O Western, Vol. II – Howard Hawks

EquipaMaio 9, 2025

No segundo volume do nosso dossier sobre o western abordamos um dos mestres do chamado período clássico do cinematógrafo, Howard Hawks, cujo número reduzido de westerns, realizados já numa fase de maturidade da sua filmografia, acabou por revelar ou consolidar alguns dos princípios fundamentais do género. Não se furtando às imagens fortes e, ocasionalmente, à grande escala, é na intimidade das relações, na camaradagem e nos sentimentos das personagens que bate o coração do faroeste hawksiano. Os temas de lealdade, masculinidade, amizade e orgulho permeiam todas as entradas com que contribuiu para o mais americano dos géneros cinematográficos. É sobre estes filmes – Red River (1948), The Big Sky (1952), Rio Bravo (1959), El Dorado (1966) e Rio Lobo (1970) – que nos debruçamos neste artigo, mencionando ainda Hatari! (1962) que, não sendo um western tout court, partilha, na nossa óptica, muitas das marcas estéticas e temáticas dos demais.

 

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Red River (1948)

Duas linhas paralelas, como as duas margens de um rio. E o esforço necessário para encontrar o lugar de dois homens nesse contexto. A história de Red River (1948) é a história de um percurso louco de 1000 milhas (100 dias de viagem), inicialmente previsto entre o Texas e o Wisconsin, mas acabando por nos levar, finalmente, ao Kansas – e nisso inaugurando o chamado Chisholm Trail. A história dos homens que o conseguiram, e também, na estrita tradição do western clássico, um amplo fresco histórico de um país pela sua geografia e paisagem (próximo, mas muito diferente, de Wagon Master, filme de 1950 de John Ford).

Hawks, que chegara ao género num ponto já avançado da sua obra, constrói aqui tanto um “exemplo” paradigmático de western, como um filme bastante singular. A abertura é algo apressada, parecendo querer condensar uma quantidade considerável de informação variada nesses primeiros instantes. Mas sem verdadeiramente se revelar durante a “introdução”, Hawks lança enfim o filme a partir de uma grandiosa panorâmica do Racho de Thomas Dunson (John Wayne), silencioso e estático, ao nascer do sol. Um olhar de Dunson sobre Matt (Montgomery Clift) e enfim a partida pelos mais belos grandes planos dos homens da equipa a sorrir e a gritar entre si. Homens solitários e cansados, por longo caminho inóspito na grande paisagem aberta.

Red River (1948)

A construção pouco “rígida” do filme, algo episódica dentro de um quadro global muito preciso, permite a Hawks um revelador jogo de géneros. Comédia e romance (com Matt e Cherry sempre a admirar a arma um do outro), melodrama romântico (Fen e Tess, uma mesma personagem vezes dois) e thriller psicológico (pela sombra de Dunson), mas sobretudo, e sempre, uma grande aventura. Uma história de persistência na violência daquela terra, as vacas e os cavalos, e sempre o “mundo interior”, tanto de um grupo, como dos diferentes homens que o compõem. Muito ao jeito de Hawks, cujos filmes parecem explicar-se mais claramente através de noções geométricas, ou princípios musicais, teremos aqui um necessário paralelismo entre as duas figuras principais por duas partes de um filme. Uma primeira metade centrada em Dunson, uma segunda orientada em torno de Matt. O rio que as separa, e que será atravessado em dois momentos muito específicos da trama, e aquela pulseira – oferecida por Dunson, roubada a Fen, passada de Dunson a Matt, e enfim “reencontrada” no pulso de Tess – como que enlaçando enfim as duas linhas equidistantes pela sua curva final. Um curioso duo de “pai e filho”, viúvo e orfão, dois rivais, juntos pela terra e na perda, um vendo o outro como que através de um espelho. E um filme imenso, tão cheio das vidas das suas personagens (o Groot de Walter Brennan, Cherry Valance de John Ireland, ou Tess Milay de Joanne Dru) – de corações ao alto.

The Big Sky (1952)

The Big Sky (1952), o segundo western de Hawks funciona como uma quase variação de Red River, mas num contexto completamente diferente. Um western… num barco, seguimos (novamente) um grupo de homens numa longa viagem de duas mil milhas, partindo de St. Louis e “up the Missouri River“, para uma troca comercial com os índios Blackfoot. O propósito é simples, e será da facto na profunda e perfeita simplicidade do filme – na sua quase “evidência” – que Hawks conseguirá aqui trabalhar ou retratar conceitos mais complexos e valores mais abrangentes. The Big Sky é um western contemplativo, um filme deslumbrado pela paisagem livre, pelas vistas e figuras desse “grande país”, então ainda desconhecido, sempre selvagem sob o ainda maior, e titular, “grande céu”. E desse azul natural que envolve toda a acção do filme, o grupo de aventureiros transporta um pouco na cabine do barco (o Mandan) – uma jovem índia (Elizabeth Threatt), Teal Eyes (“olhos azul-esverdeados”), resgatada pelo grupo, mas sua prisioneira (um primeiro comentário de Hawks), será o reflexo daquela grande paisagem, como que ecoando, pelo seu silêncio, o país natural ao centro da narrativa humana do filme.

The Big Sky (1952)

Como noutras obras de Hawks, a história vai-se aqui encontrando, construindo aquele tempo e lugar à medida que discorre. Um pouco como se percorrendo efectivamente aquele rio, as coisas vão… acontecendo, mas quase nunca propriamente quando as esperamos e sem denunciar um qualquer rigor na cadência narrativa. Não saberemos até muito sobre Boone (Dewey Martin), o grande amigo que Deakins (Kirk Douglas) conhecera pela estrada (fugindo de um xerife), com quem decidira partilhar caminho, um pouco sem saber porquê, e em cujo rosto misterioso nos habituamos a confiar. Boone, que entra em cena com o lançar de uma faca e cedo se dedica a esmurrar Deakins, será sempre um elemento agressor, uma personagem movida por uma herança de violência (aquele escalpe que guarda junto ao coração), que carrega até ao libertador (e frágil) desenlace final – onde enfim prevalece a voz “do coração”. Em contrapartida, o amplamente positivo Deakins nunca será o autêntico protagonista de um filme que, afinal, abraça sempre uma pluralidade maior e uma necessária contradição no seu discurso. Hawks evita o grande plano, e The Big Sky será sempre uma história – se podemos falar de “história” – que se conta através de quadros mais largos e inclusivos. Um filme dessas “primeiras vezes” que fizeram a América, um abraço aos mistérios fundados naquela paisagem. E uma convicção de que, muito para além das mentiras que se mitificaram no ódio “ao outro”, o país se construiu (ou deveria construir-se) a partir do entendimento e colaboração (o casamento) entre as diferentes culturas que lhe dão uma forma.

Um dos filmes de Hawks que mais “naturalmente” se parece associar a valores morais (sem moralismos) de tolerância. E, num relato em exteriores, que dizer daqueles belíssimos primeiros instantes de barco, pelo nevoeiro, como se flutuássemos sobre as nuvens (ecoando Mizoguchi)? A caminho, num caminho que se vai fazendo. A história da América enquanto grande aventura, enquanto viagem, e por aqueles que – juntos – por ela se aventuraram. E o mais amplo céu que nos envolve a todos.

The Big Sky (1952)

 

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Naquela que se tornaria a entrada mais popular da sua filmografia, Hawks “inverte”, enfim, o fundamento dos seus dois primeiros westerns, trabalhando a partir de uma geografia circunscrita e de espaços fechados. Mais uma vez, teremos aqui um grupo “isolado” de homens, mas neste caso, com um número de figuras bem mais restrito do que o de Red River ou The Big Sky. Em Rio Bravo (1959), serão apenas quatro, mais uma mulher, e o filme discorrerá, conceptualmente, a partir de um jogo constante de diferentes triângulos, mais ou menos amorosos, a partir dos quais todas as personagens se afirmarão em cena. Hawks compreende que as evidentes restrições do argumento lhe oferecem, na verdade, um número quase infinito de possibilidades, potenciando paralelamente tanto as ideias geométricas do “gesto” hawksiano, quanto os valores humanos que elevam os seus filmes.

Rio Bravo (1959)

A “história” de Rio Bravo conta-se em duas linhas – será um quase western de câmara (ou “de câmaras”), onde um simples passo para fora de uma das suas “caixas” sugere um imediato convite à morte. John Chance (John Wayne), xerife da cidade, detém, por assassinato, o irmão de um importante rancheiro (e criminoso) local, tendo de aguentar o “forte” até à passagem de um U.S. Marshal. A partir de um dos dois lugares seguros do número limitado de espaços do filme — a cadeia de Rio Bravo —, Wayne, o “big guy with the battered hat” (bela deixa do cartaz do filme), contará com a ajuda de Dude (Dean Martin), bêbedo e antigo companheiro de aventuras do xerife; Stumpy (Walter Brennan), velho coxo e excêntrico, também xerife-adjunto; e de um rockin’ babyfaced gunfisted kid de olhos azuis, Colorado Ryan (Ricky Nelson). Em segundo plano, no hotel da vila, a “equipa” terá o apoio de Feathers (uma Angie Dickinson inesquecível), gambler em fuga de um desgosto amoroso, Pat Wheeler (Ward Bond) e do excêntrico casal mexicano que gere o estabelecimento. A trama discorrerá entre estes dois postos, não seguindo um programa narrativo específico, mas antes se “perdendo” por uma sequência de episódios, a partir dos quais se vão dispondo progressivamente as peças do filme. Se algo “extenso” (140min) relativamente à história sucinta e simples que descreve, Rio Bravo existirá, precisamente, pelo tempo que dedica aos eventos e às suas personagens, privilegiando uma exploração formal e sentimental da sua matéria a um qualquer exercício narrativo mais redundante. Será aqui o buddy movie por excelência — muito nas suas personagens, cujo retrato será potenciado pelo movimento (ou, novamente… tempo) que Hawks dedica às diferentes coisas do filme. Fora duas excepções essenciais, a trama, em seis dias, desenvolve-se a partir de diferentes sequências, mais ou menos episódicas, com (até) três intervenientes. Dos diferentes triangulos sentimentais que Hawks inventa, o vértice cimeiro é, quase invariavelmente, o Chance de John Wayne – e será um recurso sucessivo do filme que, a cada entrada de uma nova personagem em cena, uma outra nos deixe para lhe ceder o lugar.

Rio Bravo (1959)

Neste sentido, o valor maior de Rio Bravo não será tanto a referida inversão que representa em relação aos westerns precedentes de Hawks, mas sobretudo a importante subversão que parece estabelecer relativamente aos códigos do western clássico. Mais do que os elementos simbólicos ou culturais do género – que subsistem aqui e com os quais Hawks se permite até a brincadeira “muda” que abre o filme –, uma subversão sobretudo dos seus valores mais puramente cinematográficos. Forte de uma inevitável redundância, Rio Bravo é cinema enquanto registo da passagem do tempo. A acção não se afirma enquanto elemento condutor da trama, surgindo, pelo contrário, a preencher o intervalo que as personagens devem percorrer entre o começo e o desfecho (sempre esperado) do filme. E se este seu preceito será perigosamente “moderno” (com um enquadramento narrativo onde subsiste, em permanência, uma noção de ameaça), Hawks potencia-o através de um trabalho ímpar em torno das suas diferentes personagens. Rio Bravo trata-se, afinal, de um filme onde cada personagem se revela pelo seu curso em cena, um filme onde se propõe sistematicamente um campo onde as personagens podem… livremente (? – conceito difícil, dado o contexto narrativo) expressar-se através da simples cadência da película.

E por muito que o desfecho se revele através de uma sequência de acção prodigiosa, os períodos principais serão aqui sempre em espera e numa quase “inacção”. Não haverá hoje muito mais para dizer sobre a celebrada e paradigmática cena musical – a quatro! – ao centro do filme. Uma sequência onde se revela o pulsar essencial deste filme, onde resiste a beleza de todo o trabalho de Hawks, onde vivem, enfim, todas aquelas figuras de cinema, magistralmente interpretadas por quatro actores maiores (mesmo Ricky Nelson, simplesmente perfeito). Neste filme de acções, mas raramente de acção, o sentimento nasce da forma e do movimento do corpo, e de como este se expressa temporalmente na película – um filme de aparência, e, nisso, um filme interior. E como nos relembra Rivette (num texto de 1953), como se se associando especificamente ao sentimento transversal a todo este Rio Bravo, no cinema de Hawks, “a comédia nunca se ausenta das intrigas mais dramáticas”, e será a comédia que, longe de comprometer o pathos da tragédia, retém o filme no seu equilíbrio incerto. A paisagem americana envolve aquela cidade isolada, mas é todo um outro mundo que se desdobra, afinal, a partir de cada personagem. Uma canção de amizade e amor, um romance contado no Presente do Indicativo, a partir do qual cada figura se projecta numa “realidade” passada (veja-se toda a progressão de Dude, ou o amor frustrado de Chance com Feathers). Um dos filmes maiores.

Rio Bravo (1959)

La monotonie n’est qu’un masque ; de lentes et profondes maturations se dissimulent, un progrès obstiné, des conquêtes faites pied à pied sur le sol et sur soi tout ensemble, jusqu’à un paroxysme. Voici la lassitude considérée comme ressort dramatique ; l’exaspération d’hommes qui se sont contenus durant deux heures, ont patiemment condensés sous nos regards la colère, la haine où l’amour et s’en délivrent brusquement, tels des piles lentement saturées dont l’éclair doit enfin jaillir ; le sang-froid exaspère la chaleur de leur sang ; le calme auquel ils s’appliquent nous contraignent à pressentir leur émoi, à partager le tremblement secret de leurs nerfs et de leur âme, jusqu’à ce que la coupe déborde ; un film de Hawks n’est souvent que l’attente anxieuse de la goutte d’eau.

Génie de Howard Hawks,
Jacques Rivette in Cahiers du Cinéma n° 23, maio 1953

El Dorado (1966)

Se em Rio Bravo (1959), o perigo espreita a cada instante, a espera – essa noção muito própria ao filme, como a muito do cinema de Hawks – faz-se em relativa alegria; as diferentes personagens partilham o espaço de cena numa essencial bonomia. El Dorado (1966) – dito remake do realizador desse seu filme de 1959 – deixa, desde a cena de abertura, uma impressão muito distinta, de um tom mais carregado, daquele que enchia a “versão original”. Robert Mitchum (o xerife J.P. Harrah), de espingarda em punho, visita um John Wayne (Cole Thornton, “gun-for-hire“), recém-chegado à cidade, que se apruma nos lavabos de um saloon. Wayne parece contente ao rever o amigo, mas Mitchum, mais cauteloso, previne-o das intenções do empregador que trouxera Wayne de volta a El Dorado. A tensão de um e a surpresa do outro, acabam por dar lugar ao entendimento – o meio-termo onde sempre se nivelam – e tudo termina com a irrupção de Maudie (Charlene Holt) pelo espaço e um riso compulsivo ao se encontrar assim, entre aqueles dois homens, num espaço tão privativo.

– Yeah, I’ve known him a long time, since before the war. We’ve, uh, we’ve travelled some together.
– Sure, I know what that means. It means either you saved his life or he saved yours, or both. And neither one of you will talk about it. Men.

Nesta primeira iteração de Rio Bravo, a trama é de novo algo solta, ou pouco “determinada”. Mas o pulsar interno do filme parece-nos sempre muito mais constrangido. Aqui, a acção será algo ininterrupta – ou melhor, a referida “espera” faz-se de ou em acção -, a violência mais explícita, e uma certa impaciência (urgência?) parece orientar as personagens do filme. Muito se move, afinal, na aparente necessidade de impedir “algo”; cada personagem sendo motivada pelas marcas de um passado seu. Mitchum parece-nos envelhecido, mas não tanto quanto Wayne. Os anos foram passando, outros amores se foram perdendo, e o corpo começa então a falhar. E se o Stumpy de Walter Brennan, em Rio Bravo, era fonte de energia (humana) para uma associação de homens sempre bastante improvável, em El Dorado, num grupo a quatro, muito mais sólido e equilibrado, a idade será sempre sinónimo de fraqueza. Falando de “equilíbrio” (noção sempre central ao filme), as duas personagens principais (Mitchum e Wayne) nivelam-se sistematicamente, enquanto as duas figuras secundárias (o jovem Mississippi, de James Cann, e o “velho” Bull Harris, de Arthur Hunnicutt) acabam por participar na forma equilateral do quadro – o jovem, algo original e bastante menos apto ao combate do que fora Colorado (Ricky Nelson em Rio Bravo), e o velho consideravelmente mais discreto e menos excêntrico.

El Dorado (1966)

El Dorado abandona as construções em triângulo que ritmavam Rio Bravo, para se interessar pelo quadrado (dois mais dois, os quatro homens do grupo, os quatro irmãos MacDonald, os quatro sabões do xerife…). Qualquer acção sendo sempre partilhada por pelo menos dois intervenientes (outros dois, fora de cena, procurando frequentemente uma posição oposta a esses dois) existe aqui uma fundamental noção de rima ou repetição. E tanto quanto repete e reordena os princípios que formavam Rio BravoEl Dorado sugere afinal, internamente, a própria ideia de se (auto-)repetir e (auto-)reordenar. Hawks faz da noção de um remake o próprio motivo cinematográfico do filme – uma repetição que possa corrigir a primeira versão dos eventos (veja-se todo o percurso pelo filme de Joey MacDonald – Michel Carey -, como disso um exemplo perfeito). Voltando a Red River, onde o realizador trabalhara um “binómio” enquanto motor da acção, a ideia aqui não será tanto encontrar a posição de Wayne e Mitchum entre duas linhas paralelas, mas os próprios dois homens enquanto linhas paralelas. De “selling his gun-arm all over the place” a adjunto de Xerife, para Wayne, ou de bêbedo a Xerife, para Mitchum, ambos corrigindo a sua trajectória individual quando na presença do seu reflexo. Se Mitchum recebe um tiro na perna, saberemos que Wayne, forçosamente, será atingido no mesmo ponto. E afinal, nada mais do que o retrato de dois cowboys em movimento descendente. Duas linhas paralelas pela rua central de El Dorado, muletas lado a lado, um o remake do outro.

You’re trying to say I am in the same mess you were? (…)

You think I’m gonna make a fool out of myself like you did?

Mais do que uma simples versão nova de Rio Bravo – filme com o qual El Dorado não ganha forçosamente em comparação – teremos aqui uma (primeira) “variação” desse filme, um ensaio… diferente. E nisso, um filme de velhos (Hawks com 70, Wayne com quase 60 – na verdade mais velho do que o “velho” Hunnicutt – e Mitchum a chegar aos 50), desses para os quais parecia não haver lugar naquele Oeste. Um filme sempre marcado pelas feridas do Passado, pela idade, e pela violência. E um filme que um tanto se apressa para chegar à justeza (ou justiça) de um necessário ponto de equilíbrio – em campo e no tempo.

Rio Lobo (1970)

Mas se em El Dorado, Hawks realizara um filme “de velhos”, é com Rio Lobo (1970) – a segunda iteração de Rio Bravo e o último filme de Hawks – que o realizador arrisca, enfim, um filme de velho. Um western assolado por um profundo sentimento de perda, por tanto que se tenha sugerido existir aqui a aproximação a um cinema mais “novo” — o trabalho de câmara e seus zooms (em parte executados pelo realizador assistente), um elenco de actores muito jovens e pouco conhecidos (entre os quais Christopher Mitchum, filho de Robert) —, o que sobressai é, efectivamente, um filme a pinceladas mais grosseiras, mais “esquissado” e menos preocupado com detalhes na execução. Rio Lobo é um filme perfeitamente identificado na sua personagem principal, o Coronel Cord McNally, de John Wayne. Uma figura demasiado usada para o seu percurso – de blue belly, oficial de cavalaria para a União, a cowboy aparentemente desocupado – mas cujo simples impulso se apresenta como a justificação necessária a toda a trama do filme. 

Wayne, com 63 anos, está efectivamente velho, demasiado velho, demasiado gordo para aquelas andanças. E a sua presença é tanto mais envelhecida por não encontrar em cena um necessário suporte “histórico” dentro do grupo que encabeçará. O companheiro que tivera nos dois filmes precedentes – Dude (Dean Martin, em Rio Bravo), ou J.P. Harrah (Robert Mitchum, em El Dorado) – morre, afinal, nos primeiros instantes desta história, sem deixar outro traço na tela que não seja aquele dever de vingança que servirá de motor a toda a acção. Rio Lobo é globalmente o filme mais “operacional” dos três westerns finais de Hawks, e a variação que trabalha do modelo de Rio Bravo é singular pela brevidade com que se reencena aqui cada ideia do filme de 1959.

Rio Lobo (1970)

Invulgarmente, esta “versão” abre com uma longa sequência, inédita, em torno de um assalto a um comboio do exército da União (Norte) por parte de um grupo de soldados dos Estados Confederados (Sul), nos meses finais da Guerra Civil Americana. Ned Forsythe, amigo próximo de Wayne, responsável pela guarda do comboio, morre em decorrência do golpe. No primeiro terço de Rio Lobo, seguimos a perseguição e captura dos “inimigos de guerra” que cometeram o crime. Mas o essencial aqui será a neutralidade que Wayne revela em relação a esses “antagonistas” – que convida para beber um copo assim que a guerra termina – e a promessa de vingança quanto ao verdadeiro responsável pela morte do amigo – um traidor entre os seus militares, que teria fornecido as informações ao Sul.

É por essa vingança que se orientam os restantes dois terços do filme. Wayne surge-nos aqui muito mais isolado do que em qualquer outro trabalho seu com Hawks. Uma equipa será formada, é certo, pouco a pouco e progressivamente, com novos companheiros que vai encontrando pelo percurso, mas será sempre na terrível evidência de uma diferença abismal de idades entre pares que este exercício afinal funciona. Aos triângulos amorosos de Rio Bravo, ou ao jogo quadrangular de El Dorado, a construção geométrica de Rio Lobo parece nunca estar definitivamente “pronta” até aos instantes finais do filme. Teremos um trio que Wayne forma com Pierre Cordona (Jorge Rivero), militar sulista, e Shasta (Jennifer O’Neill), outra personagem em busca de vingança; um bando de quatro onde entra também o velho Phillips (Jack Elam); e eventualmente o novo trio de homens que captura Ketchum (Victor French) já sem a participação de Shasta. Ainda assim, o verdadeiro grupo de Rio Lobo é aquele que vai surgindo, algo informalmente, em plano secundário da acção, para se revelar enfim (e apenas!) no plano final do filme: três homens, com Tuscarora (Chris Mitchum) a ocupar o lugar precedente do velho Phillips, seu pai, e três mulheres, Shasta para Pierre Cordona, Maria (Susana Dosamantes) para Tuscarora, e Amelita (Sherry Lansing) para… Wayne, assumimos. É de facto o que nos dizem os instantes finais do filme, mas mesmo Hawks parece brincar com esse absurdo ao relembrar o “conforto” que o corpo velho de Wayne representara a dada noite, no deserto, para Shasta, agora também elogiado por Amelita.

Rio Lobo (1970)

Ainda assim, se Rio Lobo é o primeiro destes três westerns a integrar  efectivamente mulheres no grupo nuclear do filme, é sobretudo verdade que estas serão, aqui, provavelmente as personagens femininas mais estereotipadas e de menor profundidade psicológica da obra de Hawks – que, nos seus momentos mais altos se distingue pela humanidade que revela a partir de um registo fortemente assente na abstração. Amelita, de muito atrevida e disponível a nova figura potenciada pela vingança, pode até, efectivamente, fechar a sequência de violência que fora inaugurada por Shasta. Mas tanto uma quanto a outra, quanto Maria, são aqui simples ideias rápidas de mulheres bonitas que convêm, é certo, à fluidez humana do filme, mas que nunca revelam qualquer individualidade franca.

Enfim, a experimentação “curiosa” do velho Hawks com Leigh Brackett (argumentista dos três westerns) sobre a proposta narrativa tão singular de Rio Bravo, não será sem o seu encanto. Mas Rio Lobo é, em grande evidência, um filme muito menos conseguido do que tanto Rio Bravo como El Dorado. Rio Lobo padece sempre de uma grande dificuldade em encontrar, enfim, o seu espaço fundamental – nunca permanecendo muito tempo no mesmo lugar. El Dorado pervertia já a inacção de Rio Bravo, é certo, mas em Rio Lobo é a própria acção de El Dorado que é pervertida pela insistente narrativa do filme, que lhe furta o ritmo intrinsecamente hawksiano dos dois westerns anteriores. Em Rio Lobo parece sempre existir algo a fazer noutro lugar do filme, os momentos de pausa sendo fugazes e raros, e nisso insuficientes. E claro, nesse movimento contínuo é com grande dificuldade que se colam as peças, aqui tão dissonantes, do essencial grupo ao centro da trama. Mas ainda que sendo um dos filmes menos apreciados da obra tardia de Hawks, Rio Lobo não é forçosamente mau, mas sobretudo um tanto incerto na sua forma… e no seu contexto cinematográfico. A sua fotografia em tons de pastel, embaciada, não deixa mesmo lugar para dúvidas — estávamos então a entrar em novos tempos, onde aqueles dois velhos lobos já não eram mais do que ecos anacrónicos de um Passado.

Miguel Allen

 

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A obra de Howard Hawks atravessou quase a totalidade dos géneros cinematográficos. O realizador norte-americano foi responsável também por alguns dos westerns mais aclamados da história de Hollywood, que temos vindo a escalpelizar neste artigo. Hatari! (1962), que se encaixa entre Rio Bravo e El Dorado, raramente é incluído no seu hall of fame, mesmo que nos cinjamos aos westerns, género de que pouco consensualmente faz parte. No entanto, para além do próprio realizador assim o considerar, são inegáveis as aproximações aos tradicionais códigos do género, ainda que não inteiramente óbvias.

Na folha de sala que escreveu para a Cinemateca, João Benárd da Costa conta a forma como ponderou descrever sucintamente Hatari! para uns ilustres colegas que não apreciaram o filme: “acha que a história de um homem, ressentido com o amor e a vida, por causa de uma experiência tramada com uma mulher que não era boa rez, que reaprende a amar e a confiar em consonância com o grupo onde está inserido e com o mundo natural que o rodeia, é uma história que não vale um caracol?”

A verdade é que, para o espetador mais incauto, o filme pode aparentar ser apenas uma “cowboyada” ou um “hangout movie”, como muitas vezes é apelidado em tom depreciativo. E a leveza do fio narrativo, praticamente inexistente, ou da comédia que permeia cada diálogo, a essa avaliação convida. Pockets é particularmente fascinante nesse sentido, entrando para o rol de idiossincráticos personagens hawksianos de que fazem parte, por exemplo, Stumpy de Rio Bravo, ou Eddie de To Have and Have Not, interpretados por Walter Brennan. Mas a beleza de Hatari! está precisamente na sua simplicidade, ou pelo menos na sua aparente simplicidade. Porque nada simples terá sido a encenação dos momentos de captura dos animais selvagens, responsáveis por algumas das cenas mais fascinantes da obra de Hawks. É difícil imaginar algo que suplante a figura de John Wayne sentado numa cadeira instalada no capot de uma carrinha de caixa aberta segurando uma vara com uma corda em perseguição a búfalos, girafas ou rinocerontes. A mise-en-scène é de cortar a respiração, com a montagem a intercalar os veículos, animais e personagens de diferentes ângulos e proximidades à câmara, captando a inerente imprevisibilidade do comportamento dos animais em perfeita harmonia com a atuação dos personagens. Western ou não, Hatari! é um marco muitas vezes subvalorizado na filmografia de Howard Hawks e, atrevemo-nos a dizer, na história do cinema americano. 

Bruno Victorino