Estreia hoje nas salas de cinema O Ancoradouro do Tempo, a sexta longa-metragem do realizador moçambicano Sol de Carvalho e uma adaptação do romance “A Varanda do Frangipani”, de Mia Couto. O filme é inteiramente rodado na Ilha de Moçambique – um local extraordinário, Património Mundial da Humanidade, ligado à massa de terra principal por uma ponte – onde vivem catorze mil habitantes num território insular de apenas 1,5 quilómetros quadrados.
A Fortaleza de São Sebastião, cenário do filme, é nesta ficção habitada apenas por alguns idosos. Local convertido numa última morada para indigentes, a antiga fortaleza colonial é supervisionada por uma enfermeira, Marta, e por um director, Vasto Excelêncio, que aparece assassinado. Izidine, o protagonista, inspector da polícia, desembarca na ilha e dispõe de sete dias para encontrar o culpado: o problema é que cada um dos ‘velhos’, como se apelidam uns aos outros, confessa individualmente a autoria do crime. O Ancoradouro do Tempo é assim um whodunit oblíquo e intrigante. É impossível que mais do que uma destas confissões corresponda à verdade. Mas qual das versões aconteceu, e porquê toda esta ocultação?
Na véspera da sessão de ante-estreia do filme, que ocorria na data dos 50 anos da Independência de Moçambique, sentei-me com o realizador na esplanada da Cinemateca para uma breve conversa sobre esta aventura.
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Parabéns pelo filme. É engraçado este aspecto do décor da ilha deserta que na realidade é densamente povoada… como o setup, muito clássico, de um início que é uma chegada de barco, e de um dispositivo de ‘sete dias’ para resolver o mistério, quase um suspeito por dia. Formalmente, ainda intensificas esta estrutura com momentos no filme onde as personagens se apresentam para a câmara. Podes falar um pouco sobre estas decisões?
Nós retirámos completamente o conceito geográfico da Ilha de Moçambique e de todas as pessoas que moram na ilha – o que queríamos era algo onde só se pudesse chegar de barco, a ideia de uma fortaleza que acolhia aqueles velhos.
Os actores que os interpretam são actores de teatro, a maior parte deles. Existem diferenças entre representar teatro e fazer cinema: tínhamos que estudar como fazer esta ligação. Na história do filme, eles estão a contar uma história de representação, estão a mentir – então vamos deixar que esta representação esteja um pouco presente no sentido dessa conexão.
Faltava dar um leitmotif, na verdade dois, a cada um deles. Um é a história do passado de cada um, e o outro é o que está a acontecer na Fortaleza naquele momento, dentro do conflito.

Cada um deles tem a sua história…
Sim, e uma história que justificaria que cada um matasse o director. Chegou-se a pensar em sair da Fortaleza e filmar de alguma outra forma o passado de cada uma das personagens, mas escolhemos permanecer e pô-las a contar directamente aos espectadores. Os cenários destes momentos em que falam são sempre da Fortaleza, escolhidos com cuidado. Foi uma ideia que funcionou bem.
Cheguei a propôr tanto ao Mia Couto como ao José Eduardo Agualusa colocá-los em roupas de ‘fora do filme’, como se estivessem a sair de casa. Era a ideia de criar um efeito brechtiano de puxar o espectador para lá: estou-vos a contar uma história e vou contar a história a seguir.

O inspector Izidine também tem um segmento que fala para a câmara.
Dois, até. Ele não faz uma representação porque ele é o espectador que está à procura de si próprio, ao mesmo tempo que está à procura do criminoso. Da segunda vez que fala, o cenário está cheio de lata velha, enferrujada – é como se ele já não pudesse continuar com aquela ferrugem. Está num momento de grande emoção porque já percebeu que toda a gente está a mentir, já percebeu que há uma outra verdade que ainda não descobriu o que é, mas tem de ir até ao fim.
E a verdade sobre o que se passa na ilha tem várias camadas… sem querer revelar nada, podemos afirmar que há várias instâncias de corrupção. Podes falar um pouco sobre isto?
Cada grande corrupto começou por ser um pequeno corrupto, no fundo é um pouco esta ideia. Aceitas um suborno, depois aceitas mais outro, depois aceitas um maior, e às tantas já te propõem que mates pessoas. E dizes, “epá, espera aí, não quero”. E se tu não queres, mas sabes o que fizeste comigo durante o passado, não podes continuar vivo, tenho que te matar. Ou seja, há um processo irreversível onde se não matas o crocodilo, como dizia o Samora – é uma frase muito conhecida em Moçambique – se não matas o crocodilo na beira do rio, um dia o crocodilo vai-te matar.
Há vários tráficos presentes no filme, de animais, por exemplo…
O tráfico do pangolim é um tráfico muito sério, porque não é apenas a existência de um animal que vai desaparecer, o pangolim tem muitas influências a nível do sistema ecológico, etc. Depois, no filme, há um crime que é o estágio superior da corrupção. O próprio inspector a certa altura não quer continuar, mas já é tarde.
E tudo isto está a passar-se entre aquelas seis ou sete pessoas. Estão durante o filme todo colectivamente a encobrir.
Os velhos a encobrir a enfermeira, que por sua vez está a encobri-los a eles – e eles todos estão a encobrir os outros.
É um filme de encobrimentos.
Também, obviamente.
A certo ponto no filme estão todos sentados à volta de um corpo…
Com uma particularidade que pouca gente nota. Cada um deles está a segurar o objeto do crime.
A pedra, a âncora…
Exactamente. E há mais uma coisa: a música que é cantada é cantada em quatro línguas nacionais.
Ou seja, cantada por cada um deles na língua de cada um deles de aquilo que seria a sua origem. Sena, Macua, Changana. E a canção quando eles se baixam é cantada nessas línguas.

Estes velhos representam o bem? Ou são também eles corruptos?
Os velhos são malandros. Até eu sou velho e sou malandro também. Eles são honestos consigo próprios, mas são espertos. Jogam, manipulam, têm experiência de vida. Essa ideia de que o camponês africano não pensa é completamente errada. As pessoas têm experiência de vida e jogam-na a seu favor, como qualquer pessoa faz.
Naquela situação de desespero, eles têm que fazer aquilo porque se trata da sobrevivência deles. Sabem que estão a fazer mal, mas entre o mal e a sobrevivência temos o problema de Moçambique. Se nós não tivéssemos esse problema, não tínhamos ladrões… as pessoas não têm nada para comer, têm de roubar para comer. Estou a falar em termos muito genéricos. Em situações de pobreza, tens muita dificuldade em perceber onde é que termina o admissível e começa o inadmissível.
Cada um dos velhos parece representar uma personagem-tipo. Temos o ex-soldado, o português, a curandeira que na sua apresentação diz que finge ser curandeira para que a deixem em paz…
São ícones de Moçambique. O Navaia é o homem que quer vender tudo e trocar tudo, quer saber dos seus barcos – O Nhonhoso quer entrar nos negócios. Ela, a Nãozinha – as pessoas acreditam no mundo mágico e ela percebe que a única maneira de ser respeitada é fingir que é curandeira… São representações que de alguma forma também são representações geográficas: há ali um jogo de línguas nacionais. Houve um momento que cheguei a pensar em fazer doze velhos, um para cada uma das províncias do país, mas achei que isso seria muito básico, então deixei encontrar os personagens que estavam mais ligados ao filme. Depois, introduzimos um elemento novo, que não estava na história original, que é a personagem da criança.
O Mia achou que era importante colocar ali a ideia: o que é que uma criança com 12 ou 13 anos, que não tem pais, que nao tem nada, o que é que ela pensa ali? E o que é que ela quer?
Que para ti no guião representou uma função de guia em relação ao inspector. Ela mostra-lhe as pistas…
Também. Ela quer sair dali. Está a chamar a atenção para ela própria, a defender os seus próprios interesses, no sentido que quer ser o centro de uma certa atenção. O que numa criança é normalmente aceitável – mas as personagens dos velhos fazem um bocado a mesma coisa também, não é?
E, de resto, o filme segue o livro de forma restrita?
Na coluna principal, como se diz nas equipas de futebol, sim, embora cada um dos capítulos do livro desenvolva muito mais a história de cada uma daquelas pessoas. Tínhamos no entanto de ter um certo cuidado, porque o livro tem muita coisa de magia, tem sangue a escoar das paredes, morcegos grandes…há mais elementos fantásticos. Colocar isso no filme representa primeiro um problema de financiamento, logo. É muito efeito especial. Nós não queremos efeitos especiais, queremos que as coisas loucas aconteçam como se fossem normais, porque é assim que acontece em Moçambique, também. O filme é mais suave. É uma janela que bate… coisas desse género. E é mais a Fortaleza: visualmente, as paredes, as texturas, são mais fortes. Demos mais força à Fortaleza – num livro ou num trabalho sonoro teríamos que fazer de outra maneira.

E há de facto na Fortaleza do teu filme uma aura de dispositivo teatral, por ser uma ilha onde só moram sete pessoas, por causa dos cantos e reentrâncias…tem muitos corredores, não é? Estou a pensar naquele plano onde o inspector sai de um quarto onde fala com um indivíduo, a enfermeira está à espreita numa divisão paralela, dirige-se para um outro corredor onde estão os outros à espera…
Se tiveres a oportunidade de ver O Búzio (2009), é um filme meu pequenino, de dez minutos, sobre crianças-soldado em África. É todo feito dentro de uma oficina: toda a representação do que é a floresta, o combate, os soldados, etc. O que eu gostaria de fazer no cinema até ao resto da minha vida – tenho mais dois ou três projetos dessa natureza, era estar nesse espaço: um teatro tridimensional, onde podes pôr a câmara atrás, à frente… aquilo que o cinema traz ao espaço do teatro é essa tridimensionalidade – um pouco como estás a fazer aqui agora [com as fotografias]. Classicamente estaríamos com uma câmara a filmar-nos aos dois, outra a filmar-te a ti e outra a filmar-me a mim. E não é isso que está a acontecer, estás a rodar.
Essa ideia de cinema é uma ideia que me é muito cara. Gosto de trabalhar nesses espaços e gosto que os espaços digam coisas ao filme. E que digam coisas simbolicamente.
Sendo o mundo mágico africano tão forte, tão forte, tão forte, não havendo condições financeiras, é quase um desafio, quase uma proposta de solução fazer as coisas simbolicamente.

Aquele recurso muito criativo dos pesadelos do inspector, não é? Que são projectados na parede…
Precisamente. É aproveitar essas linguagens todas, tentar criar uma atmosfera que comunica com as pessoas. Há um momento em que estás dentro do filme, outro momento que estás fora, tens esse jogo.
O José Eduardo Agualusa foi o script doctor, certo?
Sim. Ele é muito amigo do Mia. O guião foi escrito pelo Mia Couto e por mim – depois fomos para a Ilha, onde o Agualusa vive.
Ele mora na ilha do filme?
Mora lá sim. Naquela ilha [risos]. Tivemos algumas reuniões com ele e continuámos a falar… Ele logicamente gostou muito desta ideia do mundo mágico – ele e o Mia trabalham os dois, já muitas vezes fizeram trabalhos em conjunto.
O filme é uma co-produção entre Moçambique e Portugal?
Moçambique, Portugal, depois por obrigações da União Europeia, mas também por amizade, Maurícias e Angola, que não é uma contribuição financeira, mas contribuições de produção – e da Alemanha, onde recebi alguns financiamentos do World Cinema Forum.
E a pós-produção foi feita cá?
Sim – A maior parte dela, excepto a música. Sobre isso há uma coisa importante que eu queria dizer, e que deves ter notado. O Stewart Sukuma, que também é actor no filme, é um músico muito experimentado, acabou de fazer agora os quarenta anos de carreira. Conhecemo-nos há muitos anos, e andávamos sempre a querer fazer alguma coisa juntos. Propus-lhe que fizesse a música deste filme. Ele disse: fantástico, vou fazer a música, mas vou-te impôr uma condição – não há nenhum instrumento, zero. Só quero trabalhar com voz.
Ele descobriu um grupo de cinco jovens, tem um coro pequeno que trabalhou com ele, e foi assim que a música se fez, toda. Há um casamento da música com a história muito forte. A África é muito musical… Há gente que diz que eu tenho um bocado de música a mais no filme, mas eu gostei assim.
Ainda há aqui uma camada muito pessoal para o Inspector, porque esta Fortaleza foi outrora onde ele nasceu…
Exactamente. Ele vai à procura de um crime, mas encontra-se na sua própria Ilha, a ilha onde ele nasceu, onde o pai foi acusado de ser traidor da guerrilha – uma pessoa que é traidora da guerrilha está estigmatizada para o resto da vida. Só no fim do filme é que vai descobrir a verdade sobre o pai, que aguentou até ao fim. Então ele também tem de aguentar até ao fim.
Encontra-se a ele próprio também na Ilha…
Sem dúvida, está à procura da sua identidade.
Passas metade da tua vida cá, metade em Moçambique?
Não, passo 80% em Moçambique e 10, 15% cá [risos]. Nasci lá, vivi lá toda a minha vida, estudei cinema aqui no Conservatório em Lisboa, voltei em 74 por causa da Revolução e lá estou. Estou lá sempre. Não me vejo sem ser moçambicano, obviamente tenho raízes portuguesas e portanto tenho laços com aqui, mas eu acho que ainda há muita coisa para fazer em Moçambique. Enquanto houver vamos aproveitar.
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A Tribuna do Cinema gostaria de agradecer a Sol de Carvalho, a Sandra Lopes, e a Adriano Viçoso, responsável pelas fotografias e gravação da entrevista.