Um divertido condensado de cinema popular, repondo ao centro os dois protagonistas do “primeiro filme”: o homem negro em cima de um cavalo (cf. Sallie Gardner at a Gallop, de Muybridge, de 1878). Num filme particularmente focalizado em cinema (pelas suas temáticas, narrativa, trabalho fotográfico, …) Jordan Peele constrói uma aventura feérica entre o western e a ficção científica, com elementos de horror e suspense e alguma comédia. Se bem que Nope será um filme alegórico e carregado de símbolos, Peele parece abandonar enfim aquele seu moralismo didático de Get Out (2017), para se lançar na elaboração de um universo construído primeiramente de conceitos cinematográficos em vez de meras parábolas sociais. E Nope é de facto aliciante tanto pela sincera entrega, sempre criativa, com a qual envereda pelas mais variadas ideias ou imagens que enuncia, como pelo cuidado que demonstra na exploração e associação das mesmas, por mais distantes que pudessem parecer num primeiro momento.
Uma Hollywood story conduzida em escala blockbuster, um (black) “cowboys and aliens”, um alargado remake do great gig in the sky de Oz: Nope parece expandir-se por uma profusão de imagens memoráveis, voire emblemáticas. Cavalos a galope sob o luar, uma mota acelerando por um campo preenchido de bonecos insufláveis coloridos, uma chuva de sangue, ou nuvens misteriosas. E claro, OJ / Daniel Kaluuya, de camisola laranja vivo “The Scorpion King 2001” (qual chave para retornar a casa, como os sapatos de Dorothy), sobre o seu cavalo, em fuga do “olho” gigante – um filme sempre a bom ritmo, muito divertido (e isso é importante) como o cinema popular o deve ser, por obrigação.
Tropeçando mesmo assim nalguns desenvolvimentos narrativos que, pelo menos numa primeira sessão, não são particularmente claros (e que terão essencialmente a ver com a tendência progressivamente extrovertida do “olho” voador), o filme transporta em permanência um subtexto (a tal metáfora) que nos é introduzido logo na críptica cena de abertura, com o chimpanzé no estúdio televisivo. A interpretação dessa metáfora nunca se oferecerá totalmente ao espectador, permitindo assim, mais do que explicar uma moral, como acontecia em Get Out ou Us, lançar uma ideia, ou antes a possibilidade de uma ideia. Nope trata primeiramente da representação de uma ameaça ou agressão a uma “casa” (a uma origem) por um grande e estranho elemento exterior, que por si terá assumido que aquele lugar lhe pertence. Mas o filme acaba por abordar também uma certa noção de agressão, ou exploração, vigente na prática de Hollywood. Sob o grande olho glutão do viewer, os olhos de Kaluuya na noite escura – como anteriormente os olhos aterrados de Ricky frente à face obscura de Gordy – são de uma profunda interrogação para com um mundo violento em face. E neste contexto, por tanto que chocante, é do lado do chimpanzé Gordy (numa analogia particularmente atrevida) que Peele parece se situar. Porque contrariamente ao verdadeiro grande agressor activo do filme, o viewer, omnipresente no rancho, e exactamente como parece acontecer com OJ (e Ricky, o tal “asian movie kid” dos anos 90), Gordy teria visto o seu espaço (ou a sua vida) atacado por um “gigante chapéu branco de cowboy” que lhe terão tentado enfiar na cabeça. E é finalmente naquele estranho momento de fúria inicial, abjecto e violento, sob o “olhar” sinistro do sapato em suspenso, que encontramos uma curiosa resposta à questão central de Nope – what’s a bad miracle ?
Mas mesmo deixando de lado leituras mais maçudas, Nope é ainda assim o grande, ou o bom, blockbuster deste Verão – esqueçamos os Mavericks. E não será de todo descabido sair da sala apenas com uma simples pergunta: se tudo não teria sido resolvido se os protagonistas tivessem finalmente obedecido às palavras de Corey Hart, evocadas em ralenti, volume no máximo. Um Nope de “sunglasses at night” seria o surpreendente remake, que nunca teremos, de Carpenter, esse grande mestre de “híbridos” western, aliens e horror.