O Cinema Inquieto de Paul Vecchiali (1930 – 2023)

EquipaFevereiro 17, 2025

Uma arte livre, soberana, destruidora de evidências, alérgica a qualquer lição ou demonstração, guiada unicamente pela procura da verdade profunda e arrebatadora do ser humano e suas paixões.

Slash, por Cyril Neyrat (tradução Tribuna)

 

Um cinema marginal, ainda hoje secreto. Um dos grandes filhos do cinema francês, pela sua obra pessoal e popular, singular e incomplacente. Paul Vecchiali (1930 – 2023) é um nome pouco falado fora de circuitos cinéfilos mais específicos. O seu percurso terá sido, em tanto, semelhante ao de outros cineastas da Nouvelle Vague (ou, mais justamente, pós-Nouvelle Vague). Cinéfilo ávido, “amigo de Jacques Demy” (com quem partilhava uma veneração por Ophüls, por exemplo), trabalhou como crítico nos Cahiers du Cinéma e na La Revue du Cinéma. Manteve, ao longo da vida, uma relação muito intensa, próxima e apaixonada com o cinema – que se reflectiu tanto numa filmografia extensa (que prolongou até à sua morte, com Bonjour la langue, em 2023), como no seu trabalho enquanto escritor (ou “crítico”, ou “historiador”, ambas noções demasiado limitadas) – e publicaria em 2010 a sua Encinéclopédie, um roteiro muito pessoal do cinema francês, e um pouco mais além, nos anos 30. Enquanto produtor, esteve, por exemplo, envolvido na estreia de Jean Eustache ou em Jeanne Dielmann, 23, quai du Commerce, de Chantal Akerman. A criação da Diagonale, em 1977, com Cécile Clairval-Milhaud, seria o culminar de uma grande aventura do cinema pós-68 – uma companhia formada na clandestinidade e em estrutura livre, entre actores, autores e técnicos.

Um cinema que parece, a cada filme propor uma perspectiva nova sobre a arte, remetendo-nos à ignorância sobre o que é afinal a sua obra. “O objetivo de um filme é agitar a opinião. O meu trabalho como realizador de filmes é provocar as pessoas. Não para as fazer pensar como eu, mas para as fazer pensar por si mesmas.” * Uma filmografia inconstante, incómoda e inquieta, de um aventureiro inesgotável, que abordou tantos géneros e temas diferentes, do melodrama ao musical, do documental ao filme pornográfico, por vezes dentro de um mesmo filme. Um cinema de amor, pelas pessoas e suas histórias, um trabalho que se essencializa, pela sua artesanalidade, no próprio acto da cinefilia. Um ciclo em curso na Cinemateca Portuguesa aborda a filmografia de Vecchiali enquanto produtor (projectando também algumas das suas obras mais desconhecidas). A Tribuna do Cinema presta-lhe uma curta homenagem, abordando algumas das suas obras “mais emblemáticas” enquanto realizador – descobrindo em cada uma delas um evento que nos parece hoje um momento essencial do cinematógrafo.

* Paul Vecchiali, in Le Choix des Actes – Entretien avec Paul Vecchiali, Télérama nº2017 – 7 Septembre 1988 (tradução Tribuna)

 

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L’Etrangleur 1970

Um assassino ao som de música de elevador. L’Étrangleur imagina um homem mais marcado pela opressividade urbana em que se enquadra do que enquanto ameaça à paz social. Vecchiali coloca Émile (Jacques Perrin), marcado pelo choque de um prelúdio macabro mas nunca sangrento, como um anjo de libertação e alívio de dor. Alguém cuja motivação oscila entre o completo niilismo descrito pelo próprio em conversa com o investigador do caso (Julien Guiomar) e o desejo de consolo empático. A rejeição do giallo sobretudo enquanto exercício formal permite a Vecchiali colocar em evidência as suas personagens ao invés dos seus mistérios. Essa marca é, de resto, sobretudo evidente na caracterização das vítimas: o isolamento social convoca uma condição marcada pela dor silenciosa. São mulheres sozinhas, bailarinas, chanteuses, actrizes, maioritariamente ligadas ao mundo do espectáculo, na expectativa de uma renovada atenção exterior abandonada. Para Vecchiali, a rejeição do tropo da prostituição enquanto alvo predatório fácil permite também lançar a perspectiva da existência de figuras como a de Émile. A proteção está no sentido de comunidade, na esperança da entreajuda. Este sentido vem, adicionalmente, lançar o paralelo com a figura de Guiomar, apresentado inicialmente como um agente imparcial e frio, mas marcado profundamente por uma falta de empatia que lhe atribui uma condição de isolamento não muito diferente da das vítimas de Émile. Na banda sonora carnavalesca de Roland Vincent e na cinematografia opressiva e permanentemente na linha entre surrealismo e realismo de Georges Strouvé, Vecchiali encontra um embrulho inquietante para a exploração de uma malaise urbana suicida que convoca tanto o fim dos tempos como a realidade actual.

por Hugo Dinis

 

Femmes Femmes 1974

C’est vrai ? Tout est vrai ! Do amor, da fantasia e do teatro, em Femmes Femmes, “on joue la comédie“. Duas mulheres deixadas pelo mundo, pelo palco e pelos homens, actrizes de um passado, Hélène (Hélène Surgère) e Sonia (Sonia Saviange) resistem isoladas no seu apartamento parisiense. Encena-se o mais pequeno music-hall pelo quotidiano das duas protagonistas, sempre sob o olhar dos rostos eternos de estrelas do Cinema de um outro tempo, em imagens de revista que recobrem as paredes brancas. Dreyer ou Murnau de trazer por casa, esses dois nomes que Pasolini citou aquando da passagem do filme no Festival de Veneza, onde se disse “chocado” por este filme, “tão belo e comovente” – Pasolini que, é certo, chamaria ambas as actrizes para repetirem o número no seu Salò.

A memória de um período clássico do Cinema, pelas rugas do rosto e pela necessária decadência no gesto das duas mulheres. Um véu que recobre essa arte popular, cujos sonhos parecem ter-se extinguido pela cidade. Com a película marcada pelo brilho dos ícones que envolvem a acção, um filme, afinal, de quem sonhou matinés sem fim, no escuro profundo de uma sala de cinema. Belíssimo jogo de espelhos, cujo reflexo desvaneceu; se aquele diário de Hélène e Sonia é frágil, enquanto repetem Andromaque e vão vendendo os móveis para o inevitável champanhe, a realidade começa, pouco a pouco, a destruir o seu teatro. Da alucinação pela bebida, que preenche o apartamento de figuras horrendas, a uma desesperada descida às ruas de Paris, onde Sonia reencontra enfim a ribalta — mas a que custo? O final, esse será o mais falso happy end, onde sonhos de “saisons de soleil” se encontram enfim pela mentira de um filme. Vecchiali não podia, porém, trair as suas duas actrizes ao oferecer-nos tão doce conforto. Ficamos, enfim, com o desespero de Sonia, enquanto Hélène se serve de mais um copo, olhos fechados, com as campas de Montparnasse que espreitam de lá fora. “Une caricature souillée de la femme que nous avons aimée.” Foi o mundo que assim o quis.

por Miguel Allen

 

Change Pas de Main 1970

Film noir e blue film, cinemas de género enamorados pela noite. A intriga política de uma película de sexo, um filme cativo de um enredo labiríntico, do seu incessante jogo de corpos. Change Pas de Main abandona-se por uma Paris nocturna, onde uma profunda malaise urbana recobre o sono das diferentes personagens. Vecchiali aproxima aqui a “artesanalidade” do seu cinema, das suas recordações cinéfilas e réplica cinematográfica, à simplicidade grosseira do filme pornográfico. Ambos os gestos serão, afinal, exercícios potenciados pelo desejo, e tudo redunda, aqui, num macabro baile de máscaras. A malícia de Sternberg ou o assombro de Dietrich cedem lugar ao desencanto, pela entrega mal velada a uma mentira. E se as imagens “de sexo”, da sugestão erótica à fotografia explícita, despertam, a princípio, uma sensualidade essencial àquele embate – ainda que melancólica, por nostalgia –, a passo e passo, ou a choque e choque, revelam-se, elas próprias, a manifestação explícita (e directa) da violência estilizada que estimula a trama do filme. Perverter e trapacear, foder e matar, actos inevitáveis naquele quadro sórdido e desesperado. O vício na imagem (c’est un faux), projeção dolorosa de um querer, e o vício na fortuna, quando todas as transações supõem a corrupção moral. Trabalho sexual e manipulação política, o espectáculo, a arte, ou a mentira – se faire remarquer e alcançar um outro, num filme que se polui deliberadamente com o ruído cinematográfico que o envolve, que se “confunde” materialmente num (também) outro objecto de consumo. Longe das ruas, por bares escuros e quartos secretos. Com tristeza, observamos aqueles corpos, tanto extasiados pelo sexo, quanto anulados pela morte. Demain (de-main) tout cela deviendra ridicule… A redundância desarmante da busca pela qual se enreda Mélinda. Mas tudo isto, afinal, não será mais do que “filmar o trabalho”.

por Miguel Allen

 

Corps à Coeur 1979

Corps à Cœur acompanha Pierrot (Nicolas Silberg), mecânico parisiense que se apaixona loucamente por Jeanne-Michèle (Hélène Surgère), farmacêutica de meia idade. Infame galanteador acostumado ao sucesso, encontra inesperada e persistente resistência aos seus avanços. Vecchiali constrói em Corps à Cœur um universo peculiar, onde o peso de cada espaço e personagem, ainda que secundário, é singular. A oficina, o bairro, a farmácia e as idiossincráticas gentes que comunitariamente orbitam o quotidiano de Pierrot, conferem um colorido retrato da realidade apresentada. A encenação do cineasta francês materializa os impulsos obsessivos do protagonista. Recorrentemente paira sobre o rosto de Jeanne-Michèle uma luz clara, conferindo à personagem uma aura angelical. Paralelamente, ao longo do filme e através da montagem, são inseridos pequenos excertos de cenas anteriores onde o plano é preenchido por Jeanne-Michèle e a compulsão de Pierrot se funde com o ponto de vista da câmara. O filme almeja um interessantíssimo equilíbrio entre o melodrama e um tom levemente tragicómico, abraçando despudoradamente o ridículo e absurdo. O momento em que Pierrot acampa no seu carro em frente à farmácia é particularmente hilariante e demonstrativo desse efeito. Por outro lado, o filme desenrola-se num limbo entre aquilo que Manny Farber apelidou de white elephant art e termite art. Nesse sentido remete-nos até ao nosso João César Monteiro, conjugando habilmente o divino com o brejeiro, o Requiem de Fauré com diálogos vulgares de teor obsceno. Corps à Cœur é um filme que trabalha como poucos a pungência do melodrama, onde se ama de morte e se morre de amor.

por Bruno Victorino

 

En haut des marches 1983

Le temps d’un retour. Vinte anos mais tarde, os fantasmas de uma França ocupada. Françoise regressa a Toulon, de onde fugira em 1945, após o assassinato do seu marido, colaboracionista com o regime de Vichy. Na recusa de um qualquer moralismo fácil, En haut des marches é um filme que existe pela interrogação — na possibilidade de consenso num contexto de conflito militar; no rigor de uma ideia face ao valor de um acto. Vecchiali recorda os seus passos de infância, aqueles lugares e as suas gentes, e re-imagina a figura da sua mãe a partir de Danielle Darrieux, seu ícone de cinéfilia. Pela cidade retraçamos, tantos anos depois, as lágrimas de uma mulher – da morte do seu Charles à pintura com que cobrira o seu silêncio -, a vida de uma família, e o lugar de um lar que existira sempre “ao alto daqueles degraus”. O filme de uma “não-reconciliação” — o resistir aqui pelo sobreviver, o resistir pela entreajuda, pela ternura que se oferece ao outro, num quadro onde subsiste apenas o ódio. De uma incompreensão sincera perante a guerra e suas vítimas, uma obra profundamente humanista. E se falamos aqui de passar das ideias aos actos, o que pode o indivíduo perante o “abominável”?

A peregrinação pela memória colectiva impressa no lugar, o confronto entre a memória sentimental de cada um com o registo factual dos eventos passados. Recordar e elevar, então, pelo cinema. A justiça aqui despida pela moralidade que Vecchiali (re)encontra no amor.

por Miguel Allen

 

Rosa la Rose, Fille Publique 1986

L’amour est un oiseu rebelle
Que nul ne peut apprivoiser

Rosa é a mais bela e requisitada prostituta do bairro de Les Halles. Admirada pelas colegas mais velhas e cúmplice de um chulo compreensivo e protetor, parece viver uma vida agradável e despreocupada junto da comunidade que a acolheu – a do bordel que opera clandestinamente nas traseiras de uma papelaria de rua. Embora assertiva relativamente aos seus limites, acede com aparente prazer a qualquer fantasia dos clientes que cruzam o seu caminho. No dia do seu 20º aniversário há um “estranho pressentimento” no ar, que se vem materializar com a chegada de Julien. Cativado pela sua interpretação de um número de music-hall, o jovem pintor pede para ir para o quarto com ela. Para grande surpresa de Rosa, ambos se apaixonam e a sua ilusão de equilíbrio desaba.

Rosa la rose, fille publique é um filme de matéria ancorada no seu tempo. Não há roupa, penteado, arquitetura ou diálogo coloquial que o negue, do mesmo modo que é indubitavelmente contemporânea a escolha de tratar, sem pudor ou moralismos, a vivência de personagens envolvidas na indústria sexual. Contudo, é no passado que jaz a sua forma e se fundamenta a sua estrutura. A primeira pista é-nos dada nos créditos iniciais, com a dedicatória aos realizadores Max Öphuls e Jean Renoir, bem como às “suas” atrizes Danielle Darrieux e Dora Doll. Firma-se, desde logo, uma afinidade com o velho cinema francês, e com obras como Madame de… (1953) e French Cancan (1955), que consubstancia os preceitos fílmicos de Rosa la rose: o desenvolvimento de uma narrativa ao serviço das personagens, propulsionada pela dramaturgia das suas interações e pela captação de verdades interiores no movimento dos seus corpos.

Sendo certo que é moderno – porque intrinsecamente cinematográfico – o entendimento da câmara (e da imagem) como “descodificador espiritual” dos signos corporais, é de uma nascente muito distante do cinema que Vecchiali bebe a noção unitária de corpo e alma. Esta conceção aristotélica é uma tensão central na tragédia clássica e Rosa é uma tragédia viva, no sentido em que a sua corporalidade – o seu corpo exposto à exploração física e emocional – é inseparável da sua alma, que busca sentido e redenção, mas é constantemente consumida pelo peso das suas escolhas e circunstâncias. Mesmo antes da avalanche passional do encontro com Julien, no quarto, há momentos que denunciam o conflito interior da protagonista: o sorriso (até aí omnipresente) que se apaga, depois de “despachar” os primeiros clientes; a melancólica introspeção solitária à mesa de aniversário, alheia aos restantes comensais, num quadro reminiscente da Última Ceia (primeiro grande prenúncio trágico do filme). São eles que justificam o absoluto terror que vemos transfigurar o rosto de Marianne Basler (Rosa), quando no climático encontro com Julien se apercebe que “deixou o amor entrar”.

Num sublime momento de cinema – proporcionado pelo blocking e por movimentos de câmara exemplarmente unidos aos dos corpos – assistimos à mudança de perceção da protagonista sobre a sua realidade e sobre o que a espera. Uma mudança interior que observamos nas expressões faciais, nos gestos e disposições do corpo da atriz. A ilusão do “melhor dos mundos possíveis” estilhaça-se em favor de uma realidade que se afigura agora opressiva e ameaçadora. Intuímo-lo – nós e ela – com base no conhecimento prévio que temos das relações de poder no mundo da prostituição e do lenocínio. Do mesmo modo, clarifica-se, neste clímax, que a alegria e o prazer postiço que até agora víramos nela, mais não eram que a expiação de um desejo secreto por algum tipo de transcendência, de libertação. Esta possibilidade apresenta-se-lhe violentamente em forma de amor e podemos, mais uma vez, observá-lo nos atos de Basler: a sua Rosa acede (pela primeira vez) a um beijo e mostra-se desajeitada, inexperiente, mas sôfrega. Pela primeira vez, surge aos nossos olhos como a jovem de 20 anos que é. Pela primeira vez, vemo-la despida de corpo e alma.

Tudo o que se segue a este momento é uma confirmação. Não necessariamente uma sucessão previsível de acontecimentos, mas uma consequência lógica do que Vecchiali nos mostra exclusivamente pela força do drama. O desenlace é suficientemente aberto para suscitar diversas interpretações, mas é impreterivelmente fatal. Revelador tanto do puro carácter da protagonista, como das suas trágicas limitações; o culminar do conflito entre o corpóreo e o espiritual, no contexto das forças sociais e emocionais que o definem. O que antes parecia um mundo tão aprazível, é agora uma prisão insuportável. Com as janelas abertas, Rosa escapa (liberta-se?) pela luz que vai inundando o quarto até tocar o seu rosto pela última vez.

por Gil Gonçalves

 

Encore / Once More 1988

1982, 15 de Outubro. Louis (Jean-Louis Rolland) perde-se, transfigurado, pelo Septième Ciel. Cativo naquela “gruta de Vénus”, não aceita uma vida sem a plenitude do amor que reconhece em Frantz. A ouverture de Tanhäuseur enche a pista de dança, em versão disco (qual pecado de Roland Vincent, compositor!..), e enquanto Louis chora, e Frantz o rejeita, outros corpos enchem o quadro em seu torno, procurando-se por entre olhares de desejo. Louis abandonará a boate sozinho, e se a câmara se detém num diálogo distraído de Ivan com Michel, será já no exterior, ao espreitarmos pela janela aberta daquele primeiro andar, que saberemos que Louis se suicidou, ao som da voz de Anne-Marie no atendedor, desencantada pelo desaparecimento do “papá”, naquele dia do seu aniversário. A estrutura em elipses do filme levar-nos-á logo de seguida a 1983, nesse mesmo 15 de Outubro, onde, numa praia de Trouville, reencontramos Louis, recuperado e algo conformado, prestes a partir de novo em fuga, apesar de um mal que espreita sobre os seus ombros.

Tudo o que o céu nos permite. Uma mise en scène prodigiosa, Encore explora meticulosamente uma continuidade espacial entre as diferentes personagens, que se vêem partilhar um mesmo espaço em cena, ainda que não exactamente um mesmo tempo, e apesar do fio narrativo distinto que cada uma traça em torno do protagonista. Muito para além das duas (?) canções encantadoras de Louis (em momentos suspensos, onde todos parecem se encontrar num mesmo enlevo), será através do movimento da câmara pelos seus espaços que o filme dará forma à sua profunda musicalidade, com a construção de cada sequência a partir da evolução, em contínuo e em movimento, de um motivo (Louis com…), ou através da introdução de um novo elemento (chegada de…) na composição. Cada capítulo, um 15 de Outubro entre 78 e 86, será como uma canção de um álbum que termina suddenly ao último ano da narrativa. Em “1987”, e pela primeira vez no filme, Vecchiali trabalha uma sequência a partir de diferentes planos (e diferentes espaços). A referida musicalidade espacial é enfim recusada, e cada personagem surge agora separada das restantes, num quadro onde Louis começa a desaparecer, ou já desapareceu. Pelo seu suspiro final, e como Gertrud antes dele, Louis reclama definitivamente uma vida onde só o amor absoluto importa, sem concessões ou arrependimento (porque Louis chegara a ser feliz). A vida continua, claro, encore e encore, mesmo que o desenlace seja triste para quase todos – Sybelle ou Michel, Frantz ou Cathy. Uma comparação simplista, talvez, mas Encore move-se como Minelli sob a luz de Dreyer. De azuis profundos, de melancolia e anseio, uma vida pelo amor, encore l’amour.

O du, mein holder Abendstern

por Miguel Allen

 

Nuits blanches sur la Jetée 2014

Uma atriz, um ator, um cais e o texto de Noites Brancas de Fiódor Dostoiévski são os ingredientes que bastam a Paul Vecchiali para construir Nuits Blanches sur la Jetée. Considerando que o livro foi publicado em 1848 grande parte da curiosidade do filme surge no propositado anacronismo e dialética que se estabelece pela encenação contemporânea da obra de Dostoiévski. “Obscurité, tu seras dorénavant ma lumière”. Depois de um prólogo onde o protagonista Fédor (Pascal Cervo) contracena com o próprio realizador, o filme mergulha efetivamente na escuridão da noite, com excepção de breves lampejos de luz natural que dividem as três cenas que compõem o grosso do filme, protagonizadas por Fédor e Natacha (Astrid Adverbe). É magnífica a forma como o cineasta se faz valer da ausência de iluminação, incorporando na mise-en-scène as luzes fixas do cais e intermitentes do farol, para ir iluminando os rostos dos personagens. E Noites Brancas encaixa plenamente no cinema de Vecchiali, com o seu cariz romanesco bem vincado de (des)amores nem sempre correspondidos. O texto é absorvido pela teatralidade da sua interpretação, num registo não muito longínquo dos filmes de Straub & Huillet, ainda que com um peso dramático diferenciado. Nuits Blanches sur la Jetée é um filme de desarmante simplicidade, um casamento perfeito entre um mestre da literatura e um mestre da sétima arte.

por Bruno Victorino

 

Bonjour la Langue 2023

Um filme de despedida como poucos na história do cinema, Bonjour la Langue estreou mundialmente no Festival de Locarno em Agosto de 2023, sete meses após o falecimento de Paul Vecchiali. Ciente de tal facto é particularmente transtornante a confrontação do espectador com o corpo profundamente frágil do cineasta defronte da câmara. Dedicado a Jean-Luc Godard, Bonjour la Langue apresenta uma estrutura bastante simples, característica transversal à sua filmografia tardia. Contando com o colaborador habitual dos últimos anos da carreira (Pascal Cervo), os diálogos do filme terão alegadamente sido improvisados na íntegra. Em 80 minutos divididos em apenas 3 cenas, filho (Pascal Cervo) e pai (Paul Vecchiali) conversam sobre a sua problemática relação e o facto de terem estado juntos pela última vez há 6 anos. A encenação de Vecchiali vai progredindo no sentido da reconciliação entre os personagens. Se na primeira cena são separados em plano/contraplano, na segunda já partilham o quadro numa mesa de restaurante e na terceira surgem sentados na mesma espreguiçadeira. Um derradeiro melodrama onde o romanesco é substituído pelo vínculo pai-filho, subsistindo a preocupação com a complexidade das relações humanas, explorada por Vecchiali através da desconexão latente no desencontro da linguagem, mas mantendo uma inabalável crença no peso e poder reconcilador da palavra. 

por Bruno Victorino