Um filme de guerra, o “Rapaz e a Garça” abre bruscamente, com o mundo a desmoronar. Num prólogo formalmente assombroso, e uma das cenas mais violentas jamais imaginadas por Miyazaki – aproximando-se de “O Túmulo dos Pirilampos”, de Isao Takahata – o “rapaz”, desesperado, perde-se num mar de figuras tenebrosas. Começando por um fim, o derradeiro filme do realizador, que nos oferece “últimos filmes” de há algum tempo para cá, é a elegia definitiva de uma obra rica e profusa, como hermética e de uma impressionante uniformidade temática e formal.
Ao longo da sua filmografia, Miyazaki sempre transitou, de filme para filme, conceitos recorrentes e algumas ideias fortes, de carácter pessoal. Estas “repetições” deram corpo a uma obra em que todos os filmes parecem dialogar entre si, por tanto que sejam, cada um, exercícios individuais de grande originalidade e de uma forte expressividade formal. Neste contexto, “O Rapaz e a Garça” talvez seja a revisão, ou a reversão, mais global da filmografia do autor japonês. Pelas melhores razões (mas também por aspectos menos positivos), este novo filme é muito próximo de “O Castelo Andante” (Hauru no Ugoku Shiro, de 2004), um dos maiores sucessos comerciais do realizador. No entanto, facilmente lhe reconhecemos outras rimas com Totoro, Chihiro, ou mesmo Porco Rosso. Seguimos aqui Mahito Maki que, pelas manhas duma garça cinzenta falante, mergulha numa fantástica odisseia pessoal.
Ao centro da acção teremos efectivamente, de novo, um edifício que não é “geograficamente” fixo. Nem se trata, neste caso, estritamente de geografia, mas de tempo e espaço. Uma “torre” mágica e labiríntica ao centro da herdade da família Maki é um “lugar” onde todo o Tempo, ou todos os tempos da família de Mahito, se sobrepõem, e nisso um lugar espacialmente elástico e, aparentemente, infinito. Este conceito não é estranho às histórias de Miyazaki, onde os limites do mundo concreto não são jamais fronteiras definitivas para o espirito humano ou para a imaginação. Será contudo de salientar que “O Rapaz e a Garça”, ao explorar os seus diferentes espaços, ideias, e sentimentos, num movimento constante de “sobreposição” e “dilatação” (um pouco como o Kaonashi ou “No Face”, personagem de Chihiro) é também, muito provavelmente, o filme mais confuso (e transbordante) do realizador, e, também nisso, próximo de “O Castelo Andante”.
O filme revela-se, de começo, enquanto exercício grave e circunscrito que parece formalizar, de forma muito palpável, o luto de Mahito. De regresso àquela grande casa familiar no campo que já não conhece, uma nova mulher ocupa agora o lugar, espelhando a figura, da sua mãe, que desaparecera tragicamente um ano antes. Mas através do insondável jardim que envolve a casa, a irrupção pela tela da titular “Garça”, será o motor de uma brusca mas progressiva aceleração da cadência do filme. E se Miyazaki desde Chihiro se mostra cada vez mais impulsivo (e nisso algo desalinhado, a tempos), a dita aceleração é aqui particularmente violenta, para se tornar, no último terço da narrativa, verdadeiramente vertiginosa. Poder-se-ia falar de precipitação, ou mesmo de alguma aleatoriedade, tendo em conta a sequência galopante de eventos bizarros que ocupam a segunda hora do filme. Mas no caso de Miyazaki será preferível arriscar que o realizador pretende se concentrar nos blocos essenciais da sua construção, sem trabalhar o filme de uma forma narrativamente confortável. A alegoria da torre de blocos de pedra do tio avô é, afinal aqui, também a ideia formal do filme. E se o resultado é brusco e a momentos difícil de apreender, parece-nos relevante o valor moral do seu “edifício”.
“Achas que ele está dentro ou fora ? Eu acho que está dentro.”
Em paralelo, por entre os filmes do realizador, “O Rapaz e a Garça” é aquele que mais discorre em torno da subjectividade de um olhar. O referido prólogo faz amplo uso de planos subjectivos do que Mahito vê em seu torno – sendo que o “subjectivo”, em cinema de animação, passa rapidamente do enquadramento e orientação do plano, para um uso substancial de matéria imaginada. Toda a sequência na casa de campo assenta assim sobre a potencial subjectividade daquilo que o filme nos mostra. Aqueles elementos mágicos, e nomeadamente a dita Garça, existem de facto, ou serão apenas o fruto da imaginação – do luto – de Mahito? Saberemos que, como sempre em Miyazaki, o mundo real e o da imaginação, o mundo concreto e o mundo fantástico, são apenas um mesmo mundo, do seu cinema, onde os limites são praticamente inexistentes. E “O Rapaz e a Garça” será assim um filme sobre espaços interiores invertidos, e portanto expostos – um filme onde o espaço físico se propõe retratar o interior de cada personagem. E uma grande aventura enquanto meio de fazer face à dor e ao luto.
Se não seria completamente despropositado argumentar que, em “O Rapaz e a Garça”, Miyazaki parece mostrar em força os valores do seu rico vocabulário, sem que, meramente por isso, o filme tenha um propósito claro – de novo, a direção menos concreta do filme poderia denunciar uma certa falta de urgência -, isso seria sobrepor um discurso perigosamente analítico a uma obra que se pretende intrinsecamente íntima, e portanto abstracta. Uma ficção acientífica : do “Como é que vivem ?” do seu titulo japonês (Kimitachi wa Dō Ikiru ka), passamos naturalmente a um “Como é que vêem ?” ou “O que é que vêem ?” que parece se adequar à forma elusiva, difícil, do filme.
Um filme muito colorido, mas de uma tristeza para a qual não existe uma verdadeira redenção. Ficamos com aquele adeus enorme de Himi, ansiosa pelo nascimento do seu Mahito, com o reencontro com Kiriko e as outras velhas, essas adoráveis “sete anões”, e sobretudo com a ternura e bondade de Natsuko, de espelho refeita modelo sentimental da “primeira” mãe. E apesar do “rapaz”, este é, claro, um filme de velho. Um filme que sabe que alguns males não poderão jamais ser reparados. Mas um filme que se encontra, que se sustenta também, nos palácios da memória que todos podemos guardar no coração.
O filme testamento de Miyazaki, personificado na tela pela personagem do tio avô, um grande filme de fantasia que pretende enfrentar um mundo marcado por conflito e perda. Um filme menos focalizado ou, provavelmente, o culminar da carreira de Miyazaki. Uma obra que requer assim várias visitas para que possamos compreender enfim o mosaico louco das suas ideias e, sobretudo, o ritmo exigente das suas imagens. Miyazaki, fora do nosso tempo, por isso intemporal.