Passei uma boa parte do filme algo distraído. Recebi uma mensagem do André a dizer que o Atlético de Madrid tinha de facto empatado, como eu apostara, e isso pareceu-me momentaneamente mais interessante do que o que se passava na tela. O romance já se concretizara, e o filme tropeçava agora pelos passos recorrentes de uma relação proibida. Breillat caracteriza habilmente Théo (Samuel Kircher) enquanto criança rebelde de olhos azuis, e Anne (Léa Drucker) como alguém que, sem ilusões, se deixa perder numa trama perigosa de onde não conseguirá sair. Mas nem o relativo descaramento de Breillat nas cenas de intimidade parecia, a dada altura, dar uma franca relevância ao filme.
Também me distraíra o facto de ter sido utilizada, pela segunda vez, a mesma canção dos Sonic Youth, e mais ainda o facto de não me conseguir lembrar precisamente de que canção se tratava. E outra coisa que ganhara relevo durante toda aquela distração era o meu espanto quando Théo, ao entregar os óculos de mergulho a Anne, ter dito “la masque” em vez de “le masque” – será que na Suíça “masque” é um nome feminino? Mas enquanto todas estas questões prosaicas me perturbavam o espírito e a leitura do filme, eis que Breillat repete, de forma crua e desarmante, a desarmante entrevista que abrira o filme. A discussão seguia agora o sentido inverso, e essa perversão parecia dar subitamente um novo fôlego a tudo o que se passava e passara até aí na tela.
Terrivelmente desenvolta, a abertura L’été dernier é notável pela destreza cinematográfica e economia de meios que Breillat utiliza para apresentar e caracterizar as suas personagens. As diferentes elipses em torno do trabalho de Anne, o tom duro com que esta se dirige à sua primeira cliente, e, num mesmo tempo, à câmara; o olhar frágil de Pierre (Olivier Rabourdin), a sua conversa cansada e medíocre em torno da “poche gauche” e da “poche droite“, a lasanha seca e o seu torso nu envelhecido; e claro, a forma ligeira e discreta como Théo, com o seu corpo adolescente de alabastro, surge no filme, e como ocupa progressivamente mais espaço em cena. O filme acaba porém por enveredar por uma parte central algo previsível, cuja banalidade Breillat parece tentar abanar com o carácter relativamente chocante das suas imagens (ou bem com o quão chocante será estas se revelarem e se encadearem com tamanha naturalidade).
Por esse centro mais “morno” do filme, duas cenas, em rima, são essenciais enquanto ecos de uma vertigem que, mais tarde, ocupará por completo aquele espaço – as duas viagens no Mercedes descapotável. Uma primeira, em família, ao som de Dirty Boots, de regresso do lago, e o tão hitchcockiano acidente de Anne. Será então no seu trecho final que Breillat oferece enfim, com crueza e urgência, de um gesto seco, uma leitura mais rica e interessante do filme no seu todo (afinal de contas, os filmes serão mesmo para se ver do princípio ao fim). E será na sua terrível conclusão, que os diferentes peões assumem enfim, com maior ou menor coragem, com maior ou menor cobardia, ou com maior ou menor desespero, a posição que, afinal, sempre fora a sua.
O assombroso plano final é o revelar de um abismo profundo que constitui o desolador ponto de fuga deste L’été dernier. Breillat desenha aqui um estranho retrato de família, uma narrativa muito sensível, sem moralismos nem sentimentalismo, mas talvez alguma perversão. E é pela sua direcção segura, de uma história cujos culpados estariam designados à partida, que, mais do que nos incomodar, o filme nos deixa finalmente, ocupados com terríveis interrogações quanto à pretensa verdade que quiséramos associar àquele romance proibido. “Tais-toi !“, um filme paradoxal. “On est une famille“, um filme impiedoso.