Robert Eggers é um realizador com um talento voltado para o futuro, mas com um olhar imerso no passado: o seu trabalho ressuscita eras. Mergulha-nos em realidades antigas, onde o sobrenatural e o tangível colidem. Com três filmes no bolso, Eggers já nos guiou pelas florestas da Nova Inglaterra puritana de 1630, pelo isolamento de um farol desolado em 1890, e já nos arrastou pelo sangue e a lama de sagas vikings do século X. Agora, volta a esticar os dedos para o passado, agarrando-se à Alemanha de 1838 com o seu remake de Nosferatu. Eggers já provou ter a visão e o dom necessários para explorar os cantos mais sombrios da humanidade, imergindo em mitos, folclores e histórias que expõem os medos e obsessões arquetípicas da civilização. À primeira vista, um remake de um dos pilares do cinema mudo, vindo de um realizador conhecido pela sua preferência por histórias originais com pano de fundo histórico, poderia parecer um exercício redundante. Percebe-se agora que foi uma escolha plena de sentido.
Nosferatu, Eine Symphonie des Grauens, de 1922, foi a primeira longa-metragem de sempre a explorar o vampirismo e a sua ligação ao horror e à obsessão. F.W. Murnau, que desejava adaptar Drácula de Bram Stoker ao cinema, deparou-se com a barreira dos direitos autorais. O que poderia ter sido um simples obstáculo transformou-se num exercício de reinvenção: com manha e alterações subtis ao material original, Murnau criou uma obra-prima do expressionismo alemão. A história de bastidores, no entanto, é digna de um filme à parte. Florence Balcombe, viúva de Stoker, não viu com bons olhos as semelhanças com a obra do marido e processou a Prana-Film, resultando numa ordem judicial para destruir todas as cópias de Nosferatu. Felizmente, algumas cópias sobreviveram, garantindo que esta figura angular do cinema de terror continuasse a alimentar pesadelos. Parece que, além dos vampiros, há filmes que também são difíceis de matar.
Desde 1922, Nosferatu tem encontrado ecos interessantes em reinterpretações que tentaram expandir a essência do original. Werner Herzog, nos anos 70, deu-nos um remake profundamente atmosférico, carregado de melancolia e da palidez de Isabelle Adjani. Fast forward para o ano 2000, e Shadow of the Vampire trouxe uma camada meta-textual fascinante, explorando a linha ténue entre ator e personagem. Curiosamente, um filme protagonizado por Willem Dafoe (que na versão atual de Nosferatu dá vida ao ocultista Dr. Albin von Franz), numa performance memorável como Max Schreck encarnando o grotesco Orlok do Nosferatu original. Mas, desde então, o Conde Orlok parece ter voltado ao túmulo. Talvez o motivo seja a própria sombra de Drácula, uma figura tão enraizada no imaginário popular que tornou quase impossível reinventar a narrativa vampírica sem cair em repetições ou clichés. Depois da opulência barroca de Coppola, que redefiniu o mito com um virtuosismo visual raro, o que se seguiu foram, em grande parte, versões diluídas, subprodutos que pouco ou nada acrescentaram ao género. Entre o peso da história e o desgaste da fórmula, Nosferatu talvez aguardasse o momento certo para se erguer novamente.
Dado o desgaste temático que Nosferatu e os seus descendentes cinematográficos sofreram ao longo do último século, a decisão de Robert Eggers de revisitar esta obra-prima é curiosa. Afinal, que espaço resta para a criatividade num material tão exaustivamente explorado e com uma pegada quase saturada na cultura popular?
A resposta está na perspectiva única de Eggers. Embora Nosferatu partilhe raízes com Drácula, as diferenças entre ambos são o que o torna uma criatura cinematográfica fascinante. Onde Drácula frequentemente romantiza o horror, Nosferatu abraça uma crueza alegórica: mortalidade, repressão, razão, misticismo, superstição e obsessão – temas que têm ecoado nos trabalhos anteriores de Eggers. É uma história que respira o espírito do expressionismo alemão, um movimento que explorava os extremos psicológicos, a angústia existencial, o mal interior. E se há algo que define Eggers como realizador é a sua habilidade de mergulhar nos recantos mais sombrios da psique humana. Além disso, Nosferatu ofereceria a Eggers a oportunidade de recriar um filme de época com o rigor histórico que caracteriza o seu trabalho. Do guarda-roupa ao diálogo, Eggers é obcecado pelo detalhe, e trazer esta autenticidade a um clássico do cinema mudo provou ser um desafio irresistível. Uma vez mais, o expressionismo, com a sua teatralidade estilizada, estava em linha com o seu estilo visual e a sua capacidade de transportar o espectador para tempos e espaços outros.
Portanto, apesar de um aparente paradoxo inicial, Eggers e Nosferatu não só fazem sentido juntos, como se revelam um encaixe quase inevitável. O Nosferatu de Eggers é um estudo sobre a corrupção da inocência, sobre como o desejo incontrolável — seja por sangue, amor, catástrofe ou domínio — pode destruir tudo no seu caminho. É um filme que pinga atmosfera, com uma sensualidade macabra e crepuscular que se enfia por baixo da pele e inquieta até ao final. Fiel à sua obsessão pelo detalhe histórico, Eggers vai além do set design e do guarda roupa, e eleva a autenticidade a um patamar narrativo. Tal como em The VVitch ou The Lighthouse, o diálogo em Nosferatu é uma reprodução da linguagem da época e uma ferramenta que dá corpo às personagens. Ganham, assim, uma presença viva e enraizada num tempo e lugar específicos. As frases e as expressões ornamentadas, longe de serem meras curiosidades anacrónicas, tornam-se essenciais para a construção do filme. É esta combinação de rigor histórico, ambição estética e coragem narrativa que faz de Nosferatu um exemplo do melhor e mais atmosférico horror gótico que o cinema contemporâneo tem para oferecer.
Jarin Blaschke – responsável pela cinematografia dos filmes anteriores de Eggers e nomeado para um Óscar graças ao seu trabalho em The Lighthouse – embeleza a tela com um visual muito próprio, que oscila entre o moderno e o clássico. A luz e a sombra, tal como em 1922, tornam-se personagens por si só, um chiaroscuro macabro que cria uma atmosfera de pesadelo surreal. Os lampejos de tons vermelhos e amarelos prestam homenagem à tintagem original de Nosferatu (que se foi perdendo com o tempo), enquanto a maior parte do filme é envolta numa paleta quase tão cadavérica como o Conde que se aproxima de Wisburg e as vítimas que vai deixando pelo caminho. Tudo possui uma beleza terrível, uma qualidade sedutora que torna este pesadelo gótico e febril algo difícil de esquecer.
A atmosfera é enriquecida pelas interpretações. Lily-Rose Depp, talvez pela primeira vez, tem a oportunidade de brilhar no grande ecrã com um papel carnudo, vestindo a pele de uma jovem “melancólica” que, por equívoco, atrai uma criatura das trevas, tão escura e mórbida quanto a peste que o acompanha. O desafio do seu papel não é pequeno – ora é uma jovem vulnerável, ora uma fera sedenta de desejo, prisioneira de uma possessão que ninguém parece compreender ou saber curar. Olhos revirados, corpo contorcido, convulsões, saliva que escorre da boca – uma interpretação rica numa fisicalidade angustiante, mérito da atriz. À medida que Ellen ocupa o centro da trama, Nosferatu dá uma guinada junguiana, sugerindo que o verdadeiro peso da protagonista reside em pertencer a uma sociedade pré-vitoriana que vê o desejo feminino como uma sombra única e impura.
De Bill Skarsgård já muito se tem dito, e é impossível não reforçar – o rapaz tem uma verdadeira vocação para a vilanagem. Modernizar o Conde Orlok – o morto-vivo obcecado por uma inocente e disposto a tudo para a capturar – não era tarefa fácil, mas Skarsgård reinventa o personagem de forma eficaz. A maquilhagem, claro, contribui para o efeito, tornando-o irreconhecível. Monstruoso, grotesco, putrefacto, cadavérico, amaldiçoado, este Orlok supera qualquer outra representação de Nosferatu ou Drácula no que diz respeito à repugnância. Apesar disso, o que realmente impressiona são os maneirismos, a voz. Orlok é um espectro, uma obsessão, um apetite. Cada palavra que profere está impregnada de negrume, desprezo, luxúria. A voz do monstro, totalmente trabalhada por Bill, sem o auxílio de sintetizadores ou edições, torna-se mais perturbadora do que o próprio Conde. Outras versões de Nosferatu ou Drácula ainda permitem reconhecer o humano por trás do monstro. Neste Orlok, no entanto, é impossível encontrar qualquer vestígio de Skarsgård.
Mas Nicholas Hoult também merece destaque – como Thomas Hutter, o infeliz enviado ao castelo do Conde Orlok nos Cárpatos para concluir um contrato de compra de uma ruína em Wisborg, Hoult é a personificação do pavor. A sua sequência chave, desde a viagem ao castelo até o encontro com o Conde, é permeada por uma sensação de terror absoluto que se infiltra no espectador por osmose, graças à expressividade de Hoult. O medo é transmitido menos pelos sustos ou pela violência explícita e mais pela reação da sua personagem, de autêntico pânico, desespero, aflição. O restante elenco, por muito que se esforce e por mais simpatia que desperte, não chega a atingir o mesmo nível.
No entanto, nem tudo é perfeito. Apesar de o final em si, poético e trágico, ser bem conseguido, o terceiro ato é amofinado por personagens que vagueiam atabalhoadamente, frases repetidas, e ações sem consequência que se tornam maçadoras. Percebe-se o porquê – o frenesim místico em crescendo do filme não ajuda a destoldar a visão dos homens, que se desdobram em decisões e indecisões sobre como parar a peste, como eliminar o monstro. São, ao mesmo tempo, confusões com que já nos deparamos noutros filmes, noutras histórias, e que não trazem muito de novo. Se nos outros atos do filme havia familiaridade mas inovação na visão de Eggers, o terço final do filme carece desse sentimento de autoria. Outro ponto menos conseguido é a profundidade das relações entre as personagens, que se mantém demasiado superficial para o esperado. Talvez seja um reflexo dos diálogos ornamentados ou da teatralidade empregue para evocar a época retratada. Ainda assim, teria sido muito mais envolvente se os laços entre o pequeno grupo que acompanhamos fossem mais profundos. Conferiria maior peso ao desafio, à perda e à luta, tornando a jornada emocionalmente mais cativante.
No geral, Nosferatu é um deleite para os apreciadores de cinema gótico, feito com entrega, com paixão. Mas, a dizer a verdade, não sobressai da filmografia de Eggers como a sua obra-prima. Essa, ou foi o seu primeiro filme, ou ainda está para sair. O futuro o dirá. Até lá, mantém-se a curiosidade aguçada e vai-se sucumbindo ao apetite de Eggers, à sua sensibilidade mórbida, sombria e irresistível.