O Cinema e o Mundo por John Carpenter: entrevista a Jean-Baptiste Thoret

Crítico, ensaísta, historiador, realizador, professor, autor — Jean-Baptiste Thoret já usou vários chapéus ao longo dos anos. Foi na qualidade deste último que, no final de fevereiro, visitou Portugal para uma série de sessões conferência na Cinemateca Portuguesa, ancoradas no seu mais recente livro John Carpenter: Back to the Bone, uma revisitação dos filmes do cineasta americano, a quem já tinha dedicado o seu primeiro livro, que foi fundamental no seu desenvolvimento enquanto cinéfilo.

Revisitar John Carpenter foi também o pretexto para a Tribuna do Cinema entrevistar uma das maiores referências do pensamento fílmico atual. Como todas as boas conversas, Thoret levou-nos por vários caminhos — da evolução da sua relação com o cinema de Carpenter até àquilo que os seus filmes nos dizem sobre o momento político na América de Trump 2.0 (Thoret tinha já em 2017 realizado We Blew It, documentário que analisava a primeira vaga do fenómeno trumpista). Falámos ainda da cinefilia atual, da importância de conhecer a história e do papel da crítica na criação de novos públicos. No final, um repto — e um “aviso à navegação” para todos os que querem contribuir para uma nova cultura cinéfila: “O cinema é uma arte popular, não se pode tornar numa arte aristocrática só para intelectuais”. John Carpenter decerto concordaria.

 

Jean-Baptiste Thoret (foto FEMA / Phillipe Lebruman)

 

O mundo não muda há 40 anos, é o mesmo desde a década de 80

 

Gostava de começar por lhe perguntar sobre a sua motivação para escrever este livro, que coincide com o ciclo na Cinemateca. Sei que o seu primeiro livro (Mythes et Masques: Les fantômes de John Carpenter) também era sobre Carpenter; o que é que o motivou a regressar a este tema, passados tantos anos?

De facto, o meu primeiro livro sobre John Carpenter foi escrito há 25 anos. Quando o escrevi estudava cinema na Sorbonne, e fi-lo com um colega meu, Luc Lagier. Foi na verdade o primeiro livro sobre Carpenter em França. Era um grande admirador seu, mas o livro que escrevi era muito do seu tempo. O que quero dizer é que estava cheio de referências universitárias, tinha uma forma muito académica de abordar Carpenter. E eu era jovem. Durante muito tempo várias editoras me foram perguntando sobre uma re-edição, mas eu sempre recusei. Não tenho nenhum problema com novas edições dos meus outros livros, mas não este. É um livro de um estudante-admirador, com alguma boa intuição, mas com muitos defeitos.

 

Quis então adotar uma abordagem mais “adulta”?

Sim. Aliás, nunca parei de ver os filmes de John Carpenter, de os mostrar a amigos e aos meus filhos, tentar que descobrissem a sua obra. No ano passado, a editora Magnani, que já tinha editado um livro meu [Qu’elle était verte ma vallée, coletânea de textos e ensaios publicados por Thoret ao longo dos anos], perguntou-me se queria voltar a editar o primeiro livro. Sabia a resposta, mas disse que ia pensar durante uma semana, e durante esse período vi todos os filmes de Carpenter outra vez, escrevendo algumas notas no final de cada sessão. No final da semana tinha 30 ou 40 páginas de notas, e nada do que tinha escrito estava naquele primeiro livro. Disse à editora que não queria reeditar o livro antigo, mas que se quisessem podia escrever um novo, e que o queria fazer muito rápido, quase como um ensaio crítico. Acabei por demorar quatro meses, mais ou menos. A verdade é que, ao fim de 25 anos, já vimos tantos filmes, aprendemos tanto, vivemos tantas coisas, que somos quase uma pessoa diferente. Quando percebi que era capaz de escrever algo completamente novo sobre John Carpenter, que não partilhasse das ideias do outro livro, foi quando resolvi avançar.

 

John Carpenter

 

E, em linhas gerais, o que é que mudou na sua relação com Carpenter? Que coisas novas descobriu que aquele jovem estudante de cinema não sabia?

Há um filósofo americano muito conhecido, chamado Stanley Cavell, que escreveu um livro nos anos 70, The World Viewed: Reflections on the Ontology of Film. Nesse livro, ele basicamente diz que os filmes mudam quando nós enquanto espectadores mudamos. Levou tempo para que eu percebesse a importância real de alguns filmes de Carpenter. Por exemplo Christine, há 25 anos era um filme razoável, mas não era um filme importante para mim, não ao nível de Assault on Precinct 13, Halloween ou The Fog. Aos poucos, fui percebendo que era um “Cavalo de Troia”, sobre a relação de Carpenter com os anos 50. Muito na década de 80 era ensombrado pela questão da geração de 50, que era vista como uma geração de ouro — o slogan de Ronald Reagan era justamente “Make America Great Again”. Diz muito sobre os realizadores daquela época se lhes perguntarmos qual é a geração de ouro para eles: uns dizem a década de 50, os outros a de 60, que são dois tipos de América diferentes.

 

Carpenter durante as filmagens de Christine (1983)

 

Qual era a América de John Carpenter?

Carpenter era uma criança dos anos 50, nasceu em Nova Iorque mas foi muito novo com os pais para o Kentucky, na fronteira da cordilheira dos Apalaches, um estado muito conservador onde ainda vigoravam as leis de Jim Crow. E em Christine, debaixo da superfície de um filme sobre um carro assassino construído em 1957, havia um comentário muito inteligente e perspicaz sobre o legado dos anos 50. É como um vampiro que esteve enterrado durante anos até ser redescoberto, tal como a geração de 50 vampirizou a de 80. E há 25 anos não vi nada disto, este subtexto político. A minha ideia agora era ir “ao osso” (daí o título), ser mais preciso. Por exemplo, quando falamos da influência do western no cinema de Carpenter. Que tipo de western? São os posteriores a 1960? É Howard Hawks, é John Ford, é Anthony Mann? Quis mostrar que, no seu caso, falamos do período clássico do western americano (a curta que mostramos neste ciclo, The Resurrection of Broncho Billy, ilustra isso bem). Quis também precisar a ideia do mal, que sabemos há muito ser um dos principais temas dos seus filmes, mas que “mal”, exatamente?. Ao longo dos anos, percebi que Carpenter é algo de um paradoxo: acredita no “mal puro”, ao contrário de realizadores da sua geração, como George A. Romero, Larry Cohen, Tobe Hooper ou Wes Craven. Os zombies de Romero, a ideia de “eles somos nós”, é impossível em John Carpenter. “Eles” não somos nós. O seu mal é puritano, quase religioso, radical. Isso não quer dizer que não exista o mal político, como em Escape from New York, mas ao contrário dos seus contemporâneos dos anos 70, Carpenter é muito difícil de localizar politicamente. Não é um simples progressista de esquerda, como Hooper ou Romero. Tem uma parte muito conservadora, outra muito anarquista, quase libertária.

 

Escape from New York (1981)

 

Numa entrevista que deu, citou Serge Daney quando este dizia que o terror é um género profundamente conservador, que promove o status quo. Mas como é que Carpenter, “o mestre do terror”, se enquadra nesta ideia, sabendo nós que os seus filmes têm uma vertente clara de anti-conformismo, anti-capitalismo?

Um erro que podemos cometer ao falar de Carpenter, porque era um grande fã do cinema de género clássico (além dos westerns, há o cinema de Howard Hawks, os filmes de ficção científica dos anos 50…), é esquecer que ele fazia filmes profundamente contemporâneos. Não estava a “reavivar” um modelo de cinema antigo, da Guerra Fria, do alien soviético que vinha de Marte rumo à América “pura”. O que Serge Daney identificou foi sobretudo uma questão de enquadramento: a ideia de que o que está dentro do plano é a América, e tudo o que estivesse do lado do extraterrestre, dos vilões, estava fora de campo. Os filmes de terror de acordo com Daney seguem uma estrutura “A-B-A”, em que a chegada do monstro serve apenas como obstáculo ao regresso à estrutura social original, mesmo quando esta era uma ilusão. Era como dizer “eu e tu podemos ter algumas diferenças de opinião, mas se aparecer uma aranha-gigante vamos pô-las de lado e lutar juntos em nome do coletivo”. O monstro servia para consolidar esse status quo. Mas em Carpenter, no final de Halloween, The Fog ou The Thing, nós não voltamos ao status quo.

 

No final de Halloween, Michael Myers pode estar em toda a parte…

Exatamente. Não é “A-B-A”, é “A-B-…” e nunca saímos de “B”. Ser um herói nos filmes de Carpenter é ter a capacidade de ver em nome dos outros. Muitos de nós olhamos para as coisas, mas poucos temos capacidade de ver, como em They Live, por exemplo.

 

Halloween (1978)

 

Mantendo-me neste tópico, fala-se hoje muito da degradação do cinema de massas, dos grandes entretenimentos de público que sempre fizeram do cinema uma arte popular. Falo disto porque o género do terror parece de certa forma imune a essa degradação, mantendo e até aumentando a sua popularidade. Acha que isto reflete alguma coisa, um qualquer desejo coletivo de catarse?

Absolutamente. O “cinema popular” já não existe hoje em dia. O cinema foi a principal arte do século XX, e hoje já não é. Foi substituído por outras artes da imagem: a televisão, os videojogos, as redes sociais… tenho filhos, fui professor, conheço muitos jovens, e vejo que hoje em dia ser cinéfilo é uma coisa estranha, uma comunidade pequena, semelhante ao que aconteceu com o jazz. Ao mesmo tempo, se o terror escapa a isto, é porque precisamos sempre de alguma coisa que dê corpo ao que está reprimido. Basta pensar, historicamente, no período a seguir à Grande Depressão, que coincide com o emergir dos monstros clássicos da Universal Pictures: Frankenstein, Dr. Jekyll e Mr. Hyde, Dracula… Talvez por isso o cinema de terror ainda tenha um futuro risonho pela frente. Mesmo neste momento mais puritano que atravessamos, em que há alguma censura, a cultura woke, continua a ser preciso exprimir o que está para lá desses fenómenos.

 

Acha que estamos numa era dourada para o cinema de terror?

Não quero dizer que os filmes de terror de hoje sejam melhores do que no passado, mas a verdade é que houve um período, entre o início da década de 80 e o os anos 2000, em que o cinema de terror não era particularmente bom. Lembro-me dos primeiros filmes de Eli Roth, que me deixaram alguma expectativa, mas à exceção de Hostel não fez nada de interessante. Rob Zombie para mim foi um dos nomes interessantes da geração anterior, um cinéfilo que seguiu as pisadas de Tobe Hooper, por um cinema mais carnavalesco. O seu remake de Halloween é basicamente uma versão do original de Carpenter se tivesse sido realizado por Hooper, são diametralmente opostos. É importante que o terror se vá reinventando, porque é uma porta de entrada para muita gente, inclusive realizadores, ao mundo do cinema. Não há nenhum miúdo de 6 anos que diga que o seu primeiro amor foi o Citizen Kane, ou L’avventura, isso vem depois.

 

Parece-lhe que o terror anda, de algum modo, em contramão, relativamente a outros géneros da indústria? Lembro-me por exemplo nos anos 2000, esse período de “travessia no deserto”, em que havia no cinema de terror uma preponderância dos remakes, das sequelas, as importações vindas do Japão… e hoje em dia toda a indústria foi engolida por essa tendência — com a exceção, justamente, do cinema de terror, que teve um ressurgimento de filmes originais nos últimos 10, 15 anos.

Tem razão, mas acho que isso também acontecia nos anos 30, 40, 50. As comédias, os romances, os melodramas, são géneros “do sistema”, é difícil subverter esses códigos. Para mim, o poder principal do cinema de terror é precisamente o da metáfora. George A. Romero podia ter feito um filme simples com Dawn of the Dead. Mas resolveu fazer um filme sobre o consumismo, em que os zombies eram uma representação do movimento dos direitos civis da década de 60, da guerra no Vietname, do complexo militar-industrial… o terror nunca vai morrer porque é uma forma muito inteligente e subtil de olhar para a sociedade. Quando fez They Live, John Carpenter disse que se tratava de um documentário. Claro que à primeira vista é um filme de ficção-científica, até um bocadinho fora de moda. Mas é dos filmes mais perspicazes sobre a América dos anos 80, muito mais do que muitos filmes “de primeira”.

 

Dawn of the Dead (1978, George A. Romero)
They Live (1988)

 

Sobre a América dos anos 80 e não só. Tem alguma graça tendo em conta o timing desta entrevista: ontem, enquanto estava nas redes sociais, deparei-me com um vídeo de um protesto nos EUA, em que pósteres com imagens de Trump e Elon Musk davam lugar aos extraterrestres de They Live… em 2017, realizou um documentário acerca da América de Trump, We Blew It. Como é que olha para o momento atual, com o seu regresso?

Tem graça: a primeira ideia de We Blew It era responder à pergunta “o que aconteceu ao espírito da contra-cultura?”, aos ativistas dos anos 60, muitos dos quais ainda estão vivos hoje. A tagline do filme era precisamente “Como é que a América de Easy Rider chegou a Donald Trump?”; não o tinha planeado, mas quando fomos para os EUA filmar, durante três ou quatro meses, coincidiu com a campanha eleitoral de 2016, Trump contra Hillary Clinton. Respondendo à sua questão, acho que é simples — They Live, ou pelos menos a sua iconografia, é ainda hoje relevante na cultura popular porque o mundo fundamentalmente é o mesmo desde o início da década de 80. Está a ficar pior, mas as regras da sociedade, do capitalismo cultural, são as mesmas. O salto entre os anos 70 e 80 foi a última grande mudança cultural que tivemos até agora. Tenho de facto a impressão, desde criança, de que nada mudou nos últimos 40 anos. E isto aconteceu porque os sistemas de poder aprenderam a lidar com, e a gerir, a contracultura. O filósofo Jean Baudrillard argumentou no seu livro Simulacres et Simulation (1981) que todos os sistemas de poder constroem estruturas anti-sistema para se poderem perpetuar a si mesmos. É uma ideia explorada por exemplo na trilogia Matrix, particularmente no segundo filme, que é dos mais politicamente interessantes do mainstream das últimas décadas. Como é que lutamos contra o sistema quando somos todos parte do sistema? Sem uma corrente anti-sistema, temos simplesmente ditadura. Para uma democracia capitalista duradoura, é preciso então produzir a ilusão da luta anti-sistema. Voltando a Carpenter, os óculos de They Live são uma metáfora disso mesmo. Ao colocá-los, vemos as forças invisíveis que nos controlam e sob as quais vivemos. Talvez seja por isso que, enquanto espectadores, realizadores e críticos, estejamos sempre a voltar aos anos 70, porque foram a última fronteira romântica das nossas vidas, o último momento real de contestação, de ativismo político consequente. E foram também o último grande cruzamento, nos EUA, entre o cinema de autor e o cinema popular, entre a indústria e a arte. Claro que depois há imenso debate sobre qual é exatamente o momento que marca o fim dos “Anos 70”. Michael Mann diz que foi em 1978 com o aparecimento da música disco; também pode ser 1980, com o falhanço de Heaven’s Gate. Pessoalmente, diria que foi a partir de 1975, com o lançamento de Jaws e o aparecimento dos blockbusters, que já eram em espírito filmes dos anos 80.

 

Jaws e o aparecimento dos blockbusters

 

Em 1976, ano de Taxi Driver e Network, o Óscar de Melhor Filme vai para Rocky

Absolutamente. É muito interessante, porque nesse período, 1974-76, os filmes mais populares nos EUA eram coisas como Taxi Driver, One Flew Over the Cuckoo’s Nest, The Conversation, O Padrinho: Parte II… ao compararmos com o final dos anos 60 e filmes como Easy Rider, percebemos que alguma coisa mudou. O mood é mais pessimista, o mundo estava a ficar mais pequeno e a paranoia começa a entrar no cinema americano. E isso criou as condições para filmes como Rocky ou Jaws aparecerem como escape.

 

Estamos a falar da Nova Hollywood, de um cinema que nasceu de um período de instabilidade política e social na América, por um lado, e do colapso do sistema de estúdios por outro. Não deixa de ser curioso como esta descrição podia aplicar-se aos dias de hoje, com uma indústria a tentar sobreviver à avalanche do streaming e com um contexto político altamente polarizado, com a ameaça do aquecimento global, a promessa da inteligência artificial… concorda com aqueles que dizem que as condições se estão a formar para o emergir de uma Nova Nova Hollywood?

Gostava que sim, mas devo dizer que não acredito. Quando temos gerações inteiras que foram criadas sob o regime dos filmes da Marvel e das séries televisivas, seria preciso um milagre para que estas pessoas se virassem de súbito para Antonioni, Buñuel, John Ford e King Vidor. Os olhos destas gerações foram destruídos por estes produtos [Thoret aponta para o seu smartphone], por isso estou pessimista. Para haver uma Nova Nova Hollywood teria de haver espectadores que vissem os filmes, cujos olhos estivessem preparados para acolher essa novidade. Mas como é possível aclimatizar o olhar, quando passamos o dia todo nas redes sociais, no Tiktok? Quando vamos na rua somos como zombies, passamos a maior parte do tempo a olhar para os nossos telemóveis. Antropologicamente falando, é uma catástrofe. Hoje, as pessoas são bombardeadas com imagens, mas não têm as ferramentas para as compreender. Quando, depois de 120 anos de cinema, se captam imagens assim [coloca o telemóvel na vertical], é sinal que algo se perdeu.

 

The Crowd (1928, King Vidor)

 

Mas não acha que é possível formar novos públicos? A crítica de cinema, por exemplo, tem um papel a desempenhar?

Claro. Sabe, quando comecei como crítico de cinema tinha 25 ou 26 anos, e na altura a nossa missão era sobretudo a de defender os filmes dos anos 70, os italianos e os americanos sobretudo, que a crítica mais velha e académica não valorizava, e os autores de género, como John Carpenter e Romero. Hoje é o oposto, nós ganhámos. Os anos 70 são dominantes, o cinema de género está no centro da indústria. A tarefa da nova geração de críticos agora é regressar aos clássicos. A maior parte das gerações mais jovens nunca ouviu falar de William Wellman, Raoul Walsh, King Vidor, Fellini, Antonioni, Pasolini. Não conhecem a história do cinema, o western mais antigo que viram talvez seja Once Upon a Time in the West. Como é que podem entender um filme de Sergio Leone se não conhecem o western clássico? O que é que entendem dos thrillers ou dos policiais contemporâneos se nunca viram Don Siegel, Sam Peckinpah, Jean-Pierre Melville? Esse é o verdadeiro problema, e a razão pela qual a maior parte dos cinéfilos de hoje estão mais interessados no património histórico do que no cinema atual, contemporâneo. Eu próprio, há 25 anos, era muito interessado nos novos filmes que iam saindo, todas as semanas ia ao cinema ver as estreias; hoje, em cada 5 filmes que vejo, 3 são filmes antigos. Claro que aguardo com expectativa os novos filmes de realizadores específicos, mas em geral o cinema atual não me interessa, não tenho o apetite que tinha. Um filme faz parte da sua própria história; se não conhecermos a história, podemos até gostar, mas não o vamos compreender. E o mesmo é verdade com a música, com a política… é assim nos sistemas capitalistas, somos incentivados meramente a consumir. E se começarmos a ter referências, conhecimento, uma capacidade de pensamento crítico sobre o mundo atual, não vamos consumir tão facilmente. Como quando alguém diz “a minha opinião é válida só por si” — não, nem todas as opiniões são válidas, variam consoante o conhecimento, o que se viveu, o que se aprendeu. Se não sabem nada sobre a história e o cinema, a vossa opinião não interessa. Não é popular dizê-lo, mas é importante.

 

Apesar disso, sei que abandonou a crítica de cinema, em parte porque sentia que a função perdeu utilidade…

A minha ideia era sobretudo passar a escrever livros e a fazer filmes. Percebi, há cerca de 10 anos, que escrever um artigo sobre cinema numa revista ou num jornal já não tem impacto. É muito fixe para a pessoa e para o seu círculo de amigos e colegas, mas não interessa. Há 20 anos, era possível mudar alguma coisa, impor uma ideia através da escrita de um artigo. Hoje isso já não existe.

 

Mas acha que há alguma possibilidade de futuro? Ou a arte da crítica (porque também é uma arte) está morta?

Acho que o estado da crítica depende do próprio cinema. Se houver um cinema forte, popular e interessante, haverá críticos a ser lidos pelas pessoas. O cinema tem os críticos que merece, de certa forma. Hoje em dia a qualidade do cinema de grande público é baixa, por isso a crítica não tem grande impacto. Talvez seja possível construir novos públicos, mas tem que ser passo-a-passo, partindo de comunidades pequenas. Até porque, hoje em dia, todos são a sua própria comunidade, é muito difícil obrigar as pessoas a juntarem-se. Talvez se consiga convencer algumas, habituadas a filmes da Marvel, a ver um Fellini ou um John Ford. Mas não estou à espera de nenhum movimento de massas, a nossa posição está muito enfraquecida, muito dócil.

 

Numa nota positiva, o que é que vê no cinema atual que ainda lhe vai dando esperança? Seja algum realizador ou movimento, ideias novas que estejam a surgir…

Há algumas coisas, sim. Há muito bom cinema a vir da Ásia, particularmente da Coreia do Sul, e também o cinema indiano. Se formos hoje a algum cinema em Paris, há muita gente a ver os filmes de S.S. Rajamouli, por exemplo. As salas que ainda se mantêm estão cheias de espectadores diferentes. Os meios estão lá e são bons. Acho sobretudo que é importante não intimidarmos as pessoas, não lhes dizer “tens de ver os filmes do John Ford”. É importante começar por reconhecer o gosto pessoal de cada um, e ir introduzindo coisas a partir daí, aos poucos. O cinema é uma arte popular, não se pode tornar numa arte aristocrática só para intelectuais. Isso seria terrível, o cinema não é isso. Quando Francis Ford Coppola fez O Padrinho, havia estudantes, intelectuais e operários na mesma sala a ver. Isso é o sonho. Mas quando há uma sala de cinema cheia de intelectuais, e outra só para quem quer ver os filmes da Marvel, é o princípio do fim. Tem de haver comunicação. E não temos de compreender todos os filmes. Quando tinha 22 anos vi O Leopardo de Luchino Visconti pela primeira vez e não percebi nada. Foi só depois, revendo-o ao longo dos anos, que entendi o filme. O terrível é quando alguém se sente excluído, quando diz “este filme não é para mim”. Temos de lutar contra isso.

 

Il Gattopardo (1963, Luchino Visconti)

 

André Filipe Antunes