Há em Demy uma arte do signo que frequentemente faz pensar em Brecht ou no Barthes das «Mitologias». O «em-cantado», claro, é a distanciação, mas a distanciação é também – Barthes mostrou-o a propósito de Brecht – a incandescência dos signos, a arte de os conduzir à sua máxima potência, sem os consumir. (…)
O cinema «em-cantado» é cinema mudo-falado. Todos os grandes filmes modernos, e é nisso, realmente, que Demy é «moderno», perverteram as funções do falado, em nome de um poder expressivo que foi o mudo. Trata-se de fazer reaparecer através (e contra) a insipidez informativa da palavra (dos «diálogos») a força expressiva da voz (das «palavras») que provém da gestualidade, do corpo. O melodrama possui esse poder: fazer explodir a palavra em gritos, em cantos, em lamentações, enfim em música e em emoções.
Pascal Bonitzer (in Cahiers du Cinéma, n.° 341, Novembro de 1982) / tradução João Lopes (in Jacques Demy, ed. Cinemateca Portuguesa, 1983)
O cinema de Jacques Demy, uma das vozes mais singulares a surgir com a Nouvelle Vague, será sempre lembrado (e nivelado) pelas suas duas obras “maiores”: Les Parapluies de Cherbourg (1964) e Les Demoiselles de Rochefort (1967). Dois filmes integralmente cantados, e ambos protagonizados por Catherine Deneuve (com a sua irmã, Françoise Dorléac, no Demoiselles), que funcionam, a um tempo, como homenagem aos musicais clássicos americanos e subversão das suas convenções. Mas se Parapluies e Demoiselles, que traçam interessantes rimas estilísticas e narrativas entre si, desenhadas por uma mão sempre elevada entre a melancolia e o encanto, definem o estilo do cineasta no seu ápice, é importante notar que muitas das suas marcas distintivas já se faziam sentir no começo da sua filmografia, não em Cherbourg ou Rochefort, mas na sua Nantes natal.
Dedicado a Max Ophüls, e porventura o “filme de estreia” mais maduro a sair do (à época) novo cinema francês, Lola (1961) não é “um musical” no sentido mais estrito, mas é um filme que respira e transpira musicalidade. Um filme muito dançado entre câmara, cenários e actores, onde a música domina e realça as fatídicas ações de personagens que não chegam, de facto, a cantar. Estava já aqui perfeitamente delineada a cartografia de desencontros e corações partidos, de anseio e rêverie, que viria a marcar uma obra umbilicalmente ligada aos seus diferentes lugares: Nantes, Nice, Cherbourg, ou Los Angeles…
Separadas até Model Shop (1969), as duas vertentes distintas da filmografia inicial de Jacques Demy — a do filme “em-cantado” e a do filme falado (ambas com origem em Lola) — cruzam-se a partir de 1970, quando o cineasta se entrega enfim ao “encantamento” pleno, num trecho quiçá mais insólito da sua carreira, com Peau d’Âne. Demy voltaria ainda a Nantes para um trabalho que preparara antes de Lola — o musical Une Chambre en Ville (1982) — mas nunca conseguiria concluir esse projeto maior, que visava a realização de “cinquenta filmes (…) todos ligados uns aos outros, cujos sentidos se iluminariam mutuamente, através de personagens comuns“. A sua voz silenciar-se-ia prematuramente, aos 58 anos, com 13 longas-metragens.
A Tribuna presta-lhe uma pequena homenagem, à boleia do ciclo da Medeia Filmes em curso.
Lola 1961
Un premier amour c’est tellement fort… E há uma força imensa nesta primeira longa-metragem de Jacques Demy. Ainda sem as cores garridas e as vozes cantadas que tornariam o seu universo automaticamente reconhecível, estão aqui já bem delineados os temas e elementos dramáticos que o viriam a definir, sob o signo de uma conjugação perfeita entre duas lógicas narrativas aparentemente antagónicas. De um lado, a operática – onde o destino rege os encontros, desencontros, sonhos e estados de alma que movem as personagens – do outro, a do realismo social – onde as contingências do quotidiano se intrometem no conto de fadas, desconstruindo-o por via do humor ou do necessário pragmatismo das personagens face a problemas existenciais ou socioeconómicos.
Mais admirável que o controlo absoluto dessas duas vertentes é a mestria com que Demy as equilibra, densificando a experiência das personagens, tornando tão credível o abandono a uma súbita paixão, quanto o seu embate numa lógica desilusão. Há três expedientes particularmente importantes para esse equilíbrio: o trabalho de câmara (e especialmente o emprego do close up), que não abandona os atores e permite retirar das suas expressões e movimentos o que as palavras não dizem; a música, que à boa maneira do melodrama comenta essa segunda camada silenciosa de significado, dando-nos pistas afetivas para os diferentes momentos narrativos; e a atuação de Anouk Aimée, ponto de confluência de toda esta constelação técnica e estética.
Lola é uma performance dentro da performance de Aimée e é nas fendas dessa representação que a personagem se complexifica. Observamo-la a mudar de voz quando fala com homens, a rir um riso ensaiado, a cantar uma canção sobre a identidade que criou para si (Lola é um nome falso), mas também temos acesso, em diversos momentos, ao cair da máscara, onde se revela uma mulher cuidadora, íntegra, sofrida, mas digna, que não pretende magoar ninguém, mas que o fará, se isso for a atitude correta. É também ela que agrega todas as ânsias e aspirações das restantes personagens: a mesma espera das mulheres por alguém que desapareceu, ou ainda não chegou, o mesmo desejo dos homens por um rumo para a vida em desnorte, a paixão da criança, Cécile (com quem partilha o nome verdadeiro), por marinheiros loiros e altos – representação dos sonhos de outrora por uma vida mais expansiva e arejada, para lá da pequena cidade, antes de tudo desabar e estagnar.
Com uma ponta de crueldade, o destino encarregar-se-á de trazer, a Lola e a outros, o que a 2ª Guerra Mundial – fantasma que ainda paira sobre todos – roubou. O seu arauto, emprestado do western para fechar o círculo deste melodrama, irrompe pela cidade, logo no início, e dela sai, no fim, depois de tudo agitar. Era Uma Vez em Nantes, ao som do Allegretto da 7ª de Beethoven. E se num primeiro impacto a escolha musical deixa poucas dúvidas acerca da gravidade narrativa desta figura, dissipa-as por completo no final, quando surge de novo a sublinhar o seu papel-chave de reorientação cósmica. Porém, o verdadeiro poder deste leitmotif – em conluio com aquele último olhar de Lola para Roland – é o de colar um muito subversivo (e nisso verdadeiramente “nouvelle-vaguiano”) ponto de interrogação a seguir ao “viveram felizes para sempre” que o filme nos mostra à superfície. Na concretização do sonho antevê-se, afinal, o começo de uma nova performance…
por Gil Gonçalves
La Baie des Anges 1963
Qual órgão de Seyrig e Resnais em Marienbad, La Baie des Anges e Demy fazem ecoar o piano fulgurante de Legrand pela Riviera francesa fora. Na antecâmara do desencantamento relampejante de Les Parapluies de Cherbourg, Jeanne Moreau e Claude Mann apaixonam-se. Mann por Moreau, Moreau pelo “mistério dos números e do acaso”. A sorte e o acaso fazem-nos balançar no pêndulo da ostentação de Monte Carlo, dos descapotáveis, fraques e vestidos de gala, até ao mais elementar desespero por aquela última ficha, aquela última passagem de comboio de volta a Paris, aqueles últimos trocos para o scotch de despedida. Esta “existência idiota feita de luxo e pobreza”, para Moreau. Aqui, cresce em nós a convicção de que o sentido de ritmo na lente de Demy é, de resto, sobretudo evidente nos seus filmes ‘não-cantados’. Da primorosa primeira cena, que percorre toda esta baía de anjos e acasos, à fugacidade da última, La Baie des Anges é o filme de Demy mais ligado à nouvelle vague por excelência própria, mas também porventura aquele em que mais está à vista esta linha ténue entre o olhar infantil do encantamento (mesmo o de Moreau, que confunde vício com paixão) com o sentido muito adulto mas nada ingénuo do desencantamento (sobretudo o de Mann, que abandona a família mais pela sedução do acaso que pela procura do amor). La Baie des Anges é, não obstante, para um filme que tem lugar, em grande parte, em enormes salas de casinos, capaz de colocar o jogo como um evento de sedução, uma forma de colocar paixões em evidência. E isso é muito Demy.
por Hugo Dinis
Les Parapluies de Cherbourg 1964
“Não acredito na ópera para fazer um filme popular porque não se percebe o que é dito. Tentemos encontrar o equivalente da ópera no cinema, em que cada palavra seja clara, compreensível.” Terá sido este mote lançado por Jacques Demy ao compositor Michel Legrand que esteve na origem de Les Parapluies de Cherbourg, clássico incontornável do género musical na história do cinema. O resultado é um filme onde os diálogos são integralmente cantados, acentuando a gravidade e melancolia deste colorido melodrama sirkiano. A transversal reverência da Nouvelle Vague ao cinema clássico americano é seguida também por Demy, que se apropria dos códigos do musical hollywoodiano, subvertendo-os. E, de facto, a substituição dos momentos cantados pontuais na narrativa tradicional do filme musical pelo cantado constante, traduz-se no emanar das características brechtianas aludidas por Pascal Bonitzer na citação que introduz o artigo. Tal como nos filmes de Jean-Marie Straub & Danièle Huillet ou Manoel de Oliveira (que, por sinal, também fez o seu musical – Os Canibais (1988) – no caso bem mais aproximado da ópera filmada), o peso dado à palavra dita e a sua repercussão na mise-en-scène, contraria efetivamente a “insipidez informativa da palavra” da dramaturgia convencional. Em Demy este potenciar da palavra através do canto garante uma fluidez que é acompanhada pela câmara e que atinge o seu ápice formal no momento em que os protagonistas aparentam levitar, um pequeno milagre dentro do filme. Nos arrebatadores momentos finais, quando Geneviève e Guy se conformam com a impossibilidade de um destino em comum, as cores esbatem-se, engolidas pelo branco da neve que intensamente cai em Cherbourg, deixando o encantamento do primeiro amor eternamente em suspenso.
por Bruno Victorino
Les Demoiselles de Rochefort 1967
Amores procurados, amores desencontrados. Delphine e Solange são duas irmãs que vivem em Rochefort. Já dizia Marco Paulo: “uma é loira, outra é morena.” Num desfilar de canções, ambas navegam num mar de ingenuidade, procurando o conto de fadas com o qual sonham e para o qual dançam. A personalidade e o aspecto físico distanciam-nas, mas aproxima-as a inocência e a crença no amor genuíno, ressurgindo o conceito de príncipe encantado Demyzado, no qual o realizador francês explora com candura a beleza do primeiro amor, a forma singela como este é percepcionado e a inocência que lhe é atribuída. Além de extremamente sensorial, as tonalidades pastel de Les Demoiselles de Rochefort são de uma gama louvável, exaltando profissões artísticas como o ensino de dança, de piano e da composição melódica. Sendo mais um dos seus musicais em-cantados, Demy alcança a proeza de combinar a leveza e o colorido de Hollywood com a sensibilidade francesa. Celebrando sonhos, encontros e a busca pela felicidade, as pretensões de Demy aliadas ao trabalho musical de Michel Legrand, criam a atmosfera alegre e melancólica, na qual o argumento não pesa nem massacra, ficando-se pela expressão sublime de uma estética própria e das aguerridas e enérgicas performances de Catherine Deneuve e Françoise Dorléac.
por Rita Cadima de Oliveira
Model Shop 1969
Por herança do cinema musical americano, os filmes de Demy descrevem frequentemente um movimento contínuo, e Model Shop será talvez o seu filme mais “circular”. Circular em duas leituras: desde logo, por encerrar a primeira fase da sua obra, ao oferecer uma sequela a Lola, de 1960. Mas, sobretudo, circular pela forma como seguimos George Matthews (Gary Lockwood, saído do 2001 de Kubrick), literalmente às voltas por Los Angeles, entre Venice Beach e o Sunset Boulevard, tanto na esperança de arranjar 100 dólares para resgatar o seu MG (cujo volante nos conta aquela cidade), como no encalço de Lola/Cécile (Anouk Aimée), ou simplesmente sem rumo preciso.
Se o “sonho americano” sempre movera Demy, a sua assumida e expressa admiração por Los Angeles refletir-se-ia, afinal, neste objeto algo invulgar ao centro da sua filmografia. Aparentemente o filme mais “despido” do artifício que caracteriza a quase generalidade das suas outras obras, Model Shop é um filme “desalegrado”, onde a fronteira entre realidade e representação é frágil, pouco perceptível tanto pelas personagens como pelo próprio espectador. Como em Lola, o referido movimento “circular” do filme é sempre impulsionado pelo anseio (o desejo, o “querer”) de cada figura em cena. E como em La Baie des Anges (filme com o qual não partilha qualquer nexo narrativo, mas com o qual parece formar, afinal, uma trilogia livre, “não cantada”), as personagens parecem aqui perder-se na ilusão de sonhos cujo encanto começa já a esbater-se sob a luz crua da realidade. Através da sequência dos três filmes, vogamos da doçura daquela Nantes “americanizada” a preto e branco, no filme de 1960, pela cor berrante de uma Los Angeles hippie, a mãos com uma guerra num lugar distante, até à mais profunda desilusão, expressa pelo plano final, sirkiano e a negro, deste filme (“I just wanted her to know that I was gonna try.“). Demy perder-se-ia, é certo, pelo charme “barroco” que descobrira na cidade. Este seu amor roubar-lhe-ia até o Maio de 68 parisiense. Mas foi enquanto cineasta estrangeiro, e em particular, enquanto cineasta da Nouvelle Vague, que, efectivamente, filmou aquele vasto espaço americano.
Um não-musical (por oposição a todos os seus filmes anteriores), e preenchido por um recorrente bruitage urbano, como Demy jamais voltaria a arriscar. Mas também um filme profundamente ligado à sua música (veja-se a importância das sequências no “labirinto” que nos conduz ao “quarto” de Lola), cujos intérpretes, o grupo de rock psicadélico Spirit, aparecem em cena. Quem diria que este “solarengo” retrato do desencanto da juventude americana no auge da Guerra do Vietname viria não de Antonioni (as comparações com Zabriskie Point são fáceis), mas do mais sonhador dos cineastas franceses? Um filme muito marcado pela descoberta de Demy desse contexto político no seu tempo, uma deambulação urbana por uma cidade nova, esparsa, construída à escala do automóvel. E um longo travelling, sempre em recuo.
por Miguel Allen
Peau d’Âne 1970
Jacques Demy transformou o clássico conto de Charles Perrault do século XVII num filme de uma ironia divertida e essencial – afinal trata-se da história de um pai que quer casar com a mais bela do reino… que incidentalmente é a sua filha. Demy percorre a linha entre o infantil e o adulto de forma admirável. Pontua o filme com canções – a da receita do bolo de amor é particularmente deliciosa – e pinta-o com todas as cores. Usa-as sem medo, mas também com originalidade, como o domínio do azul no castelo do rei e do vermelho no mundo do príncipe. O guarda-roupa é lindíssimo, desde os fantásticos vestidos de Catherine Deneuve àquela maravilhosa pele de burro. Os adereços – o trono em forma de gato, o caixão em forma de globo de neve, o baú brilhante – são construções que fazem de A Princesa com Pele de Burro um filme verdadeiramente irresistível.
por Pedro Barriga
Une Chambre en Ville 1982
Não irei esquecer Une Chambre en Ville: a careca de Jean-François Stévenin, “que parece estar sempre a sorrir”, como é descrito por outra das personagens de Nantes, a sua preocupação com a pequena Violette, grávida e deixada por Guildbaud, por sua vez apaixonado pela filha da sua senhoria, que surge, sem dinheiro e sem roupa, de intelecto aguçado, num momento de fuga da fúria do marido que não deseja… uma história da maior tristeza, cantada com a mais profunda graça, uma mistura que não é de somenos – cria condições para uma experiência de cinema intocável, verdadeiramente suspensa, que nos sorri até ao fim. Tem-me vindo à cabeça com frequência o excerto do filme escolhido para o trailer do ciclo no Nimas: a senhoria de meia-idade, que adora contar as histórias de desamor com a filha afastada e com o falecido marido militar ao seu inquilino – mais um Belo Indiferente, como é o título de uma das curtas de Demy – a deparar-se na sala com a filha, Edith, aos beijos com o próprio, Guilbaud. Não o sabe, mas os dois conheceram-se na véspera, na esquina de uma rua, e dormiram num hotel: a cartomante de Edith tinha-lhe dito que se apaixonaria por um operário metalúrgico. “Mas que farsa é esta?” canta a senhoria e mãe, por cima de um baixo eléctrico na banda sonora; “Precisas mesmo de uma explicação?” responde a filha. Entretanto, passam-se pesadas greves na cidade, marcadas por confrontos policiais muito violentos. Edmond, o esposo louco de Edith, anda à procura dela para lhe fazer mal, e Violette tem o coração despedaçado pelo namorado que a deixou por outra. As coisas encaminham-se para uma tragédia humana completa e banal, que se vê da janela deste simples quarto de cidade onde todos se encontram. Patricia Mazuy foi estagiária de montagem – veio depois buscar Stévenin, que aqui interpreta o camarada Dambiel, para o seu primeiro filme.
por Rafael Fonseca
Parking 1985
Começando com a saudação a Cocteau: Il était une fois, de Parking (1985) fica sobretudo o lamento da chama não ter ardido, do encanto não ter aparecido. De canção em canção, este frenético Orfeu não nos convence. Os seus espetáculos terão o mérito de um profissionalismo disciplinado e de um público a suplicar bis. Porém, para nós espectadores, falta qualquer coisa. Um artista popular demasiado certo. Ligeirinho, lá vai compondo os seus números, dedicando as letras à amada, já se sabe, Eurydice. Soa tudo sem rasgo. Calma! Dois minutos de atenção. Será que Jacques Demy o podia ter feito, será que era esse o seu intento?
Estamos nos anos 80. Quem é que enchia as salas nessa década? Onde pairavam os Lennons e os Bowies de outrora? Entre contractos e pavilhões esgotados, a questão em Parking já não reside no auditório com balões e serpentinas, antes no submundo emprestado à IBM. Daí que a música do nosso Orfeu seja inodora e insípida. Daí a falência do meio artístico, neste caso o musical, pelo seu apogeu financeiro.
O filme de Demy é, acima de tudo, uma obra sobre a morte. E nem a morte, anteriormente elegante princesa em Cocteau, escapou à transformação em ditame transacional. Jean Marais como Hades e Marie-France Pisier como Perséfone, ambos funcionários de uma máquina burocrática a quem é permitido uma ou outra perversidade (abençoada perversidade que alimenta os sonhos). Orfeu, poderás ter Eurydice sob uma condição: não podes olhá-la até atingirem a luz do dia. Porém, ainda antes do desfecho da mitologia clássica, nosso velho conhecido, o sexo. Um quadro unicamente pelo toque, pelo som e pela carícia familiarmente desconhecida, malograda a funesta ambiência em cinza. Terá o sexo sido tomado por essa doença sem nome, que esteriliza todas as sensações?
Enfim, há qualquer coisa neste filme falhado de Demy, em que conseguimos acordar novamente num mundo para a arte e para a morte. Começo a arrepender-me do que escrevi, sinto qualquer coisa. A velha chama, a velha chama. Basta, por Deus! vamos dormir…
por Eduardo Magalhães