O novo imaginário afro-americano da exploração racial tem sido marcado sobretudo pela obra de Colson Whitehead, na literatura, e de cineastas como Barry Jenkins, com o seu óscar de melhor filme com Moonlight, Ryan Coogler, ou Ava DuVernay. Com Nickel Boys, RaMell Ross coloca-se mais em linha com esta tradição recente de reinterpretação da memória afro-americana – recuperando um trabalho de Whitehead e utilizando técnicas de narrativa não linear e montagem documental – do que por exemplo com a recente abstração perspectivista de The Zone of Interest, de Jonathan Glazer. Contudo, Nickel Boys partilha um certo afastamento da brutalidade dos acontecimentos passados na consciencialização colectiva com The Zone of Interest. Nickel Boys conta a história de um jovem negro nos anos 60 forçado a cumprir pena no instituto Nickel Academy, um reformatório para rapazes em Eleanor, na Flórida. O grau desumanizador dos abusos físicos e psicológicos que tiveram lugar nesta instituição é detalhado com o olhar meticuloso no livro de Whitehead. Contudo, para Ross, a preocupação parece estar mais na execução de um estilo de filmagem em primeira pessoa, desenhado à primeira vista para colocar o espectador na própria mise en scène e prolongar a linguagem corporal dos protagonistas pelo uso da câmara, deixando subentendido o plano dos abusos.
A consequência desta abordagem, deliberada ou não, é desde logo múltipla. Por um lado, esta ausência do olhar da câmara convoca um certo desligamento do espectador face aos acontecimentos. Ao torná-lo protagonista, Nickel Boys necessariamente desliga o foco das peripécias de Elmore, o rapaz que acompanhamos desde o início, e Turner, o amigo que conhece na Nickel Academy, centralizando o próprio espectador. Numa espécie de concepção voyeurista, somos colocados ora na perspectiva de Elmore, ora na de Turner, recriando conversas e olhares por interposta pessoa. Ainda que alienante, esta técnica não é desprovida de interesse. Um bom exemplo disso é a cena em que os dois se conhecem no refeitório: o olhar de Elmore é repetidamente desviado dos olhares dos outros, e estabelece-o como um rapaz tímido e isolado, mas também inconformado face aos seus contextos; já o de Turner é mais imediato e natural, o de alguém mais conformado e cínico, mas também mais extrovertido.
Por outro lado, a abordagem de Ross no sentido da convocatória da primeira pessoa também acaba por retirar o foco dos pormenores da envolvência. Toda a profundidade de enquadramento é retirada por Ross em prol de um conceito visual. Numa história como esta, todo o pormenor em torno do real é pouco, e esse esforço está certamente presente na tela de Ross. Contudo, quando somos confrontados com a perspectiva de primeira pessoa, as incidências estão apenas nos primeiros dois ou três metros à nossa frente. Apenas podemos apreender aquilo que está na imediação mais próxima e sempre pelo olhar seja de Elmore, seja de Turner. Também aqui esta abordagem não se encontra completamente fora de lugar. Veja-se o olhar delicado, mas audaz, da utilização da perspectiva como forma de contar a história americana dos anos 60, e particularmente a experiência afro-americana da mesma, que Ross emprega aqui nos primeiros 20 minutos na tela. Ao mesclar imagem documental com o olhar na primeira pessoa, o espectador recria inúmeras realidades por força dos passos de Elmore. Vemos o seu contacto com as ideias de Martin Luther King, que mais tarde será essencial ao seu desenvolvimento enquanto personagem, mas vemos também a inocência do seu olhar no contacto com o sexo oposto, a primeira expressão de desejo, subtil mas presente.
Mas é no contexto da brutalidade da Nickel Academy que esta abordagem de Ross é sobretudo exposta como um exercício de imagem saneada, organizada, e, em última análise, atraente. É impossível não olhar para os momentos finais de reunião entre uma mãe e o seu filho, no calor de um abraço sentido após tanto tempo de separação, e não sentir esta espécie de terceira roda, este passageiro a mais, que somos nós.
O estilo de montagem empregue por Ross convoca também uma interpretação mais nebulosa da memória dos factos em torno da Nickel Academy. Somos expostos a fragmentos, pedaços e bocados de realismo em contraposição com doses de abstração expressionista marcada tanto pela ambiguidade como pela nossa própria condição de observadores do sofrimento destes rapazes. É sobretudo por esta ambivalência de perspectivas que Ross faz com que o final de Nickel Boys ressoe com um certo impacto emocional, por entre a precipitação do confronto de realidades. Ao pragmatismo de Turner e ao inconformismo de Elmore está permanentemente em confrontação uma ideação de corda prestes a quebrar, particularmente em torno de uma examinação final do abuso a que ambos foram submetidos. Ross recria este confronto com recurso a um twist que, não obstante estafado e derivativo, se encontra pejado de propulsão narrativa. As imagens posteriores, construídas em torno da vida pós-Nickel de Elmore, filmadas agora na terceira pessoa mediante a perspectiva do próprio, são tidas de acordo com o confronto com a memória. Nunca abandonamos verdadeiramente a abstração que a formalidade de Ross convoca, mas sentimos a visceralidade e a vitalidade de uma fuga necessária e ansiada.