O Mundo Perdido de Vittorio De Seta (1923-2011)

EquipaAbril 18, 2025

Durante alguns anos, um autor secreto do cinema italiano. A obra de Vittorio De Seta começou a ser redescoberta nos anos 90 e, nomeadamente, a partir do restauro (pela Film Foundation) de dez curtas-metragens que realizara nos anos 50. Comummente reagrupadas sob o título Il Mondo Perduto, tratam-se de registos do realizador (com a sua mulher, Vera Gherarducci), em 16mm, da vida rural na Calábria, Sardenha e Sicília. Realizados com poucos meios, entre 1954 e 1959, os filmes destacam-se tanto pela ausência de narração ou “música”, como, nesse seguimento, pela ausência de uma posição, da intervenção do autor na cena retratada. Registos antropológicos, talvez, mas “pela voz de um poeta” (Martin Scorsese), um neo-neo-realismo (cf. o texto sobre Banditi a Orgosolo, que se segue) de um cineasta “entre Flaherty e Rouch, herdeiro do documentarismo inglês (Pescherecci) e precursor do cinema antropológico moderno (Pasqua in Sicilia)” (Christian Depuyper, in Cinéma du Réel – Catalogue de 1994, p. 92).

Vittorio De Seta deixou-nos uma filmografia algo esparsa, onde se destacam ainda o trabalho televisivo Diario di un maestro, ou os filmes dramáticos Un uomo a metà (com Jacques Perrin) e L’invitata (com Michel Piccoli). No seguimento do ciclo “Histórias do Cinema” de Abril de 2025, na Cinemateca Portuguesa, a Tribuna regressa ao “mundo perdido” do realizador, cobrindo a quase integralidade das suas primeiras curtas-metragens, bem como a sua primeira longa, filmada entre pastores na Sardenha. 

 

A beleza quase sagrada e épica dos seus filmes surge “após” o trabalho no terreno; correspondendo ao processo de decantação de uma realidade captada primeiro como um magma, e que o cineasta sabe tratar-se de um mundo prestes a desaparecer.

Adriano Aprà (in Cinéma du Réel – Catalogue de 1994, p. 66)

 

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L’Isole di Fuoco 1955

Entre os 10 curtos documentários que haveriam de inscrever o nome de Vittorio De Seta no rol de grandes mestres do cinema mundial, L’Isole di Fuoco é um caso à parte. Não por ser o único desvio do olhar edificante que o cineasta lança sobre as “cenas da vida laboral”, nos campos e mares do sul de Itália (Pasqua in Sicilia e I Dimenticati também o fazem), mas por ser o único desvio do protagonismo humano. Ao captar as erupções vulcânicas da inóspita ilha de Stromboli, De Seta serve-se dos 4 elementos para dar forma a uma narrativa visual onde a poesia se sobrepõe à etnografia e nos recorda que é subalterno o lugar que ocupamos na escala de forças da natureza.

O arranque quase nos engana. Numa primeira instância, tudo parece encaminhado para mais um antropocêntrico retrato da mediação transformadora do trabalho, até que um som surge no ar… Quase impercetível, ao início, parece depois fundir-se progressivamente ao vento que atiça a vegetação, revolve a maré e adensa as nuvens. A sugestão mitológica está presente neste vento – ou não fosse Stromboli uma das ilhas de Éolo, seu deus – mas é à destreza de De Seta, na montagem, que se deve a aura de misticismo que conjuga os movimentos da terra e do céu. É por sua obra e graça que a natureza passa de paisagem a agente ativo e suspende o tempo dos homens.

Neste ponto de orquestrada agitação, quando o som passa da surdina ao rugido e os sinais de fogo se manifestam, o elemento humano faz-se sentir numa dialética que tanto nos aproxima (pelo temor), quanto nos aparta (pelo insólito) dos ilhéus. Para cada plano de fuga “heroica”, há um contraponto de transe reverencial, de corpos imóveis e rostos em serena apreensão. Ao cair da noite, quando a oposição natural/humano é enfatizada noutro binómio (exterior/interior), os planos contrapicados reforçam a pequenez dos habitantes da ilha face à fúria elementar, mas a verdade sobrepõe-se ao artifício do cinema para os elevar: ao violento ribombar da cratera, o canto das mulheres; às imagens do monte incandescente, o abraço de um pai, sossegando o filho. O conhecimento ancestral que tranquiliza, ante o sublime, e dá corpo ao esquecimento, no novo dia que desponta. O esquecimento das crianças que correm de novo para a escola, dos adultos que regressam ao trabalho e dos cães que correm na praia. O esquecimento que nos redime, face à lembrança do nosso fim.

Gil Gonçalves

 

Surfarara 1955
O realismo de Vittorio de Seta não é camuflado, como acontece com o trabalho daqueles que retrata: dá conta de denominar a sua obra como testemunho de uma tragédia invisível, trazendo diretamente, de baixo para cima, um trabalho sofrido como tantos outros, mas que está circunscrito a um impenetrável resguardo. Indo até às profundezas do “ventre da terra” – quinhentos metros são precisos –, se os mineiros de Surfarara nos são descobertos fielmente através do seu árduo labor, não é de menosprezar a profundidade poética deste retrato, percetível nos movimentos que exercem, nas paisagens que os circundam.  As montanhas e o rio que acompanham o grupo até ao local onde tudo começa, a aurora que se despede da comunidade no momento de descida, são o pano de fundo – a sua presença etérea, preservada pela banda sonora, é apenas prova da imperturbabilidade da imponente natureza perante aquilo que lhe é alheio: os homens; são estes que devem ser perscrutados.

O corpos não descansam neste bulir de escuridão e força, e surge enigmática a cena em que o trabalho – máquinas, braços, rostos e sons –, num repentino crescendo lancinante, condensação de horas duras em alguns segundos, somente cessa, e restam os trabalhadores num silêncio observador e esperançoso, aguardando um final de dia que é sinónimo de recomeço. Homens equiparados às engrenagens das máquinas que maneiam – também eles necessitam dessa fluidez de funcionamento para sobreviver. Um filme que não transparece o sufoco das minas, porque o é ele próprio – acima destes homens, respirando um ar mais puro, outros homens no campo; e as mulheres em casa, cujo trabalho é visível, mas igualmente irrevogável. Acima de todos, o céu.

Laura Mendes

 

Pasqua in Sicilia 1955

A maioria das curtas-metragens que De Seta realizou entre 1955 e 1958 é centrada no trabalho manual e na relação do ser humano com a natureza: a pesca em Lu Tempu di li Pisci Spata, Contadini del Mare e Pescherecci, a extração de enxofre em Surfarara, a faina agrícola em Parabola d’Oro, ou a vida dos pastores em Pastori d’Orgosolo. Nestes filmes, o esforço físico, o ritmo das estações e os perigos do quotidiano são elementos centrais à economia de sobrevivência que o cineasta imortalizou. O corpo do trabalhador — suado, fatigado, mas digno – é o protagonista. Pasqua in Sicilia desvia-se deste núcleo dominante do ciclo – o trabalho – para mergulhar num território mais simbólico, onde o gesto não é utilitário, mas ritualístico. Procura uma sobrevivência de outra ordem: a da memória coletiva e espiritual, patente nos ritos da Semana Santa.

Enquanto nos restantes documentários os corpos se mostram submetidos ao esforço físico e ao risco, aqui (ainda protagonistas) movem-se segundo uma coreografia litúrgica. A transformação material da natureza dá lugar à representação coletiva de uma outra transformação: a da morte e da ressurreição. Uma distinção acompanhada (e reforçada) pela experiência sonora do filme. O som nos filmes de De Seta é sempre um elemento central, trabalhado com um rigor quase musical. Nos documentários sobre o trabalho, somos submergidos nos ruídos da Natureza, das vozes, das ferramentas e das máquinas rudimentares. Tudo enfatiza a relação do ser humano com o seu meio material. Em Surfarara, por exemplo, o som das picaretas, dos passos e da respiração dos mineiros compõe uma sinfonia de labuta e resistência física num ambiente inóspito. Em Lu Tempu di li Pisci Spata, o mar e os gritos coordenados dos pescadores surgem-nos como expressões da sua prática ancestral, da sua união de esforços em permanente medição de forças com os elementos naturais. Aqui, por oposição, a paisagem sonora é de pendor estritamente espiritual. São os cânticos religiosos, os lamentos, as exultações e os silêncios entre as palavras que definem a atmosfera. A música já não acompanha o trabalho físico, mas o drama da Paixão. É uma escuta diferente, que separa o tempo do labor do tempo do sagrado.

O tempo narrativo também se transforma. Se muitas das outras obras de De Seta seguem a progressão linear da jornada agrária — amanhece, trabalha-se, anoitece —, Pasqua in Sicilia apresenta um tempo suspenso, circular, reverberante. É o calendário litúrgico que impõe a sua estrutura. São os diferentes momentos de celebração que definem a toada da montagem – se há de ser mais solene ou mais frenética -, consoante o tom e os ritmos dos rituais. Esta fusão entre preceitos fílmicos e litúrgicos influencia o posicionamento da câmara: nos seus outros filmes, o cineasta assume uma posição inequivocamente observacional (mesmo que sensível e comprometida), onde a intenção é mostrar, dar a ver a dignidade de um povo esquecido. O olhar, embora poeticamente estilizado, é primeiramente etnográfico. Em Pasqua in Sicilia, a relação entre o documentarista e o seu objeto é muito mais imersiva – quase participativa, quase devocional. Não se trata apenas de mostrar um ritual, mas de acolhê-lo no próprio ritmo do filme, de invocá-lo perante o espectador, que assim também se vê envolvido numa procissão de imagens. O resultado é menos uma documentação e mais uma experiência estética e sensorial da fé vivida.

No fundo, pela temática e disposição do olhar, este é o filme que encarna de forma mais direta o aspeto transcendente daquilo que De Seta sempre procurou captar: não apenas os gestos do quotidiano, mas os seus ecos mais profundos. Nos restantes filmes, o real é moldado pela necessidade e pelo tempo histórico. Aqui, é moldado pela tradição e pelo tempo sagrado. O documentário torna-se, assim, um espaço de comunhão: entre o visível e o invisível, o presente e o ancestral, o povo siciliano e o espectador de qualquer parte do mundo.

Gil Gonçalves

 

Lu tempu di li pisci spata 1955
À semelhança das restantes curtas aqui propostas, é no limbo entre mito e realidade que Lu tempu di li pisci spata faz brotar tradições intemporais, cantares sentidos, ainda que rotineiros, a partir de um acompanhamento íntimo das pessoas que são o corpo e a alma destas práticas e que, trabalhando para viver, vivem (n)o trabalho. O que destaca este filme é o seu estatuto de documento raro, já que aquilo que nele ficou captado não mais existe – é curto o passo dado desde uma prática estabelecida até à extinção de uma cultura, por mais singela e particular que seja, e o registo desse efémero período de passagem é uma proeza antropológica (tanto como artística) preciosa.

Presenciamos a água como belíssimo elemento intermediário de tarefas, que perpassa pela roupa das mulheres que a lavam, até chegar ao mar que enleva os barcos dos homens que nele pescam. A pesca do peixe-espada é um momento que todos envolve: o homem lá em cima, atento, avista os peixes; cá em baixo ficam aqueles cuja força é essencial, pois os remos estão nas suas mãos; e à frente um outro, a quem cabe a captura – uma união que converge para o tão esperado sucesso da debandada, confirmado num único lance cauteloso.

O sol é um relógio certeiro e o seu desaparecimento significa o fim do trabalho. No entanto, é-nos ainda concedido assistir ao anoitecer, àquilo que se passa depois da obrigação – o baile das crianças, ritmo e movimento, pés e palmas, transparecem a alegria involuntária. Vivências transformadas em efabulação sensível sem, no entanto, perder de vista as sombras de labor que, entre rituais, vão dissimulando a aspereza da existência.

Laura Mendes

 

Contadini del Mare 1955

Sicília, Granitola, 1955. A madrugada é reflectida no mar, os pescadores juntam-se e é na primeira luz da aurora que partem nos seus barcos para mais um dia de labuta. Neste movimento coreografado de remos, é o som do mar que vai cronometrando os murmúrios e cânticos humanos. Vittorio De Seta é meticuloso na forma como capta os elementos, afirmando-se como mestre sensorial, dotado de um coordenado uso do som e da prosa, agregando-os a cores vibrantes e a uma cuidada composição marítima.

Contadini del Mare é a coreografia do mar, e muito mais do que um estilo visual, é um estímulo audaz e provocador que resulta numa estética visceral. Vittorio De Seta concede tempo àquilo a que a cinematografia contemporânea atribui pressa, é exímio numa não efemeridade narrativa. O seu foco permanente na realidade social do sul de Itália é mostrado de uma forma severa, sem floreados ou disfarces da vida e o quotidiano de trabalhadores pobres e das suas comunidades é honrado, sendo deles o protagonismo que confere toda a autenticidade que se adiciona a estas histórias.

O trabalho de De Seta é organizado e metódico, com a sua câmara a acompanhar tão delicada como brutalmente o lançar das redes ao mar, a regulação dos cabos e até o posicionamento dos barcos num quadrado perfeito. O cineasta consegue acrescentar intensidade e ansiedade à aparente simplicidade que é a pesca como ofício, aumentando progressivamente a dificuldade das tarefas, à medida que os atuns são encontrados e içados, contorcendo-se até à morte, tingindo o mar de sangue. É este bater de cauda animal em confronto com a aspereza da mão humana que culmina num mar encarnado enquanto as vozes à volta, em uníssono, se vão tornando cada vez mais límpidas.

Vittorio De Seta ensina-nos que retratar uma tradição italiana não remete apenas para a pesca do atum na Sicília, a exposição de um legado é elevar uma herança cultural para um momento de união entre humanos e o mar, transmitindo intensidade e espiritualidade nos cânticos dos pescadores e no som das ondas, embora o destaque seja mesmo a ausência de diálogos ou narração, utilizando apenas o som ambiente e aproximando-nos dos elementos na sua tão característica sensibilidade poética e realista.

A pesca é uma arte e saber esperar é uma virtude.

Rita Cadima de Oliveira

 

Parabola d’Oro 1955

Se o gesto “documental” (palavra aqui interdita) de De Seta se destaca, efectivamente, pela ausência de um cunho narrativo pronunciado no registo daquelas gentes de um “mundo perdido” na Calábria, Sardenha e Sicília, esta sua Parabola d’Oro impressiona, ainda assim, pela sua peculiar simplicidade. Um texto introdutório explica-nos que, no interior da Sicília (em 1955), “sob o calor abrasador do Verão”, se realiza, a cada ano, a cíclica ceifa do trigo, feita ainda por métodos muito antigos. De um Passado num Presente, Parabola d’Oro é o filme de um labor, o filme daqueles grandes campos a ceifar e de uma paisagem ainda natural que envolve as suas figuras — pela perfeita “ausência” na sua direcção, um filme que respira através de imagens de uma herança “ancestral”, evocando pela sua materialidade uma imaterial poesia prosaica. O dourado do trigo ao sol, homens e suas mulheres ao trabalho — sempre o trabalho, em De Seta —, e, sob o azul profundo do céu, aquele silêncio nos diálogos, de um filme afinal tão cheio de som. Um canto tradicional que vamos ouvindo, ora mais próximo, ora mais distante, até o vermos sair, enfim, da boca daquele pastor; o doce crepitar do trigo ao vento; e esse ruído discreto, quase natural, do gesto humano sobre o campo. Se esta “parábola” se refere a um ciclo, é também através de um ciclo (ou etapa) que se desenha afinal o filme: da ceifa naquele espírito de partilha, à pausa para o almoço e sesta à sombra das árvores, até ao regresso demorado a casa.

Com a luz de um sol descendente, ao vermos aqueles cavalos mascarados de trigo, quase imaginamos que seguem afinal o curso do Nilo, numa outra alegoria bíblica, pontuada, também aqui, por fantasiosas pirâmides douradas (estas em palha, e construídas pelos camponeses). Mas toca já o sino dos campanários, ladram os cães — e anuncia-se a chegada a casa. É de noite, e amanhã o ciclo recomeça. Con il vento ed il sudore della fronte, filmar um tempo e um lugar. Lembram-se outros campos ceifados pelo cinema, mas mais justo será recordar a oração cristã de Our Daily Bread (1934), clássico socialista de King Vidor, com aquele inesquecível primeiro brotar de uma semente: “there’s nothing for people to worry about, not when they’ve got the earth, it’s like a mother.” E aqui também, com os homens ao trabalho, o vento segue nos campos, como Deus que lhes responde.

Miguel Allen

 

Pastori di Orgosolo 1958

A Sardenha e a sua ruralidade são filmadas com elegância e iluminação natural, permitindo-nos ter como pano de fundo a árdua vida dos pastores desta região, no Inverno, através de um olhar lírico e aprofundado. A aparente simplicidade do meio rural esconde uma complexa narrativa de fragilidades sociais e sobretudo da fragilidade da condição humana nesta Itália remota e escondida, que por todos foi abandonada menos pela fome e pela escassez.

Vittorio De Seta filma o ciclo da vida – alimentar os animais para que estes alimentem os seus criadores. Apesar da crueldade e da forma pouco subtil como retrata o declínio deste período, a maior intenção de De Seta é perpetuar um tempo tradicional e os artefactos antropológicos de uma Itália pouco conhecida, distante do glamour e da pompa a que habitualmente o país está associado. O cineasta capta uma realidade bem mais plebeia, crua e nefasta, dura ao olho da sensibilidade. Neste Pastori di Orgosolo, descrevem-se maratonas laborais em climas adversos, onde a fome, o frio e a escassez fazem de outras provações males menores. Não é a chuva, o frio, ou o vento que atrapalha, é a terrível conjugação dos elementos – terra, ar, água e fogo – que De Seta utiliza numa estética despida, dando lugar ao real e à veracidade da vida.

Frequentes são também as paisagens melódicas que acompanham as jornadas de trabalho destes homens, cuja sonoridade resulta da fauna e da flora. Apesar do trabalho de De Seta estar quase sempre direccionado para as realidades agrícolas, piscatórias e mineiras, o seu grande propósito é o da sobrevivência da memória histórica e coletiva. O seu neorrealismo procura incessantemente uma verdadeira reforma, não industrial, mas humana.

Pastori di Orgosolo é um discurso atemporal e um dilema existencial entre a exigência física de uma profissão em contraste com o peso solitário e austero da vida rural, numa Sardenha desolada em montanhas e espaços vazios, onde o isolamento e a solidão pintam um pano de fundo que não vislumbra rastos da sociedade moderna. Apesar das relações interpessoais neste ambiente físico, de Seta retrata uma realidade sem as idealizações típicas do cinema clássico. O simbolismo aqui é a representação da luta diária e do trabalho árduo imersos em cenários de pobreza mais humana do que paisagistica.

A presença da natureza e da terra é sempre uma constante, mas também é esta evidência que nos remete para uma constante luta pela sobrevivência, num já reconhecido destino imutável e austero, representado pela terra árida que simboliza tanto um campo de trabalho quanto uma prisão. A conexão das personagem com a terra, a sua ancestralidade e a perpetuação da sua continuidade, simboliza um vínculo com a tradição, mas ao mesmo tempo destapa o peso que essa tradição impõe ao indivíduo. A condena ção ao trabalho no campo, de e para a natureza, não reflectem apenas uma forma de subsistência, mas também uma pesada carga que limita a liberdade e o potencial de mudança. Essa tensão constante entre necessidade e sacrifício é talvez a sua centralidade, reflectindo o dilema universal: a luta entre a liberdade do indivíduo com a sua necessidade de adaptação às exigências da vida e da sociedade.

Rita Cadima de Oliveira

 

Un giorno in Barbagia 1958

Vemos aqueles homens que partem, pastores, à alba de um novo dia. E o olhar da câmara que se deixa aqui ficar para trás. Neste filme de mulheres, dessas mulheres da Barbagia (região montanhosa da Sardenha), De Seta realiza o seu “episódio” mais doméstico, seguindo de perto o labor caseiro das esposas deixadas em casa pelos pastores da região. Vilas vivas de mulheres (e crianças), com os homens longe, pelos campos, e tudo o que fica por fazer: colher a lenha, dar banho aos pequenos, lavrar os campos, tratar da roupa, ocupar-se da casa – com aquele inusitado autocarro azul, que rasga pelas ruas a apitar, como se do eco de um outro tempo, para além daquelas povoações, se tratasse.

Se, na (quase) generalidade das curtas-metragens que filmara pelos anos 50, De Seta nos falara de um ofício específico, Un giorno in Barbagia revela-nos então este mundo interior, quase secreto, de uma casa. O filme concentra-se nessa escala, porventura mais pequena, das coisas, mas, afinal, tanto nos é aqui contado. Sejam as “aventuras” das crianças e os seus risos, pelo campo, pelas ruas, por umas escadas exteriores; seja a paisagem maravilhosa que envolve a acção. Mas, sobretudo, por tudo aquilo que compõe o dia – o trabalho, diga-se – daquelas mulheres. Do acordar até ao “fictício” final do dia (De Seta gosta sempre de nos contar um ciclo), com o regresso dos seus homens, uma jornada que se desenha, então, pelos afazeres quotidianos. Com a noite, ouve-se música pela vila, e as famílias podem desfrutar, enfim, de uma refeição quente em torno da fogueira. Mas, para as mulheres de Barbagia, o trabalho parece não ter terminado.

Espaços fechados, protegidos do sol, e aquele tempo secreto. O quadro é invariavelmente prosaico. Mas, pelo silêncio, pela distância (na proximidade) do olhar de De Seta, ou pelo silêncio partilhado entre as figuras em cena, é de uma relevância quase sacra que se constroem as imagens do filme. Trata-se aqui, talvez, de um mestiere di vivere. Mas, no seu retrato de uma vida feita das coisas concretas, um filme de um valor material profundamente espiritual.

Miguel Allen

 

Banditi a Orgosolo 1961

“(…) devemos reconhecer que a maior parte dos seus filmes têm muitos pontos em comum: a abordagem fundamentalmente antropológica, já presente nas curtas-metragens dos anos 1950; a questão da distância a que nos colocamos para nos tornarmos parte de uma comunidade, cujo tempo e espaço de vida podemos partilhar e filmar (…)”
Frederico Rossin, Ciclo Histórias do Cinema: Vittorio De Seta / Frederico Rossin, Cinemateca Portuguesa

Quando pesquisamos por neo-realismo italiano surgem-nos, invariavelmente, os mesmos três nomes como expoentes máximos do movimento cinematográfico que despontou no pós II Guerra Mundial: Roberto Rossellini, Vittorio De Sica e Luchino Visconti. Os títulos mais preponderantes desta vaga situam-se entre meados da década de 40 e o início da década de 50. São vários os traços que caracterizam o movimento, mas para efeitos do presente texto importa sublinhar os seguintes: compromisso com uma determinada realidade, procurando captá-la fielmente através da câmara; a utilização de não-atores; a construção de uma ficção alicerçada na realidade, onde a fronteira com o documentário é frequentemente impercetível. 

O artigo para os Cahiers du Cinéma que Jean-Andre Fieschi dedicou a Banditi a Orgosolo foi justamente intitulado Neo-neo-realismo. Estamos já no início da década de 60, mas as preocupações de De Seta enquadram-se perfeitamente nas dos seus antecessores. Um filme em concreto urge convocar: La Terra Trema, de Luchino Visconti, que retrata o quotidiano precário de uma comunidade de pescadores sicilianos. Uma realidade que o próprio Vittorio De Seta filmou, através de uma série de curtas-metragens nos anos 50, nomeadamente o fabuloso Pescherecci. Mas, ao contrário de Visconti e de outros cineastas neo-realistas, De Seta abstém-se por completo de emprestar o seu cunho, ou antes, impor o seu traço autoral, à realidade que contempla, daí o termo neo-neo-realismo fazer todo o sentido.

Banditi a Orgosolo marca a primeira incursão de De Seta pela longa-metragem e pela ficção. Após os créditos iniciais, o filme anuncia: “interpretato da pastori sardi”.  O enredo é facilmente resumido. Um pastor é erroneamente implicado na morte de um Carabinieiri e, embora inocente, enceta uma fuga para as montanhas, junto do seu irmão mais novo e do rebanho de ovelhas que garante o seu sustento. Para lá da trama o cineasta foca-se nas características artesanais daquela vivência, como no momento em que o protagonista ensina o irmão a fazer o queijo de ovelha.

Retornando ao neo-neo-realismo e à distância justa com que se filma uma dada realidade. Não é que as qualidades plásticas das imagens de De Seta não se manifestem neste filme, antes pelo contrário. As montanhas da Sardenha a nada ficam a dever aos melhores cenários dos westerns, género que Banditi a Orgosolo frequentemente evoca. Para não falar da montagem, algo já profundamente refinado nas curtas-metragens que antecedem o filme.  O que o torna realmente singular é o facto da ficção não se impor à realidade. A ficção de Vittorio de Seta potencia a realidade dos pastores da Sardenha, abstendo-se de romantizar (De Sica) ou enaltecer vincadamente (Visconti) a dignidade e nobreza da existência humana perante circunstâncias adversas.

Bruno Victorino