O Bobo (1987), de José Álvaro Morais: Ontem como Hoje

Eduardo MagalhãesAgosto 30, 2024

O Ega diz que o hino é a definição pela música do carácter de um povo. Tal é o compasso do hino nacional, diz ele, tal é o movimento moral da nação. Agora veja a Sra. D. Maria os diferentes hinos, segundo o Ega. A Marselhesa avança com uma espada nua. O God Save the Queen adianta-se, arrastando um manto real…

E o nosso hino da Carta?

O hino da Carta ginga, de rabona.

Não, o hino da Carta não sobreviveu à invectiva queirosiana. Mas não se diga que os portugueses não honram ou maltratam os seus símbolos. Lá se mantêm as quinas na bandeira, por muitos associadas ao milagre da Batalha de Ourique que o malvado Herculano beliscou nos seus escritos, comprometendo o firmar da identidade portuguesa. Porém, concedamos uma hipótese de defesa ao velho escritor: “Quanto ao país e às minhas profecias, acredite que o contrário do ditado ninguém é profeta na sua terra é que é verdade. Na nossa terra, onde temos obrigação de conhecer os homens e as coisas, é que possuímos elementos para prever o futuro”.

Pois bem, haverá melhor oráculo que o Bobo? Aquele que encara o outro sem pose, sem dignidade, e, como tal com grande educação. Aquele que cria, de forma voluntária, um linguajar pela perplexidade repleto de ais e uis. Não será improviso o seu confronto, muito menos fuga ao diálogo corriqueiro ou elevado de ideias. O trabalho do jogral não é apenas entretenimento ou provocação, busca a palavra mágica que escapa, que a realidade esquece. Se parece tolo é porque a situação é ainda mais ridícula.

No romance de Alexandre Herculano, o Bobo, Dom Bibas de seu nome, era agente nos bastidores da História de Portugal. Conhecedor das intrigas palacianas em movimento, cedo percebe para que lado o Sol se irá pôr (pobre Conde de Trava, pobre Rainha D. Teresa) e como o jovem Infante Afonso guarda mais que uma espada nas suas mãos. Firme, não só é vidente como peão ativo na vitória, chegando ao lado de lá do tabuleiro.

Já no filme de José Álvaro Morais, passado no pós-25 de Abril, seguimos os bastidores de uma trupe de teatro que leva à cena uma adaptação do romance de Herculano. Note-se que o encenador, Francisco de seu nome, também interpreta o papel de Dom Bibas, desaparecendo a transparência da direção efetiva que a personagem carrega na ação.

Sentimentos distintos e complementares cirandam na adaptação livro filme. Se no primeiro caminha-se na turbulência, na tomada de posições e campos, procura-se adivinhar o sinal do porvir, no segundo já os ventos amainaram, não há risco de sangue. Ou melhor, não haveria.

A Lua, constante de não pouca importância, surge nos primeiros planos sem intenção de assombrar este povo fecundo em lendas, invenções e complicações. Nas primeiras palavras da abertura lá se encontra o familiar fatalismo português: “Mas acabou…E acabou da pior maneira, como eu sempre disse…Pois, como tu sempre disseste que acabava”. A seguir à Lua, uma maca transporta um cadáver para uma ambulância. O filme começa já depois de ter terminado. Será, pois, interessante ver neste cenário desassombrado, pois tudo acabou, como se encena o que estava para acontecer: Portugal.

Há um mistério na mocidade de Chico e de seu amigo João. Envolve um teatrinho mórbido numa casa velha dotada de alçapões e criadas vampiras. Episódio avinagrado sobre o qual o adulto Chico medita, pese embora não abdique de um pequeno-almoço na cama, caricatura do conforto burguês. Depois há outro mistério, caso policial que mete João ao barulho, uma espécie de tráfico de armas com ligações a uma organização terrorista de extrema-esquerda. Intervalando os ensaios da peça que queremos ver, este manto de intriga e conspiração é bordado por recordações esfíngicas (que é aquele episódio na Grécia?) e alguma insolência:

– “São atividade que a polícia não consegue…atividades políticas…O seu amigo pode estar a ser vítima de chantagem…Não sei se me está a seguir?”

– “Não, não estou, ainda não saí daqui…”

A burguesia de e com berço tem, sempre teve, o dom da palavra, malogrado que o desperdice em ataques de malaise, autocomiseração e alguma animosidade. Francisco e João, a que se acrescenta Rita, namorada do primeiro, pouco mais têm a oferecer que esta filigrana belicosa. Amoques e arrufos que não deixam de ter uma certa graça quando bem direcionados como no “patético e tão português” filme com diálogo em rima que fizeram para televisão.

Tornemos ao Bobo peça. Morais parte do teatro para chegar ao cinema. O que é que um grande plano do conde de Trava nos diz que não conseguimos alcançar na plateia de uma récita? E a paixão de Dulce e Egas? Amor de perdição em que o movimento de câmara encerra o capítulo de distância e proximidade que só a um amor antigo é permitido. Tu a combater na Palestina, tu enclausurada na torre. Há ainda a vigília pelo falcão Garcia Bermudes, Lua deste romance entre Sol e Terra. E não esqueçamos a fuga do Lidador e do amigo abade. Tudo tão apetecível neste passado histórico, demasiado real pela leitura da ficção que o realizador concretizou.

A diferença entre Herculano e Morais, entre outras, é o tempo que os separa. O escritor bem pode usar a morte dos amantes como voo para o intransponível, é, afinal, um romântico do século XIX. Já ao cineasta, contemporâneo do Portugal democrático, cabe, debaixo do signo da tristeza alguns marujos e a familiar guitarra, a dúvida sempre eivada de muito humor:

– Pensas que vale a pena ser caricatura desta terra noutra terra? Achavam-nos graça?

– Lisboa existe porque nós a inventámos…

É o espírito do Bobo que não morre!

O Bobo será exibido no Cinema Medeia Nimas em cópia digital restaurada, no dia 31 de Agosto, com presença do actor Luís Lucas

Eduardo Magalhães