Esta noite, é exibido na RTP o último episódio de “O Americano”, série de 8 episódios e mais recente projecto de Ivo M. Ferreira (Cartas da Guerra) que a Tribuna do Cinema teve oportunidade de ver em ante-estreia na passada edição do LEFFEST. A série, ambientada na década de 80 no Algarve, é uma adaptação ficcionada da história verdadeira dos “Irmãos Cavaco” e do gangue criminoso de que fizeram parte, responsável por mais de vinte assaltos a bancos, casas de câmbio e hotéis, assim como por vários homicídios, nomeadamente de três guardas prisionais naquela que foi “a fuga de prisão mais violenta da história portuguesa”, em 1986.

Os criminosos andavam a monte: tinham feito, nesse Verão, vários ‘carjackings’ a famílias que estavam a caminho da praia. O assunto, recorda o realizador a partir da sua própria infância, dominava o país e o Algarve – assim o foi até à captura de todos: Faustino Cavaco, “O Americano”, conhecido pela sua pontaria – o último. O protagonista real desta história saiu da prisão em 1999 e investiu num negócio de criação de caracóis, na restauração e em administração de condomínios, no Algarve, não voltando a ter problemas com as autoridades. Um livro publicado ainda com o “Americano” na prisão, Vida e Mortes de Faustino Cavaco, autobiografia transcrita e organizada pelo jornalista Rogério Rodrigues, é a principal base para a adaptação ficcional. O caso voltou a ser falado em 2016, pela ocasião dos 30 anos da fuga da prisão, num grande artigo de investigação para o Observador de Bruno Vieira Amaral, que é também um dos autores do argumento da série.
Conversámos com Ivo M. Ferreira, numa videochamada do Porto para Lisboa, sobre este projecto, estreado na RTP no final do ano passado, e sobre a história que o inspirou.

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Já consegui ver os primeiros seis episódios. Falta-me o 7 e o 8…
As pessoas gostam imenso do 8, e do fim desse episódio. Fiquei contente porque várias pessoas que já viram se referiram a isso.
Também sou Algarvio… Ia perguntar-te como é que tomaste encontro com esta história e qual foi a génese de todo o projecto.
O assunto é um assunto que me ficou na memória desde miúdo, porque eu todos os anos ia com os meus avós para o Algarve de carro, e nesse ano (1986) havia todas as peripécias, foi o ano em que eles estavam a monte, o Cavaco e os outros. Lembro-me perfeitamente de estar com os meus avós no carro, a minha avó com receio, as janelas fechadas… era a altura em que Portugal estava a entrar na CEE. Estava sempre a dar na rádio, que eles estavam a monte, que já tinham feito vários carros à ponta… Fazer um carro à ponta é o equivalente em português ao carjacking. É uma linguagem de bandido, mas existe. E então, durante as férias assistimos a isso, à operação policial e depois à captura. Foi uma história que ficou gravada na minha infância. Ora, estando a trabalhar já durante alguns anos neste outro filme que é o Projecto Global [próximo projecto de Ivo M.Ferreira, sobre as FP-25 e o contexto de Portugal no pós-revolução, em formato série e longa-metragem], havia aqui imensas coisas que se cruzavam. O Projecto Global, que é uma história inventada sobre um grupo armado revolucionário…

E que já estás a fazer há vários anos, não é?
Sim, acabei por filmar a seguir a’O Americano, mas já estava na calha há muito tempo. É um projecto muito pesado, uma co-produção também pesada, de forma que demorou algum tempo a montar, também financeiramente, e não só.
De qualquer forma, em relação a’O Americano, eu precisava também de malta para escrever comigo. Isto foi antes do Hélder Beja [co-argumentista] começar a trabalhar comigo, e eu gostava muito das coisas do Bruno Vieira Amaral [co-argumentista], porque retrata precisamente esse Portugal dos anos 80, o Portugal de quando eu e o Bruno éramos putos. Eu gosto muito dos reflexos da sociedade que podemos ver na sua escrita; é uma coisa que ele tenta também fazer n’O Americano – que a sociedade e que o tempo político fossem reflectidos nas personagens e nas motivações – para mim, está completamente colada a história do país com a história das personagens.
Fui falar com o Bruno Vieira Amaral: queria falar com ele, contactei-o, sabíamos quem éramos, um e outro, e combinámos um almoço onde ele vive, no Barreiro. No caminho para lá estava a ler várias coisas para perceber também os interesses do Bruno e aí fez-se luz. Ele tinha escrito no Observador um artigo muito grande sobre a fuga [Faustino Cavaco: A fuga da prisão que parou o país] e acabámos esse almoço com o manifesto desejo de trabalharmos juntos e sobre este tema muito específico. Havia o livro do próprio (Vida e Mortes de Faustino Cavaco), o livro autobiográfico organizado pelo jornalista Rogério Rodrigues, fui ter com o Rogério, ele começou-me a contar a história dele, ou seja, o facto de na altura ter acompanhado o caso, acabar por tomar conhecimento com os envolvidos, ele conhecia o PJ responsável pela captura do Faustino que acabou por se tornar, de certa forma, amigo do Faustino, esse elemento da Polícia Judiciária que teve um papel importante na sua detenção.

Que aqui na série é a personagem do Adriano Luz?
Entretanto isto é tudo… a contar-te a ti é que estou a tentar perceber realmente o que é que não foi ficcionado, o que é que estava realmente lá. Quando se está muito tempo a trabalhar num projecto, quando se faz investigação e ao mesmo tempo, paralelamente se faz um trabalho de escrita, já não se sabe o que é que era exactamente da história, o que é que foi inventado.
Rapidamente ao perceber o passado do Faustino, que fez parte completamente da emigração dos anos 60 para França… a vida era uma miséria, fascismo, pobreza, fome, e depois a guerra [colonial] começou a partir de 1961 a arrastar pessoas e houve uma certa desertificação de alguma ruralidade portuguesa…
Tenho realmente uma grande vontade de trabalhar a história contemporânea portuguesa, o pós-colonialismo, etc. São coisas que têm a ver com a minha matéria de interesse de trabalho por agora, não quer dizer que amanhã não mude, mas para já ainda não aconteceu. É um tempo que me interessa imenso.

Ao mesmo tempo, tinha esta história de infância que te contei no início – na altura lia muita banda desenhada, até porque fui operado à apendicite e nos dias que estive no hospital fui especialmente mimado e a colecção cresceu imenso, estou a falar de Astérix, Lucky Lukes. Este lado também fantástico de míudo, sempre o associei a este projecto, e disse-o desde o início ao João Ribeiro [Director de Fotografia]: neste, dá para te “vingares”. Nós às vezes quando nos referimos a algumas coisas estéticas fala-se nalguma artificialidade, e neste caso eu queria mesmo que isto fosse uma câmara muito mais desenhada e que tivesse um bocado este espírito mais western à portuguesa, digamos, um pouco também burlesco. Não é assim que eu faço normalmente no meu cinema.
Quis fazer este diferente por achar que tinha uma forma específica, e que era dessa forma que eu poderia contar esta pequena lenda portuguesa; quase como um conto infantil, se bem que tem coisas muito violentas, eu sei, mas quase como um conto infantil.

Essa questão de estilo nota-se também, penso, numa banda sonora muito presente, nos diálogos com muitos provérbios, one-liners;
Na cena de amor da Felicidade com o Cavaco, no episódio 3, com aquelas cores todas, é um plano-sequência, tudo. Eu disse ao Ribeiro “estás a ver aquelas tiras de banda desenhada na parte de baixo da página, quando partem a acção?” Eu queria fazer isso mas sem partir. Pedi especificamente, insisti muito naquele tipo de barraca para o escritório, com vidros diferentes, para poder ter cores diferentes e replicar um bocado esse lado BD.
A série começa in media res com ele a ser capturado, e segue sempre essas duas linhas do tempo, entre o presente na prisão e os eventos até aí;
Até um certo ponto. Há um ponto em que elas se juntam e passamos a estar num único tempo presente. A ideia sempre foi ter os dois tempos misturados, visitando um e outro tempo, e depois ver que tipo de relações é que podiam surgir.
O protagonista desta série [João Estima] tem uma grande incidência…
Filmámos 65 dias ou 67… 62 foram com ele.
Como foi o processo de o encontrar, de ser o actor certo para este papel?
Conhecia o João Estima inicialmente do teatro, depois ele fez casting primeiro ainda para este outro projecto, Projecto Global, e eu tinha gostado muito do casting e escolhi-o para um papel nesse filme. Depois, a Ana Pinhão [produtora] tinha feito um filme do Tiago Guedes nos Açores, Diálogos Depois do Fim e mostrou-me uma cena do João com o Adriano Luz, que é o meu actor fetiche certamente, entra em todos os meus filmes…
Para O Americano – o Faustino tinha fama de ser muito alto, é uma coisa que é muita referida; pensa-se no Albano Jerónimo, que é um excelente actor e que é muito alto. Mas aqui, era preciso um miúdo com 20 e poucos anos, que é a idade que o Cavaco tinha. Há um certo tipo de perdão que temos para com um miúdo de 15 que não temos com um de 20, que temos com um de 20 e não temos para um de 25, e por aí fora. Eu não digo que faça o filme para perdoar, para que perdoem o Cavaco, não é isso, mas é preciso um nível de perdão, que se perceba melhor como é que se pode cair em alguns disparates com essa idade do que se fosse um homem já feito. Daí, não poderia ser o Albano, e o Estima foi convidado directamente.
Conheceste o Cavaco? Ele está ciente do projecto?
Conheci, ainda falei algumas vezes com ele ao telefone. A coisa para mim mais difícil n’O Americano era compreender a personagem… Não era obrigatório conhecê-lo, mas foi muito simpático. Mesmo o Rogério Rodrigues, o jornalista responsável pela biografia, tinha alguns pruridos inicialmente ao conhecê-lo porque apesar de tudo trata-se de um condenado, mas depois há uma coisa que é muito clara: ele cumpriu a sua pena, por isso é um homem livre como qualquer um de nós.
Está lá pelo Algarve?
Sim. Nunca mais voltou a cometer crimes, aliás, isso depois está no último episódio. É um homem com inteligência e muito afável, foi muito simpático tê-lo conhecido, ele acabou por visitar a rodagem quando estávamos perto dele, no Algarve, e para a equipa foi muito divertido estar lá o próprio. Ao mesmo tempo, é complicado, porque seja como for estamos a revistar coisas dolorosas e coisas horríveis. Com certeza com muito respeito também pela família das vítimas, mas foi-lhe dito – nós vamos fazer o filme seja como for, é uma coisa pública. Legalmente tudo o que é público, que vem nos jornais não tem direitos associados. Uma coisa era não podermos usar coisas do seu livro, mas a seguir ele acabou por concordar e acordar e usámos coisas, legitimamente, com contratos.

E aqui neste caso o Faustino acabou por ficar agradado com o projecto?
Sim, eu penso que sim. Ele diz que tem que ver com olhos de ver, que não conseguiu, que emocionalmente…Há também uma coisa que é verdade: isto é uma coisa inventada, uma história que eu inventei que aconteceu, que nós criámos e escrevemos, com personagens. Há nomes que se mudaram, há nomes que se mantiveram, mas muitas das personagens são parte de uma história que uma pessoa não faz ideia como é que aconteceu, como é que não aconteceu…
Apesar de tudo, a forma do filme tem este lado burlesco que eu acho que nos afasta também um pouco da realidade. O personagem do polícia, do Godinho [Adriano Luz], para mim era muito importante que fosse uma espécie de espelho, que houvesse uma espécie de espelho, serem os dois de Salir. O que me agradava particularmente era que duas pessoas nascidas na mesma povoação pudessem ter vidas e desfechos tão diferentes.
A cena que mais gostei acho que tem a ver com isso de que estás a falar. No final do episódio 4, quando o Adriano Luz leva à praia o Estima e ele diz que vai urinar e segue para o mar – depois cortamos para o Inspector no carro a dormitar, ou seja, acho que se percebe que ele estava um bocado a deixá-lo escapar. Mas ele volta sozinho.
Para mim até mais do que isso. Ele deixa-se estar ali a dormitar e tem a arma em cima do tablier. Digamos que lhe está a dar uma oportunidade.
Muito obrigado Ivo.
Obrigado.
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A Tribuna do Cinema gostaria de agradecer a Ivo M. Ferreira, a Ana Pinhão, à APM – Actions Per Minute e à Press do LEFFEST 2024.