela para a juventude, crescimento e erotismo dos três protagonistas. Naquele que é, para muitos, um dos seus melhores filmes, o realizador mexicano conseguiu capturar com mestria os momentos aparentemente passageiros da adolescência que, todos somados, acabam por resultar naquilo com que eventualmente nos tornamos como adultos.
Francisco Sousa
13º À Flor do Mar (1986) João César Monteiro
De barcos e piratas, um noir espiritual. “Melodrama familiar”, filme de terras de mar, um filme “celestial”. Solidão e desejo, luto e amor. Aqui, mesmo a noite azul se veste das cores fortes daquela região. A praia do Camilo é o encontro, “à flor do mar”, de Laura Rossellini (o seu nome explica o filme) com Robert Jordan, e a fuga de ambos para terra será o começo duma profunda viagem interior. Robert seguro mas secretivo. Laura secretiva mas em permanente interrogação. Talvez o mais importante, e seguramente o mais belo filme jamais rodado no Algarve (a par de Sophia, também de JCM). Um filme que respira, vive e redesenha uma região. De sonhos e poesia. Corpos de areia e sal, a luz e o calor regional, a misteriosa sombra azul dos nossos sonhos. “Temos de aprender a gastar a solidão que nos resta.”
Miguel Allen
12º Before Sunrise (1995) Richard Linklater
Jesse (Ethan Hawke) e Celine (Julie Delpy) encontram-se aleatoriamente num comboio, desembarcam em Viena e passam o resto do dia a falar, a andar pela capital austríaca, até se apaixonarem. No fim do dia, quando o nascer-do-sol se aproxima, cada um segue a sua vida, marcado profundamente pela experiência. Uma premissa aparentemente simples mas que nas mãos de Richard Linklater foi executada de forma genuína, profunda, e com a leviandade tão característica do realizador e dos romances de verão. Um filme que marcou uma geração, e que foi de tal forma bem sucedido que deu origem a duas sequelas: Before Sunset e Before Midnight. Se o primeiro filme aborda o início de uma relação como um romance de verão, com todo o seu fulgor e espontaneidade, os dois filmes que se seguem mostram outras faces do relacionamento de Jesse e Celine à medida que estes envelhecem, sem nunca deixarem de ser representações inteligentes daquilo que são as relações amorosas, de amizade e companheirismo entre duas pessoas.
Francisco Sousa
11º Texas Chainsaw Massacre (1974) Tobe Hooper
Texas Chainsaw Massacre é pioneiro no subgénero de terror slasher, ainda derivativo do terror exploitation que pontuou os anos 70, que coloca um grupo de amigos de visita ao Texas rural nas mãos de uma sádica família canibal. Ao estilo documentário, criativo e, curiosamente, artisticamente bem realizado, este massacre é claustrofóbico, intenso, perturbador e violento, com um toque low budget que, ao invés de lhe retirar credibilidade, acrescenta-lhe um realismo desconcertante. Além disso, de entre Freddy Krueger, Jason ou Michael Myers, entre outros, a brutalidade da figura aqui antagonista, Leatherface, de serra eléctrica descomprometida na mão, é produto de horror impotente imediato irresistível. O sol quente, as tonalidades de amarelo sempre presentes, fazem deste um verdadeiro pesadelo de Verão.
David Bernardino
10º Pauline à la Plage (1983) Éric Rohmer
Pauline à la Plage talvez não seja um dos filmes mais badalados de Éric Rohmer, mas é certamente um dos mais engraçados e que melhor utiliza o ambiente de praia para desenrolar o seu novelo narrativo. O filme é simultaneamente um coming of age para a adolescente Pauline e uma farsa da vida adulta, recheado de jogos de desejo e sedução que vão enriquecendo a trama e criando momentos constrangedores e hilariantes. Uma comédia de costumes centrada no amor, que nos leva, em segundos, do flirt a divagações filosóficas sobre o tema.
Bruno Victorino
9º 12 Angry Men (1957) Sidney Lumet
Em 1957 um jovem Sydney Lumet realizou a sua primeira longa-metragem, eterna obra-prima que ocupa a posição de quinto melhor filme de sempre no voto popular do IMDb. 12 Angry Men traz-nos a história hermética de 12 jurados obrigados a tomar em conjunto e por unanimidade, à porta fechada, a decisão de condenar ou absolver um jovem suspeito de homicídio após a realização do seu julgamento. Uma condenação implicaria necessariamente a pena de morte. 12 Angry Men é uma masterclass de diálogo, construção de personagens simbólicas de um certo espelho social de época, filmado numa só localização, discorrendo acerca das dúvidas de um grupo de 12 homens sobre uma decisão tão importante. Num dia de calor de Verão sufocante e desconfortável, as emoções acumulam-se e o suspense também, num clímax que é um hino ao cinema de entretenimento não-blockbuster.
David Bernardino
8º La Collectionneuse (1967) Éric Rohmer
Verão é sinónimo de Éric Rohmer e de uma cinematografia provocativa, estimulante e sedutora. Nesta obra, um mulherengo marchand de arte e o seu amigo pintor viajam para uma villa do século XVII, na Riviera Francesa, para uma relaxante escapadela de verão. Mas este lugar idílico é perturbado pela presença da boémia e petulante Haydée, acusada misogenamente de ser uma “colecionadora” de homens. É uma obra erótica sobre a hipocrisia, a tirania do corpo, o hedonismo, a superioridade do ego versus o desejo desmedido, sempre apoquentados pela companhia do verão, responsável por corpos morenos e momentos mais desnudos, que tornam este filme numa obra culto do estio.
Rita Oliveira
7º Moonrise Kingdom (2012) Wes Anderson
A ilha dos amores. Moonrise Kingdom é um filme curioso na trajetória cinematográfica de Wes Anderson. O ponto intermédio entre os seus primeiros dramas certamente excêntricos mas naturalistas (The Royal Tenenbaums, The Life Aquatic) e as suas mais recentes miniaturas e casas de bonecas (The Grand Budapest Hotel, The French Dispatch). Sam e Suzy conhecem-se durante o verão de 1964 e fogem juntos. Famílias disfuncionais, faróis cor-de-laranja, campos amarelos, cartas de amor, binóculos, escuteiros, Françoise Hardy à beira-mar. É assim o delicioso verão imaginado e criado por Wes Anderson.
Pedro Barriga
6º Le Rayon Vert (1986) Éric Rohmer
“Mais bon… peut-être je me trompe.”
Pobre Delphine ! As férias de Verão a chegar, e ninguém com quem as partilhar. Talvez o mais “nouvelle vaguiano” dos filmes, Le Rayon Vert é um documentário onde tudo é encenado, ou talvez uma ficção lírica a partir de peças documentais. Um filme onde nada parece ser verdadeiramente importante, e onde tudo nos surge como verdadeiramente essencial. Impressionista, o cinema como uma janela aberta sobre o mundo, oferecido au hasard, à vida. Num plano pintado pelo belíssimo grão da película de 16mm, o banal e o romântico, sujeitos a todos os riscos, com o coração algures entre uma praia em Biarritz e o cosmos. Como pode ser penosa a vida daquele que ainda não se encontrou…. mas tudo pode mudar, de um momento para o outro, fruto do mais fortuito acaso. Ah! que le temps vienne, où les coeurs s’éprennent !
Miguel Allen
5º Les Vacances de M. Hulot (1953) Jacques Tati
“Et dans la clarté, le sable doré, je vous avais demandé :
Quel temps fait-il à Paris ? Le ciel est-il noir ou gris ?”
Uma carta postal de um Verão de outros tempos, o descomprometido e sofisticado retrato de uma estância balnear sob o efeito caótico de M. Hulot. Sempre subtil e elegante, o humor de Tati é composto de gestos e coreografias precisas, de pequenas variações e movimentos, e de uma sonoplastia riquíssima. As imagens doces do filme são assim acompanhadas por variados e surpreendentes sons, melodias, e ruídos que funcionam enquanto autênticas composições de bruitage, tanto intrigantes e absurdas, como divertidas e evocativas. Sob a aparente leveza e inocência dos seus gags, Tati realizou um filme profundamente experimental : uma evocação cómica e sensível de férias descansadas, mas também uma obra cinematográfica“pura”.
Miguel Allen
4º Do the Right Thing (1989) Spike Lee
Anatomia de um crime. Um filme que não envelheceu um dia. Um retrato de 1989 que poderia facilmente ser de 2023. Tão relevante hoje que foi essencialmente clarividente da parte de Spike Lee tê-lo realizado nos anos 80. “Não há fim à vista para esta onda de calor” declara o personagem de Samuel L. Jackson quando Do the Right Thing chega ao fim. Calor este literal e figurado. É de facto prodigiosa a forma como Lee ilustra as tensões raciais e lida com a complexidade deste assunto, enquanto traduz para a tela as ideias de Martin Luther King Jr. e Malcolm X, por mais contrárias que sejam. Uma obra sísmica.
Pedro Barriga
3º Le Genou de Claire (1970) Éric Rohmer
Se esta lista de filmes tivesse um rosto seria certamente o de Éric Rohmer, como comprovam os 4 títulos do cineasta francês presentes no nosso top 10. Porque de facto este período do ano é fundamental para as experiências e variações do seu cinema, e poucos foram aqueles que conseguiram captar de forma tão exímia as idiossincrasias das férias de verão. A textura das belíssimas imagens de Néstor Almendros das margens do lago de Annecy é quase palpável e é impossível não nos submergirmos naquele paraíso onde se desenrolam os jogos ficcionais e de sedução entre o protagonista, a sua amiga e duas adolescentes, pelo meio dos mergulhos, banhos de sol, viagens de barco e torneados joelhos.
Bruno Victorino
2º L’ Avventura (1960) Michelangelo Antonioni
L’Avventura marca o início de uma trilogia de filmes incontornáveis no desenvolvimento do denominado cinema moderno. Antonioni filmou como ninguém a alienação dos seus personagens em deambulação constante sobre determinadas paisagens com as quais se estabelece um diálogo formal. No caso de L’ Avventura é o rosto e cabelo esvoaçante de Monica Vitti justaposto ao cenário rochoso da ilha vulcânica onde outra personagem desaparece que fica na retina do espectador. Apesar do vento se fazer sentir mais nas imagens do que o calor típico do verão, o facto do filme se passar no período estival desempenha um papel fundamental na abordagem do realizador italiano, um tempo suspenso da realidade do quotidiano, que acentua o alheamento dos seus protagonistas burgueses.
Bruno Victorino
1º Rear Window (1954) Alfred Hitchcock
O voyeurismo de Rear Window (aquele que presenciamos e no qual participamos, por ação da câmara de Hitchcock) tem, pela sua intemporalidade, implicações que vão evoluindo a cada geração. Ligações que se poderiam estabelecer com a televisão, por exemplo, hoje adquirem um novo poder com as redes sociais. E o que dizer de ver este filme pós-isolamento pandémico? Seja como for, tudo parte do aborrecimento. E não um aborrecimento qualquer. O aborrecimento de um homem de meia idade, que preferia estar noutro lugar, com outra namorada (ou nenhuma), com outra idade e noutra condição social. O que este filme propõe é a realização de uma fantasia de risco, levada a proporções extremas e quase cómicas, encetada por esse mesmo aborrecimento e consequente necessidade de viver vicariamente as vidas de outros que observamos. O verão – abrasador, como somos informados durante o filme – é um veículo sugestivo desse mesmo aborrecimento: tanto pelo peso que impõe a um corpo amorfo e a uma mente demasiado livre, como pelo desejo que evoca de uma vida diferente.
Gil Gonçalves