A “vida” pareceu colorir de forma curiosa este texto. No passado dia 25 de Fevereiro, no evento do CineTendinha sobre os Óscares em que a Tribuna participou, o Rui Tendinha mencionou por alto, não me lembro a razão, Jia Zhangke, e pensei imediatamente em “Se As Montanhas se Afastam”, filme com dez anos feitos, estreado em Portugal em 2016; no dia seguinte, durante o visionamento de imprensa de “O Romance de Jim”, dos Irmãos Larrieu, a lembrança revelou-se enquanto rima, pois também este filme atravessava várias décadas na vida das personagens, e estava eu a vê-lo dez anos depois do outro, e agora a escrever este texto fora do meu país, como que também fora dessa década – e por aí fora. Aqui não há um tríptico de décadas, como em Zhangke, mas uma sucessão de elipses legendadas (três anos depois, doze anos depois…) em que Karim Leklou, extraordinário actor, interpreta um Aymeric desde a adolescência até à meia idade sem qualquer tipo de caracterização ou de-aging digital. Ou seja: a personagem aos 18 anos e aos 50 tem o mesmo aspecto: é algo belo, suavemente experimental. Aymeric é fotógrafo, e parece começar a contar-nos a história da sua vida através de uma sucessão de namoradas e dos seus retratos. Há a primeira, vinda da adolescência, que durou vários anos e acabou um dia. Há a rapariga que Aymeric conhece depois, na fila para uma discoteca fora da cidade, e que começa com ele um caso ambientado sempre no mesmo motel, com a estranha particularidade de que nunca se deixa ver nua: obrigando-o a virar-se de manhã, quando vai tomar banho, apagando todas as luzes quando se deitam.

Aymeric cruza-se com Florence (Lætitia Dosch) um dia depois de um evento – esta reconhece-o de um Leclerc onde ambos trabalharam no passado. Vão para a cama. Florence está grávida, de seis ou sete meses. O pai é um homem com esposa e filhas – tratou-se de um caso de uma noite, a paternidade não será assumida, Florence será mãe solteira. Aymeric, que começa a amá-la com uma tranquilidade notável, a tranquilidade de quem passou na rua e assim o decidiu, assume também de uma forma muito desassombrada este lugar de namorado de uma grávida, e é com naturalidade que está ao lado dela no momento do parto e que começa a ser um pai para o pequeno… Jim. É desta criança o romance que observamos no título, como o de um grande livro com lacunas por preencher e com muitas passagens já definidas antes da sua vinda ao mundo.
Aymeric e Florence vão viver para o pé da mãe dela, no campo, e Jim inicia uma infância em todos os sentidos idílica: este é realmente o campo, la campagne, em Saint-Claude, junto às montanhas de Jura, perto da fronteira com a Suíça – e é o poder claro e puro do interior francês: Michel Houellebecq fala muito nisso. Tudo é tão perto do perfeito quanto pode ser na existência terrena, até à chegada de um elemento novo: o pai biológico de Jim, viúvo e sem filhas devido a um terrível acidente, contacta Florence. É muito angustiante acompanhar o início da catástrofe pelos olhos de Aymeric quando este chega a casa e vê Christophe na sala com a sua namorada, uma situação que não poderá nunca ser inócua a partir do momento em que esta informa Aymeric de quem se trata. Percebemos, tal como ele, que as coisas se irão inexoravelmente encaminhar para que Christophe invada a vida da família, para que tente ter uma presença na vida do pequeno Jim, quer a criança queira quer não – e é cedo que este lhe começa a chamar “o amigo esquisito da mãe”.

Neste quadro, houellebecquiano de facto, pela piedade que estende a todos os envolvidos, Florence parece, e com todo o direito de mãe, poder ser a derradeira decisora ou deterrente da situação. Haverá, no entanto, outros direitos. Como o de Christophe, o caso mais espinhoso, que tem tecnicamente o direito de fazer parte da vida do seu filho biológico, se os restantes assim concordarem. Aymeric tem o direito, um direito humano muito forte, de fazer parte da vida da criança que acompanha desde que nasceu. E Jim, que tem de todos a verdade mais pungente, e que não pediu outra coisa que não o direito a uma infância feliz, longe deste triste drama adulto. É Aymeric, o belo gigante, o grande gentil – é uma e outra vez que as mulheres na sua vida assim apontam para a sua natureza paciente e carinhosa – o perfeito avatar daquilo que seria o melhor para a criança e que mantém uma impressionante resiliência estóica, aguentando aquilo que durante algum tempo é um estranho trio de pais a viverem juntos nas montanhas, sempre com vista a uma homeostase para Jim.
A situação é insustentável, mas merece mesmo ser vista e não mais descrita aqui. Basta dizer que ainda falta muito filme, e que, como em Jia Zhangke, o último terço é de uma fragilidade e de uma robustez brancas, reluzentes (em Se As Montanhas se Afastam, o alvo das superfícies, a cidade do futuro; em O Romance de Jim, o mar com o sol a bater de chapa, visto de alto). O Romance de Jim é um destes filmes maravilhosos com a duração de uma vida; é difícil descrever com justeza a ternura do filme. Assemelha-se mesmo a um tempo emocionalmente vivido, cheio de coisas que poderiam ser de outra forma mas que não o são, em suma, a natureza contingente da vida. Bertrand Belin assina a música, além de interpretar Christophe – falávamos dele com Patricia Mazuy, o passado Outono. No filme, a bondade de todos os envolvidos – e falo de uma bondade real, nada fantasiosa, e é isso o mais extraordinário que os realizadores conseguiram aqui capturar, a bondade muito humana, nas suas formas mais simples, como o velho colega de escola que se limita a aparecer e a cumprimentar, uns vinte anos depois de ter visto Aymeric, ou mesmo o negativo da bondade – que não é uma ausência dela mas sim o decalque sulcado que deixou com o tempo – presente na personagem que, no fim do seu mea culpa, deixa evidente uma vida já na sua segunda metade e por isso inerentemente piedosa. Estou a ser vago, e é só porque quero que este filme seja visto. Da minha parte, é o mais belo que vi este ano. Digam-me depois de vossa justiça sobre aquele final, aquele final extraordinariamente bem-humorado, na manhã depois de uma festa, com a vida inteira pela frente.