Pela sua perfeita simplicidade, o Western será, provavelmente, um género cinematográfico perfeito. Com efeito, um exercício narrativo e poético que parece encontrar o seu campo expressivo ideal no Cinema. Um género por excelência americano, tendo servido de veículo aos mitos fundacionais de um grande país novo. Os homens e a grande paisagem, os duelos e o pôr do sol… O Western terá sido o género de cinema mais popular na primeira metade do século XX, e ainda que o seu apelo popular e relevo comercial tenham decrescido a partir das “revoluções culturais” dos anos 60, permanece enquanto base de uma cinefilia “clássica” (um pouco ao jeito do cinema de terror, mais recentemente).
Mergulhando neste género tão extenso quanto a grande paisagem que evoca, seis críticos da Tribuna nomeiam, no primeiro volume do dossier, um dos seus Westerns de preferência pessoal. Entre títulos que fazem parte do cânone e outros mais próximos da série B, passamos pelo período clássico do Western (que foi do anos 30 ao início dos 60), com 5 filmes que perfeitamente o exemplificam, e pela desconstrução do molde, que se verificou a partir dos anos 60, com títulos como a nossa última sugestão, Django, de Sergio Corbucci.
Apesar de não contemplarmos alguns dos realizadores mais óbvios – John Ford (pai-nosso, presente, ainda assim, na imagem de cabeçalho do artigo), Anthony Mann, Howard Hawks ou Raoul Walsh – nem filmes protagonizados por John Wayne, Jimmy Stewart ou Gary Cooper (imagine-se!), todos os títulos escolhidos nesta primeira lista representam passos necessários para uma cinefilia essencial. Aqui ficam (e perdoem-nos o romantismo da expressão) alguns dos nossos “mitos fundacionais”. As nossas primeiras escolhas.
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Canyon Passage de Jacques Tourneur (1946)
Celebremos o Ole Buttermilk Sky, saudado em canção por Hoagy Carmichael e aqui pintado pelo majestoso Technicolor de Edward Cronjager! É fácil perdermo-nos nas cores deslumbrantes de Canyon Passage, um filme que, a tempos, quase parece sugerir um optimismo algo insensato, mas que desvela, finalmente, um quadro bem mais complexo e violento do Oeste americano. Estamos em 1856, no Território do Oregon, uma região ainda relativamente “selvagem” para aqueles colonos americanos, sem estradas nem diligências, e sem os “restaurantes chiques de Boston ou Nova Iorque”, que tanto apetite despertam no desprezível Camrose (Brian Donlevy). Pelas “ruas” lamacentas de Portland e sob uma chuva incessante, seguimos Logan Stuart (Dana Andrews), cuja empresa de transporte de mercadorias por burro, sediada em Jacksonville, prospera pelo território. A questão que cedo se impõe é essa: o território, ou melhor, a “terra” e a quem esta pertence. Logan atravessa o belíssimo Oregon a cavalo, escoltando Lucy (Susan Hayward), a noiva de Camrose. Constroem-se cabanas e celebram-se casamentos, fundam-se famílias. Lamenta-se a morte daqueles para quem parece não ter havido lugar para chorar. Muito se fala dos “índios” e da ameaça real que constituem. Mas é Logan quem cedo relembra que de um rumor mais cómodo nem sempre advém a verdade.
Apesar da duração corrente do filme, Canyon Passage trabalha uma trama particularmente complexa. Tourneur recorre sistematicamente a pequenos enredos secundários para fortalecer um quadro que será, essencialmente, um comentário abrangente do Oeste americano (aqui, geograficamente mais a norte). O filme desdobra-se através de uma perfeita ambivalência. Relembramos o heroísmo dos pioneiros, mas somos confrontados com a evidente ocupação de uma terra que pertencera a um outro povo americano – e é notável como os corpos dos “nativos” se fundem naturalmente na paisagem que os enquadra, em contraste com os “europeus”. Partilhamos o espaço familiar dos colonos, (re)conhecemos os seus valores mais humanos, mas deparamo-nos com a abnegada necessidade de “avançar” (um melodrama sem lágrimas), que todos parecem assumir. E, se se fala de um perigo iminente naquelas pessoas “de outra cor”, Tourneur evidencia, sem o mostrar, os actos de violência a que foram, afinal, sistematicamente sujeitos pelos “europeus”. It’s a thin margin, between what could be and is. E Canyon Passage é o retrato (pouco) velado de uma história que se fez pela violência – tanto processual quanto cultural. A bravura romântica que alimenta o filme realça, enfim, as nuances sombrias da sua narrativa. Tourneur canta aquelas vistas naturais e a sua novela de desamores com uma delicada e prodigiosa gradação de cores. Mas, se Canyon Passage nos seduz a cada instante, saberemos que o seu ouro também é, afinal, simples “gravilha amarela”.
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Johnny Guitar de Nicholas Ray (1954)
You must remember this, a kiss is just a kiss, a sigh is just a sigh… Filme errado, bem sei, mas não é em vão que invoco Casablanca e a famosa canção de Dooley Wilson (ou Sam, como ficou para sempre conhecido no mundo do cinema), a propósito de Johnny Guitar. No Vienna’s do deserto do Arizona, como no Rick’s Café, em Marrocos, é um tema musical – recebido com o mesmo dolorido incómodo – que nos lança para o tempo da recordação. Um passado que não vemos, mas que sentimos em cada interstício do drama que se irá desenrolar. Em cada décor, em cada diálogo, em cada entoação, em cada olhar. Para Vienna (Joan Crawford) e Johnny (Sterling Hayden), como para o Rick e a Ilsa de Casablanca, the fundamental things apply: o fogo do passado arde no presente. Não sabemos muito sobre o que se passou nos 5 anos que os apartaram, mas sabemos que é esse o tempo fundamental da narrativa de Johnny Guitar. É nele que assentam os amores e ódios dos quais este filme é feito, a teia sentimental que une todas as personagens.
Lançado em 1954, este foi um filme de combate. Do ponto de vista formal, há divergências óbvias com o cânone do western. Desde logo o tal cariz “sentimental”, que irritou o público e os críticos mais puristas. Em vez de uma aventura a cavalo, duelos ao pôr do sol e referências à Guerra Civil ou à fronteira americana, depararam-se com um melodrama que impunha o primado do diálogo e da psicologia ao da fisicalidade e da paisagem; que, de forma ostensivamente operática, jogava a essência da sua narrativa no reino das emoções, à boleia de um expressionismo de cores mais-que-garridas e arquitetura inusitada, relegando a lógica racional do enredo para segundo plano. A mesma “despromoção” que aplicava, para cúmulo de todas as provocações, ao titular herói, centrando-se no conflito entre duas mulheres. Este é o filme da Vienna de Joan Crawford (protagonista) e da Emma de Mercedes McCambridge (antagonista). Personagens femininas que gozam de uma agência e complexidade raríssimas na história do western, impulsionando eventos que não só reverberam características humanas intimamente ligadas ao lado emocional, mas também sinais dos tempos que se viviam nos EUA.
Aqui há outro eco de Casablanca. À semelhança do clássico de Michael Curtiz, a obra de Nicholas Ray funciona como uma espécie de wake up call para a América. Um apelo à reflexão sobre o estado da nação. O que difere, além do momento histórico em si (nos 12 anos que separam o lançamento dos dois filmes, os EUA passaram de participante na 2ª Guerra Mundial a maior potência económica mundial), é o tipo de olhar que cada filme propõe. Casablanca projetava-o para o exterior, para o lugar do país no teatro de guerra. O seu percurso narrativo – e especificamente a correlação entre abnegação e nobreza de caráter que o arco da personagem de Humphrey Bogart estabelece – procurava suscitar sentimentos de missão e solidariedade por uma causa (a luta dos Aliados europeus contra o nazismo) e, desse modo, mobilizar as instituições e a população a renunciar ao isolacionismo que, até aí, marcara a política externa americana. Johnny Guitar propõe o reverso da medalha. Um olhar introspetivo. Não são precisos enormes poderes de dedução para apreender as bicadas ao macarthismo no desenho da personagem de Emma, na forma como lidera diversos “julgamentos populares”, distorcendo a verdade junto de uma turba (apropriadamente vestida de negro) que ameaça e lincha aqueles que considera indesejáveis. Também não é inocente a forma como o agente da lei é representado: um joguete nas mãos da banqueira e do maior rancheiro da região. Mas é a conjugação deste olhar político com a forma narrativa que mantém a frescura de Johnny Guitar. A construção das personagens é tipificada até certo ponto, mas o guião tem fôlego suficiente tanto para humanizar cada uma delas, como para conferir à crítica um olhar psicossocial. O conflito central é de cariz (latentemente) sexual e praticamente todas as interações entre homens e mulheres (intra e extra género) jorram dessa fonte – ou, pelo menos, do jogo de tensão operado entre expectativas e frustrações dos códigos inerentes a cada género. É esta a base que inflama um ódio com implicações políticas. É assim que Ray critica a América: deitando-a no divã; mostrando a divisão e erosão de uma comunidade devido aos preconceitos que advêm de emoções incompreendidas ou reprimidas. Tudo enquanto dinamita as convenções do western, expoente máximo do mito identitário americano, transformando-o numa espécie de drama sirkiano com mais fogo e mortes.
O grande mérito de Johnny Guitar é a forma como faz caber uma representação total do mundo dentro dos tropos e constrangimentos de um filme de género, sem nesse fervor universalista obliterar o particular. No contexto de um género tradicionalmente exterior, Nicholas Ray trabalha a interioridade, fazendo com que todas as personagens pareçam pessoas vivas e sencientes, a braços com problemas reais (tanto no plano social como no pessoal), que duvidam do que sentem, lutam com inseguranças e agem por capricho. Todas a habitar um mundo onde a vida vale muito pouco e a morte espreita a cada esquina (como no verdadeiro wild west). Contudo, ao invés de adotar um estilo “realista”, o cineasta abraça o artifício inerente a Hollywood para interrogar os aspetos definidores do mito do cowboy, sem deixar de levar a sério o potencial emocional dessa imagem. E é por isso que a sua subversão não é um mero exercício de cinismo ou didatismo. Há um pathos muito sincero no antigo pistoleiro que quer amar, em vez de matar, na mulher sábia vitimizada pela paranóia, na vilã que não se reconhece nas emoções que a envergonham e na confusão de um miúdo que vê uma nova figura masculina (paternal) entrar na sua vida. Nada é rejeitado, toda a crueldade e ternura da existência estão presentes nos gestos e diálogos das personagens. Nem uma partícula de informação foge dos planos de Ray que, numa conjugação perfeita de todo o aparato fílmico, constrói uma narrativa admiravelmente funcional. No final, depois do mundo inteiro de acontecimentos, movimentos e sensações possíveis ser passado em revista, cumpre-se a promessa do cinema: a mentira de um “para sempre” de duas horas que nos recorda de quanto a vida vale a pena viver.
– Tell me something nice.
– Sure, what do you want to hear?
– Lie to me.
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Forty Guns de Samuel Fuller (1957)
Uma visão infernal. A primeira cena de Forty Guns é tirada directamente de um conto macabro. Barbara Stanwyck, a “high-ridin’ woman with a whip“, segue na frente da sua ‘posse‘ de quarenta armas contratadas, como se de um acessório do seu vestido preto se se tratasse, deixando no seu encalço um retrato de devastação. “Run before your eyes give out all the way” é o conselho que Barry Sullivan dá a Hank Worden perante a ameaça da violência gratuita e crueldade casual que representam os quarenta cavaleiros de Stanwyck. De facto, um pouco como os westerns de André de Toth (Day of the Outlaw, The Gunfighter), Samuel Fuller encontrou o seu lugar na facilidade da matança, na promessa da grande planície americana. À frente deste pelotão de morte está uma mulher providencial: Stanwyck comanda a cavalgada com a mesma naturalidade com que domina a cidade de Tombstone e entra pela prisão adentro para falar com o irmão mais novo (preso desta feita por Sullivan), ou faz passar o mandado de captura de Chuck Roberson pela mesa dos pérfidos quarenta. À semelhança de Johnny Guitar, de Nicholas Ray, ou de Rancho Notorious, de Fritz Lang, Forty Guns coloca uma mulher forte no comando das incidências. Mas enquanto que a Vienna de Joan Crawford ou a Altar Keane de Marlene Dietrich representam donas de albergues mal frequentados, Barbara Stanwyck é uma impossibilidade do oeste: uma mulher dominadora.
Para todos os efeitos, Forty Guns lida com esta impossibilidade capital, a ligação entre Stanwyck e Sullivan, ferida que está pelo destino de ambos. Para Stanwyck, Sullivan é apenas um “legal killer for hire” (“I’m sure you don’t kill for fun“, diz quando Sullivan lhe nega a acusação), que procura interferir com o seu domínio estrangulador de Tombstone, por isso faz o que qualquer chefe mafioso faria: oferece o cargo de xerife ao homem que a ameaça com a promessa do seu apoio pessoal. O Griff Bonell de Sullivan surge em Tombstone na ignorância, mas sobretudo na longa sombra da Jessica Drummond de Stanwyck: um homem ultrapassado na sua forma de vida, que vê o oeste a escapar ao seu controlo. Após a cavalgada no prólogo, Jessica e Griff encontram-se verdadeiramente noutra cena magistral, filmada por Fuller com a sua intensidade característica: quando ambos são apanhados no centro de um tornado que faz arrastar Jessica no seu cavalo pelo pé e são forçados a encontrar refúgio no local onde outrora o seu irmão nasceu e Jessica enterrou a mãe. O background de Jessica não poupa pormenores de tragédia e violência. “This is the last stop, the frontier is finished“, diz Jessica a Griff. A sua esperança ainda é a de forçar a submissão de Sullivan, mas este reconhece o logro de alguém que apenas procura quem lhe acate as ordens. Esta ideia de que uma mulher forte precisa de um homem forte comanda a cena do showdown final entre o irmão de Jessica e Griff, com Jessica pelo meio. Griff não hesita em visar quer Jessica, quer o irmão, “everything you told me not to do” segundo Robert Dix. As consequências para Griff são evidentes: “got to be big to forgive“, lamenta. Assim sendo, a prova de grandeza final só podia ser de Jessica, aquela “high-ridin woman with a whip“.
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Day of the Outlaw de André de Toth (1959)
Ao ver Day of the Outlaw, regressamos (e redescobrimos) vezes sem conta um mesmo espaço. A ação passa-se maioritariamente numa pequena localidade algures no Wyoming, outrora palco de empolgantes confrontos de faroeste, agora pasto de honestos agricultores. Blaise Starrett (Robert Ryan), um velho rancheiro que ajudou a “pacificar” a zona, regressa num Inverno nevoso. Como um Ulisses furibundo não percebe o arame farpado e as estacas. Aparentemente, o progresso exige a demarcação da terra, algo que o velho guerreiro vê com maus olhos. Discussão no saloon, troca de olhares no estábulo, plano longo entre Ryan e uma certa Helen(a) (óbvio, os westerns são mitologia grega nas planícies do novo mundo) … O campo/contracampo de André de Toth opõe performance a mise-en-scène. Recorta o grupo dos good fellows, veios vazios de interesse, de forma prodigiosa, à medida que Ryan vai reagindo não reagindo.
Quem está a ver quem? Não há tempo para romance, nem para poesia, em Day of the Outlaw impera um traço impermeável a qualquer ânimo ou vontade. Mais à frente, quando um grupo de outlaws toma de assalto a terreola e todos os que lá estão como reféns, De Toth consegue a proeza de sitiar pela rudeza dos planos. Cá fora a neve permanece igual. Lá dentro uma dança perversa, um bailarico para entreter as hostes famintas, numa exibição mais que pavorosa inerte. Remendos de relações e sentimentos passados em corpos perdidos pairam pela sala. Não constituem nada. Ryan olha para cada um dos vilões e torna a sentir a angústia do perigo, já não a apaixonante exuberância essa sim provavelmente perversa da sua juventude.
Aquele eco na pianola! Assim que fechamos o espaço, não há como prever o comportamento do Homem. Vejamos o grande plano na cara do agricultor com princípios. Só pode pensar no que está a acontecer, mil vezes pior do que seria se estivesse a ver. A suprema ironia do filme jaz algures aqui, é impossível controlar o tempo e o espaço, pois, ao fazê-lo, o Homem será incontrolável. Somos do tamanho da nossa metafísica, sempre insuficiente.
Que faz Ulisses? O melhor que sabe. Se uns matam e outros esfolam, Ulisses engana. Leva o grupo de polifemos, nessa habilidade que só aos audazes e trapaceiros assiste. Conquista-os através de uma coragem muda, tornando-se ainda mais apetecível para os revólveres da trupe. Desce com eles ao inferno dantesco. Um inferno gélido, não quente, convencendo-os que é um atalho para o que querem. O céu aberto como a gruta inescapável. O espaço silencia o tempo dos homens. O que querem eles? O que quer Ryan? O que querem os agricultores? Não sabemos. Se há certeza em Day of the Outlaw é a morte.
– Are you doing it because of me? I’d like to know…
– I’m doing it because of myself.
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Comanche Station de Budd Boetticher (1960)
John Ford, Raoul Walsh, William A. Wellman, Henry King, Allan Dwan, André de Toth. Este conjunto de cineastas norte-americanos possui várias características em comum. Por um lado, com exceção de John Ford, estamos perante uma série de realizadores injustamente marginalizados do cânone estabelecido do cinema, apesar da qualidade (e em muitos casos quantidade!) das suas obras. Também todos eles, com maior ou menor preponderância, acabaram por se aventurar naquele que foi durante muitos anos o género por excelência em Hollywood: o western. E há ainda um derradeiro traço que os liga: o facto de todos terem filmado em Lone Pine, na Califórnia, singular localidade propícia à encenação deste característico género cinematográfico. A estes nomes pode-se facilmente juntar Budd Boetticher, que se enquadra perfeitamente em qualquer dos elementos atrás referidos.
Comanche Station é o último capítulo da colaboração entre o cineasta, o ator Randolph Scott e o argumentista Burt Kennedy, depois de 7 Men From Now (1956), The Tall T (1957) e Ride Lonesome (1959), todos eles filmados, precisamente, em Lone Pine. Quatro filmes no total que partilham grande parte dos elementos narrativos, oferecendo apenas ligeiras variações temáticas e formais. Se tudo o que é necessário para fazer um filme é uma mulher e uma arma, a verdade é que Boetticher se socorre de pouco mais que isso para construir o filme final da sua tetralogia. Comanche Station inicia logo em plena a ação, com o nosso herói a resgatar uma jovem mulher das garras dos Comanches. Na sequência, o grosso fundamental do filme desenrola-se na atribulada viagem a cavalo com destino à cidade de onde a jovem é originária e onde o protagonista receberá a respetiva e tradicional recompensa monetária.
Boetticher faz-se valer notavelmente das potencialidades estéticas de Lone Pine, bastante distintas de, por exemplo, Monument Valley, talvez a mais icónica localização utilizada no western. E é de facto impossível menosprezar o cariz fundamental e a importância do pano de fundo (bem sabemos que é muito mais do que isso), no alinhamento das convenções do género, pela aridez e desolação do espaço e o paralelismo que suscita com os personagens e a edificação de uma Nova América. Mas não é de beleza estética intrínseca e isolada, de cada imagem ou plano, que falamos e que abunda nos nomeados ao Óscar de melhor cinematografia (o que quer mesmo isso dizer?) contemporâneos. A paisagem, in casu, é minuciosamente incorporada na encenação do cineasta, onde todo aquele característico aglomerado rochoso de forma arredondada, simultaneamente fascinante e inóspito, pode, a qualquer instante, revelar uma ameaça, que coloca em causa a vida, os valores ou a moral dos nossos mitificados heróis.
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Django de Sergio Corbucci (1966)
Se o forasteiro recém-chegado à cidade-fantasma, que acaba embrenhado num conflito entre partes rivais, é a evocação direta de uma das máximas do (spaghetti) western, Django – filme e personagem, uma só entidade – faz uso dessa e de outras heranças (Yojimbo, A Fistful of Dollars) para se impor e alargar a história do género. Há algo verdadeiramente possante num protagonista que não nos encara. Especialmente, e esta é a maior conquista do filme, se o mesmo arrasta atrás de si um caixão, ao longo de uma paisagem desértica lamacenta – cuja continuidade é assegurada pela cidade em decomposição – ao som de uma música que sabe completar a ambiência. Uma imagem absolutamente inesquecível de crueza e devastação, fundindo aquilo que parece ser um fim promissor – a música que canta um sol porvir – com um início conturbado, que emergirá. O homem de passado incógnito, apanhado numa centralidade paradoxal, detentor de uma calma tensa, pacificidade explosiva, personifica a morte que é viva, pois ambulante – é “uno que se chiama Django” quem jaz no caixão que desloca. Na verdade, o caixão é o prolongamento desta figura, o objeto para o qual todos olham, em que a câmara mais tempo leva, pronto a ser dissecado, símbolo ativo da morte, das suas reminiscências, espectro de um amor perdido – cuja reencarnação poderia ser Maria, também ela apanhada entre realidades – um peso literal e metafórico carregado, acabando transformado em ameaça à própria vida, quando é utilizado para carregar ouro, essa recompensa perigosa.
O vermelho faz notar a sua presença para identificar o lado imperdoável do conflito, já que Django se expressa dentro de um contexto político, denunciando, narrativa e visualmente, os atos racistas perpetrados pelos Red Shirts contra os revolucionários do México. Contudo, seguindo uma lógica de pessimismo e tragicidade na construção das personagens e das suas histórias, não coloca nenhuma delas numa celestial superioridade moral – nem mesmo o seu protagonista que, povoando uma “zona neutra”, oscila entre vingança egoísta e intervenção na luta pela liberdade coletiva, consequentemente individual – escrutinando a vileza humana transversal a qualquer fação à qual se possa pertencer. Elabora um crítico jogo entre vencedores e vencidos, um questionamento da posição do (anti-)herói na relação com a ordem e o destino – a destruição das mãos de Django é a brutal manifestação da derrota e, por outro lado, da inextinguível motivação para a ação. Um western aonde só a violência permanece, e o desencanto final – os vilões são abatidos, mas a saída de Django do cemitério, feito campo de batalha, não é triunfante – faz refletir acerca do sentido da mesma, do que lhe antecede e sucede.