Sou um artista gráfico e um realizador que procura dar forma às imagens. Savtchenko, o nosso mentor, encorajava-nos a desenhar os nossos pensamentos – e a dar-lhes forma plástica. Todos nós tivemos de desenhar os nossos pensamentos na escola de cinema. Para o exame de admissão, fomos levados para uma sala e disseram-nos: “Desenhem o que quiserem…”
Serguei Paradjanov, entrevistado por Ron Holloway para a revista KINEMA (1996)
“Dans le temple du cinéma, il y a des images, de la lumière et de la réalité. Paradjanov était le maître de ce temple.” A frase é de Godard e tornou-se hoje numa epígrafe cómoda para o cinema de Serguei Paradjanov (1924-1990). Revolucionário e contestatário, de cerne abstracto porque obstinadamente poético — um cinema de difícil descrição porque, acima de tudo, “não-literário”. Os filmes de Paradjanov como que procuram na tela o campo gráfico ideal para as revelações interiores do seu autor. A sua obra existiu sempre na recusa de uma qualquer afiliação estética (por tanto que Paradjanov aplaudisse Tarkovski, Pasolini ou outros dos seus contemporâneos soviéticos). E ainda que seja o foco da admiração sincera daqueles que nele dedicadamente decidem mergulhar, o seu cinema parece, afinal, fadado a sobreviver enquanto “curiosidade” num contexto de cinefilia progressivamente menos inocente – e mais informada por uma catalogação sistemática da produção artística, contemporânea ou histórica. Paradjanov era como uma criança que filmava. Desenhava, no papel ou na película, por assumida e natural necessidade. A sua obra floresceu enquanto resposta, eco, das terras que conheceu, da sua identidade pessoal, das suas provações políticas, de um Passado estético que herdou. A par do ciclo em curso na Cinemateca Portuguesa, a Tribuna dedica a Serguei Paradjanov um artigo com cinco olhares, sempre e necessariamente incertos, sobre os seus filmes.
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“O Primeiro Rapaz“ (Первый парень / Pervii Paren) 1959
Pervii Paren é a primeira longa de Paradjanov digna desse nome, liberto agora do título de assistente de realização, ainda que sob a égide dos estúdios de Dovjenko. Embora seja difícil fugir ao carácter propagandístico do filme, o que mais salta à vista é a sua exuberância: no uso dos corpos, com a coreografia de elaboradas sequências colectivas em torno de acontecimentos num pequeno kolkhoz; mas também no uso das cores, que surge aqui como o maior preditivo da obra mais madura de Paradjanov. Mas esta abordagem extrovertida em Pervii Paren encaixa-se sobretudo no contexto da grande planície ucraniana, aquela que apaixonou o próprio Paradjanov na força do seu “sentimento da natureza, da beleza, da harmonia e do ilimitado”. Este fascínio pelo bucólico reflecte-se primordialmente na forma delicada e faustosa com que Paradjanov filma as paisagens: primeiro, o imenso céu que envolve a trama e a população do kolkhoz; também a pradaria e o dourado da riqueza dos campos, encaixotados na beleza da imensidão que os reflecte, ora num enorme vermelho ora num exuberante sol; por último, a aldeia e a vida popular, sempre vibrante e sempre em colectivo. Pervii Paren é maioritariamente um filme de rituais. Muito embora Paradjanov tenha sempre um pé no musical e na dinâmica dos corpos, mas também na leveza da comédia de absurdo, a sua preocupação em detalhar e documentar os rituais do campo ucraniano é profundamente genuína. Somos brindados por bailes e assembleias, jogos de futebol e colheitas em colectivo. A trama posta de lado mas sempre presente, muito como os cantares locais. É aí que Paradjanov enquadra a sua admiração pelos afazeres dos populares: numa honestidade permanente, quase desarmante e arrebatadora. O poema do bucolismo.
por Hugo Dinis
“Cavalos de Fogo” ou “Sombras dos Nossos Antepassados Esquecidos” (Тіні забутих предків / Tini zabutykh predkiv) 1965
“Quando os funcionários do Ministério do Cinema Soviético viram o filme, entenderam que quebrava os princípios do realismo socialista e o lixo social que dominava a nossa cinematografia naquela época. Mas não puderam fazer nada porque era tarde demais (…) O filme causou uma reação em cadeia de inquietação. O Ministério pediu-me para fazer uma versão em russo. O filme não foi filmado apenas na língua ucraniana, mas também no dialeto hutsul. Eles pediram-me para dobrar o filme em russo. Mas eu recusei categoricamente.”
Serguei Paradjanov, entrevistado por Ron Holloway para a revista KINEMA (1996)
Sombras dos Nossos Antepassados Esquecidos marcou o início dos problemas de Paradjanov com as autoridades soviéticas que iriam marcar o resto da sua vida e obra. A contestação surge precisamente pelos méritos que podemos associar ao filme, retrato etnográfico de uma cultura (ucraniana/hutsul), que não estava alinhada com a propaganda unificadora idealizada pelo estado soviético. Adicionalmente, constata-se o afastamento, referido pelo próprio, às normas do realismo socialista, subvertendo-as totalmente em detrimento de um realismo mágico com profundas raízes no cinema avant-garde. O resultado é profundamente estonteante. As cores vibrantes, as sobreposições de imagens, o movimento constante e esquizofrénico da câmara ou a sua colocação em lugares inusitados.
O filme, baseado no romance de Mykhailo Kotsiubynsky, não perde tempo em demonstrar todos estes atributos, iniciando com a morte do pai do protagonista (Ivan), que se sacrifica para o salvar da queda de uma árvore. Paradjanov filma o momento do ponto de vista da própria árvore que se abate sobre o pai. Ivan apaixona-se por Marichka, sua amiga de infância, mas é um futuro de tragédia que lhes está destinado. A conjugação de cinema soviético e tragédia poderia augurar um filme sombrio e formalmente austero, mas não poderíamos estar mais longe desse estereótipo. Para lá da narrativa o olhar de Paradjanov detém-se minuciosamente no trabalho, do afiar da ceifa à ferração do cavalo, passando pelos idiossincráticos rituais e tradições daquele povo. Um cinema não muito longínquo dos nossos Margarida Cordeiro e António Reis, Manuela Serra (O Movimento das Coisas) ou mesmo Peter Nestler (Pachamama – Unsere Erde). Um cinema artesanal que celebra a diversidade da cultura, renegando, por oposição, a erosão da identidade.
Sombras dos Nossos Antepassados Esquecidos é um filme lindíssimo, alicerçado na tradição do grande cinema soviético do período mudo (Vertov, Eisenstein, Dovzhenko), uma releitura do cinema das atrações pela singular lente de Seguei Paradjanov.
por Bruno Victorino
“Frescos de Kiev“ (Київські фрески / Kyivski fresky) 1966
Fragmentos de um filme-esmola. Ou, simplesmente, o retraçar de um amor frustrado, pelo cinema. “Frescos de Kiev” anuncia definitivamente a estética poético-pictórica que identifica hoje Paradjanov. Ponto de partida radical em relação ao que fora “Cavalos de Fogo”, não existe aqui uma trama, nem diálogos, desenvolvendo-se sobretudo uma curiosa confluência de ideias, de imagens e objectos, que experimentam, por sobreposição, evocar a visão do autor, muito específica (porque pessoal), quanto a uma certa identidade nacional – Paradjanov era arménio, nascido na Geórgia, “ucraniano” por casamento. Mais do que um filme “perdido”, trata-se efectivamente de um projecto suspenso – as ideias de cinema de Paradjanov sendo simplesmente escandalosas aos olhos das autoridades soviéticas e não se alinhando ao “realismo socialista”, tanto mais ideológico como “positivo”, que convinha ao regime.
Se o projecto nascera, na verdade, de uma encomenda do Governo Soviético Ucraniano, com o intento de celebrar o vigésimo aniversário do final da Grande Guerra Patriótica (a Segunda Guerra Mundial em termos soviéticos), Paradjanov partiu, contudo, num sentido acentuadamente diferente. De começo, o conceito seria de realizar um “O Homem da Câmara de Filmar” (Vertov, 1929), que tratasse a vida contemporânea na Ucrânia. Mas o argumento original do filme não celebrava “adequadamente” o heroísmo militar, segundo as autoridades soviéticas (pela mão do Goskino). Paradjanov seria então ajudado pelo poeta e amigo Ivan Dratch para integrar novas “imagens” relacionadas com a Segunda Grande Guerra no seu projecto.
No entanto, desta versão muito encurtada (15 minutos dos 80 originalmente imaginados) que hoje resiste, é com grande dificuldade que imaginamos que uma expressividade tão original como a de Paradjanov se pudesse alguma vez adequar à celebração nacionalista que conviria ao poder cultural soviético. As filmagens de “Frescos de Kiev” seriam cedo interrompidas, e foi ordenado que todos os negativos em película delas resultantes fossem destruídos. Um primeiro manifesto de Paradjanov a uma forma cinematográfica livre, um perfeito poema visual, carregado de elementos concretos que em tudo parecem recusar uma qualquer (e mais prosaica) associação narrativa. Imagens, objectos e sons, figuras humanas em movimento teatral, a expressão profusamente artificial de um discurso metafórico por obstinada anti-gramática literária. “Concebi o filme enquanto cine-frescos” (ou cine-tableaux, como mais comummente se descreve o seu formalismo). Paradjanov propõe um corte com a linguagem cinematográfica do Passado e lança-se, enfim, numa expressividade virgem, inocente, como se conduzida pela mão de uma criança. Três soldados, la fille aux cheveux de lin, e um laço quebrado. Imagens românticas por figuras banais. Simbolismo nostálgico a partir de iconografia tradicional. Da guerra e do amor, e daquilo que nos resta entre os dois. Um filme feito de poesia pela inocência.
por Miguel Allen
“Sayat-Nova – A Cor da Romã“ (Նռան գույնը / Tsvet granata) 1969
Ainda que inseparável do contexto da sua produção e lançamento, Sayat-Nova está longe de ser (como Paradjanov foi) refém do seu tempo. Às evidências dessa tentativa de sequestro – a censura que forçou a remontagem e a alteração do seu título para A Cor da Romã e a centralidade que as análises historicistas atribuem à violenta relação de Paradjanov com as autoridades soviéticas para caracterizar o filme – opõe-se uma forma revolucionária que o coloca na senda da intemporalidade e para lá de qualquer significação direta. Um filme que não pretende ser “a história da vida de um poeta”, mas sim a tentativa de “recriar o mundo de um poeta – a modulação da sua alma, das suas paixões e tormentos”. Assim rezam as palavras que surgem no ecrã negro, antes de qualquer imagem. É importante fixá-las, pois é na intenção que expressam, mais do que em fatores externos à linguagem da obra, que a singularidade deste objeto de dois títulos se começa a desenhar.
À ilustração prosaica de um filme biográfico, substitui-se a transposição para a tela do fundo inerente à poesia de Sayat-Nova, grande trovador arménio do século XVIII. Paradjanov rompe com as convenções habituais de narrativa e mise-en-scène e adota uma lógica eminentemente pictórica (patente na ostensiva bidimensionalidade das suas composições). Pondo de lado o diálogo ou a estrutura de um enredo, é da metáfora e do simbolismo que se serve para, numa sucessão de quadros móveis, abrir a janela tanto para o mundo interior do poeta, como para o poeta no mundo, nas várias fases da sua vida. Memórias, sonhos, folclore e religião fundem-se em cenários que oscilam entre o hierático e uma surpreendente materialidade. A vida pelos costumes, vestes, trabalho e música de um povo. A tensão entre esses perpétuos movimentos socioculturais e as pulsões – criativas, sexuais e espirituais – do artista, desde a juventude até à morte. O tecido e as texturas como motivo maior desse devir. Tudo unido numa permanente tecelagem.
É na assunção desta simbiose entre o sujeito e o mundo que a Romã dá o seu melhor sumo. A arte do poeta não brota dos factos da sua vida, do seu carácter, do seu processo, ou dos motivos (nunca abordados no filme) que o levaram a criar, mas sim da sua relação com a ambiência, os artefactos e os signos da cultura e do tempo dos quais fez parte. O tempo, finito para o homem, que a arte imortaliza. Ao submergir-nos nas mesmas imagens, sons e objetos que Sayat-Nova presenciou em vida, e na recriação das sensações que estes lhe suscitaram, Paradjanov não se limita a homenagear uma cultura. O que faz, acima de tudo, é recentrar a nossa conceção de autorismo, retirando o foco do artista para nos levar a pensar diretamente a arte (a de Sayat-Nova e a sua própria); de onde ela veio e o que pode significar para nós. Um formalismo duplamente radical, que não só preconiza um objeto artístico plenamente aberto à interpretação do espectador, como a recusa de qualquer interposição do autor neste processo. Uma humildade sem concessões. Revolucionária, sem dúvida.
por Gil Gonçalves
“A Lenda da Fortaleza de Suram” (ამბავი სურამის ციხისა / Ambavi Suramis Tsikhissa) 1985
Partilhando os créditos com o ator Dodo Abashidze, Sergei Paradjanov dispõe, em “A Lenda da Fortaleza de Suram“, de uma câmara bem assente na tradição literária popular – oral, posteriormente escrita – sem nunca esquecer o hibridismo cinéma-tableau. A narrativa surge nas palavras leve e imaculadamente movimentadas dos corpos e no posicionamento sacro dos objetos – corpo e objeto, absolutamente simbióticos e ritualizados –, olhando-nos nos olhos, num frente a frente inquebrável, exceto pela interseção de caracteres que, enviesadamente familiares, nos vão encaminhando no imenso espaço cultural e reflexivo.
A fortaleza inicial, entidade suprema, desprovida de cor, que persegue as vidas que dela estão dependentes, é já o luto pressagiado. Numa história cujo tempo lhe desvela um caráter geracional, entre memórias que persistem e destinos que sucedem, vinculando passado e presente num abraço infinito, imbuída de símbolos que fascinam pela trivialidade mas que encerram em si um outro mundo transcendente – uma romã não é só uma romã –, as promessas e as premonições, a fé e os ícones de diferentes origens compõem uma amálgama de sonho, vida, e morte que, de nós separada por séculos ou décadas, é tão próxima como um amor que parte e que não é esquecido.
Ecoando Medeia e Prometeu, mas inserindo-nos sempre noutras, distantes e encantadoras, mitologias: é este um conto de vingança, de sacrífico pela imortalidade, de martírio? Ou apenas um desabafo ofegante por tudo o que aconteceu, acontece, e acontecerá por detrás, e dentro, da muralha? Sem dúvida, é uma visão autoral, inconfundível e inigualável, do que deve ser o cinema na sua relação com a imemorabilidade de temas passíveis de ser reinventados e reinterpretados, ao serviço das necessidades políticas, sociais e artísticas do tempo no qual vive. É inevitável que vejamos este filme à luz daquilo que foi a experiência própria de Paradjanov.
“A Lenda da Fortaleza de Suram” foi o primeiro trabalho do artista após ter sido aprisionado durante quatro anos, por ordem das autoridades soviéticas, com acusações de homossexualidade, numa clara tentativa de silenciar a sua obra – tentativa essa que perdurou, e que levou Paradjanov a dedicar-se às artes plásticas – distante do realismo socialista, afirmando-se como pura poesia visual.
por Laura Mendes
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A realização é fundamentalmente a verdade transformada em imagens: tristeza, esperança, amor, beleza. Por vezes, conto aos outros as histórias dos meus argumentos e pergunto: “Inventei isto, ou é a verdade?” Toda a gente diz: “É inventado”. Não, é simplesmente a verdade tal como eu a vejo.
Serguei Paradjanov, entrevistado por Ron Holloway para a revista KINEMA (1996)