No decorrer de 2024, a Cinemateca Portuguesa tem vindo a programar uma série de obras que pretendem evocar a memória e celebrar os 50 anos do 25 de Abril de 1974. O dia 25 de Abril de 2024 foi dedicado integralmente a filmes que lidam diretamente com as imagens da revolução, com entrada livre para todas as sessões. Para além dos habituais As Armas e o Povo ou Que Farei Eu com Esta Espada?, foi programada a curta-metragem O Parto, dos brasileiros Celso Luccas e José Celso Martinez Corrêa, exibida pela primeira vez na Cinemateca.
Importa contextualizar inicialmente a origem deste olhar de fora para dentro, relevante precisamente pelo afastamento geográfico e emocional do tal “estado a que chegámos”. Para isso, citamos diretamente um artigo do suplemento Ípsilon do jornal Público, publicado aquando do falecimento de um dos realizadores – José Celso Martinez Corrêa. “Em 1974, com o Brasil em plena ditadura militar, o encenador e dramaturgo Zé Celso, membro fundador do Teatro Oficina (colectivo então também conhecido como Comunidade Oficina Samba), foi preso e torturado. Após quase um mês nestas condições, exilou-se em Portugal, juntamente com 15 outros elementos da companhia. Foi no final de Setembro desse ano quente que a comitiva chegou a Lisboa. O Estado Novo acabara de cair. O Teatro Oficina envolveu-se com os movimentos populares — e, durante um período tão breve como intenso, produziu um teatro altamente politizado e provocantemente comunitário.”
Socorrendo-se fundamentalmente de imagens de arquivo RTP, O Parto é um filme iminentemente dialético, que utiliza a montagem paralela de pendor eisensteiniano, para justapor diferentes e contraditórias realidades. Os primeiros segundos da curta mostram-nos logo os elementos que vão ser explorados na restante duração. Imagens de Salazar, Marcelo Caetano, da Guerra Colonial, da Revolução e do parto que dá nome ao filme (ocorrido em 25 de janeiro de 1975, nove meses após o 25 de abril), sem nenhuma ordem particular.
O filme encontra-se posteriormente dividido em capítulos, procurando retratar cronologicamente a história de Portugal, do Estado Novo à Revolução. Numa primeira fase são-nos mostradas imagens de Salazar em paradas militares, com a presença da Mocidade Portuguesa e da Legião Portuguesa, onde se advoga o culto do líder e se vislumbram saudações fascistas. Intercaladamente, vemos também Eusébio, Amália e o subjugado povo português. O contraste mais vincado pelos realizadores nesta fase inicial surge na justaposição de imagens de uma festa de cariz burguês, das elites do regime, com imagens de soldados portugueses mortos e feridos na Guerra Colonial, enquanto ouvimos a música Estranha Forma de Vida de Amália Rodrigues.
Posteriormente, outro exemplo marcante de montagem paralela, verifica-se quando imagens das ex-colónias e dos respetivos movimentos de libertação são sobrepostas a um discurso de Marcelo Caetano, justamente contra a sua independência.
E por fim a Revolução, as vozes na rádio, as imagens do Movimento das Forças Armadas, a música Grândola, Vila Morena de Zeca Afonso, a libertação dos presos políticos, o abraço de Mário Soares a Álvaro Cunhal, as mãos dadas em público, o povo emocionado, os cravos nas espingardas. E terminamos no parto, que contemplamos sem cortes. O corte vem depois, do cordão umbilical, intercalado com o próprio corte feito na sala de montagem do filme. Um paralelismo final e profundamente simbólico, de renascimento de uma nação, enfim livre.
O filme encontra-se disponível aqui.