Oh Canada, de Paul Schrader: O Espelho

Miguel AllenFevereiro 21, 2025

I had long COVID and I was in the hospital three times in a year with bronchial pneumonia. And you know, you have that breathing thing on. I couldn’t help but think “Oh gee… Maybe this is how it happens… You go to the hospital and you don’t come out.” And Russell had taken sick that year. I usually went to see him every summer. But he wrote me that he couldn’t do it that summer because he was having chemo. So I think sigh ‘That’s probably gonna be it for him…’. And I think, ‘Hmm, I’ve been thinking about this myself and now I’m thinking about Russell. Russell wrote a book on it. When he was healthy he wrote a book on dying.’ He called it his Ivan Ilyich. [Tolstoi, 1886]

Paul Schrader, entrevistado por Zach Gayne para o SCREENANARCHY

 

Em grande plano, Leonard Fife, velho e moribundo, espreita pela janela da sua vida passada. Uma adaptação de Foregone, de Russel Banks, com Oh Canada, Paul Schrader encena um diálogo frontal com a (sua?) mortalidade e, nesse sentido, uma revisão crítica da vida e, portanto, da obra de um cineasta. Schrader, é certo, rejeita uma identificação sua na personagem principal do filme, mas essa nossa dedução, enquanto espectadores, é natural e justificada — tendo em conta, nomeadamente, a actividade recorrente do realizador nas redes sociais. Leonard Fife, interpretado por Richard Gere — uma escolha pouco inocente do protagonista de tempos de um cinema mais exuberante, para Schrader — é um documentarista premiado, que, em estado terminal de um cancro, aceita participar numa entrevista conduzida por antigos alunos seus. O filme abre com a preparação dessa entrevista na casa do velho realizador, mas desde cedo, Fife desvia o discurso filmado para uma espécie de confissão defronte da sua mulher. O relato de uma vida construída de mentiras, de inúmeras vitórias na desonestidade, protagonizado ora por Fife jovem (Jacob Elordi), ora pelo velho de hoje. O discurso subjectivo da personagem é confuso, as imagens e seus tempos parecem enlear-se no seu decurso pela tela.

Existe uma necessária redundância na narrativa de um filme que parece, afinal, quase querer perder a coerência da sua trama. Schrader, é certo, não arrisca aqui essa “experimentação” narrativa, preferindo uma montagem bastante “didáctica” (demasiadamente didáctica) do seu filme. Mas se a espaços algo baralhadas, as divagações de Fife não guardam, na verdade, uma particular surpresa. Como o próprio afirma, através de uma das suas recordações, numa obra biográfica, o leitor sabe à partida que a “história” termina com a morte do seu protagonista. Mais do que as palavras e o seu significado, o foco de Oh Canada será, assim, o próprio registo daquele acto confessional de Fife.

O filme propõe, nesse sentido, uma reflexão importante sobre o valor moral de um registo dito documental no Cinema. A imagem como meio de cristalizar (ou eternizar? A discussão fica em aberto) um instante e suas figuras. A imagem como necessário filtro a uma realidade da qual autor e espectador se permitem distanciar. Forte da frontalidade desiludida de Schrader, Oh Canada sugere uma certa cobardia inerente ao acto de cinema.

Enquadrado pelo “documentário” dos seus antigos alunos (agora “realizadores oscarizados”, como no-lo informam numa das tiradas mais caricatas do filme), Fife conta-nos um percurso de abandono, um percurso formado pela fuga sucessiva às suas responsabilidades. Enquanto documentarista (respeitado e premiado), o seu acto “original” de cinema fora já movido, primeiramente, pela vontade de escapar à realidade (um filme psicadélico, feito enquanto distração a uma vida pacata no campo), e só depois se tornaria num gesto político perfeitamente acidental.

De um orçamento muito limitado, Oh Canada é um objecto simples, austero, mas, nisso, um filme muito atraente (nomeadamente nas sequências na casa de Fife, o velho). Pela encenação cuidada daquele “trabalho de cinema” — a preparação e a execução do documentário sobre o realizador — Schrader parece explorar, de um ponto de vista formal, a inescapável dualidade entre o “talento” de um indivíduo e o valor moral dos seus actos — tanto na vida como na arte. Para Schrader, o cinema propõe, sistematicamente, uma exploração ou manipulação do seu objecto. Uma arte que vive necessariamente de uma mentira velada, de uma encenação da realidade, construída pelo seu autor. E se o auspicioso “Oh Canada” do título nos sugere um aparente elogio à liberdade, em apologia ao “irmão livre” daqueles Estados Unidos, a fronteira aberta do final do filme será, sobretudo, a mais confortável possibilidade de uma evasão. O simples apagar de todas as faltas que o protagonista acumulara naqueles seus primeiros 30 anos (onde sentira ter gastado toda a sua vida), viver também na manipulação de um objecto real (editar as nossas cenas de vida).

Richard Gere e Jacob Elordi

 

Um filme crepuscular, Oh Canada desprende-se da trilogia recente de Schrader (First Reformed, The Card Counter, e Master Gardener) — para a qual parece servir ainda assim de apêndice final — ao retratar, enfim, um mundo individual (sempre o indivíduo em Schrader) onde não existe possibilidade de futuro. Um moroso monólogo face a uma câmara (esse espelho de morte, que eterniza o seu processo), Fife relembra que, naquele momento, lhe resta apenas o passado. Da sua introspecção, e contrariamente ao que acontecera, por exemplo, em Master Gardener, não poderá existir o sonho de um caminho florido pela felicidade. Neste Oh Canada floresce apenas o cancro mortal pelo corpo, pelas veias de Fife, qual “buraco negro” que parece simultaneamente concentrar e anular toda a vida da personagem. O suspiro final contra uma paisagem campestre. Por tanto que as flores sobre o plano de fecho da tela nos sugiram a esperança que transporta esse ponto (médio) do percurso de vida de Fife, então enfim exilado, Schrader faz ecoar sobre a paisagem passada o som vazio, esse “nada”, que o espera na morte.

Também nesta despedida, mais uma vez, se induz a inevitável cobardia da personagem principal. Expondo enfim os seus actos, as suas faltas, defronte de Emma (Uma Thurman), que não o “conhece”, afinal, após 30 anos de vida comum, Fife propõe um confronto entre a sua imagem presente e o passado, quando este parece já não motivar verdadeiras consequências. E é perto daquele fim que Schrader recorda ainda a (quase) deserção de Fife, por ocasião da convocatória militar para o Vietname (aquele “COWARD!” sem resposta), enquanto o próprio nos afirma que todos aqueles que admirara tinham partido e morrido na guerra.

Uma vida feita em fuga e na rejeição de todas as marcas do passado (“I don’t have a son“) até uma despojada exposição final, na primeira pessoa. Expiação sob a sombra, num filme que não nos diz “nada” pela sua história, mas onde este seu “nada” revela, enfim, um comentário amargo quanto ao trabalho do próprio Schrader. E ficamos assim, entre a visão de um novo país verdejante pelos olhos do jovem Fife, e a carrinha preta dos seus antigos alunos, esses que fazem, afinal, filmes sobre “alguma coisa” e que espiam, por câmara oculta, o desenlace anunciado.

Miguel Allen