Nelson Cavaquinho, de Leon Hirszman : Entre o Humano e o Divino

Enrico ManciniAbril 26, 2024

O ensaio crítico que segue é do curta-metragem Nelson Cavaquinho, de Leon Hirszman. A ideia aqui é ir de encontro corpo a corpo com o texto fílmico. Em outra versão, dediquei um parágrafo à localização histórica do curta na filmografia do diretor e do cinema brasileiro, porém percebi como uma análise pormenorizada do filme é autossuficiente para os fins do trabalho proposto. Dito isso, vamos à análise. Na versão disponível temos os créditos iniciais do filme sem trilha sonora, os letreiros brancos se destacam no fundo preto, assim como todos os outros restaurados no “Projeto Leon Hirszman”. O título, apesar de também branco, aparece em outra fonte, e a partir de sua aparição, a trilha sonora é preenchida por um white noise.

Os créditos dissolvem e criam meio segundo de escuridão (imagem 01) o que gera contraste intenso à primeira imagem do curta: um fundo branco com o homem que dá título à obra em um plano fechado (imagem 02). Nelson Cavaquinho aparece de perfil, com os olhos perdidos, face cansada e suada, e cigarro na mão. Junto com o primeiro plano, surge um acorde que irá iniciar sua música “Risos e Lágrimas”, ou seja, o contraste – quiçá oposição – visto na imagem (preto-branco) é também refletido na trilha sonora (white noise-música). Tudo concatenado em um corte seco operado por Eduardo Escorel.

imagem 01 e 02

 

O primeiro plano do filme já é um convite à minha análise. Estamos no vácuo preto, na tensão entre introdução e filme, e somos impactados pela figura e música do sambista em meio ao fundo abstrato. Esse ambiente intangível representado na fotografia de Mário Carneiro me sugere uma certa sacralização da figura, retornarei a esse ponto no decorrer do texto. Aliás, me desponta uma análise metafórica (e não especularei muito, porque acredito ser demasiada conjectura), porém acho curioso como ele segura o cigarro com os dedos no formato que se seguraria uma palheta instrumental – a própria composição enquadra cuidadosamente a mão. Corte para o segundo plano do filme, ainda fechado em Nelson, mas agora levemente mais frontal (imagem 03). Aqui o ângulo é mais plongèe, e no fundo, mesmo que ainda desfocado, já distinguimos formas. Se o primeiro plano parece sacralizar, no segundo vemos os cabelos brancos, as rugas destacadas, e até uma mosca invade o pró-fílmico. Nelson Cavaquinho é humanizado.

imagem 03

 

O samba é essencialmente a voz do morro, e Hirszman parece identificar no sambista um reflexo do povo. Conhecer Nelson é conhecer a realidade brasileira, ele é tomado como fio condutor para desaguar no tema latente do filme: o povo brasileiro. Em um dos enquadramentos mais bonitos da história do cinema brasileiro, vemos em primeiro plano Nelson Cavaquinho, contando sobre sua infância, enquanto um homem escuta através da janela, e um menino empina pipa no telhado de uma casa vizinha em profundidade de campo. (imagem 04)

imagem 04

 

O que me chama atenção é a forma como o povo é representado. Existe uma crítica à condição do trabalhador, em que Cavaquinho parece ser mediador, especialmente quando a câmera entra em sua casa e mostra sua precária condição de vida – dos poucos momentos em que o áudio retorna ao white noise, dando densidade às imagens. Porém, o povo é alegre, sem dúvida marginalizado, mas feliz. Essa representação mais alegre do povo partindo do narrador (me refiro a “narrador” da mesma forma que Ismail Xavier faz em Sertão Mar) parece estar diretamente ligado à figura de Nelson Cavaquinho, e aqui é o ponto de inflexão da minha análise.

O décimo quarto plano do filme – cerca de oito minutos de rodagem – é um dos únicos em que Nelson Cavaquinho não aparece (a única outra exceção é o décimo sexto plano, quando a câmera, que parece apaixonada, persegue uma jovem), e passeamos por uma feijoada de rua. Nesse momento é quando ele diz em voice over que o samba mais sincero que ele já escreveu é “Caridade”. O povo sendo mostrado, e ele canta sobre caridade. Em uma fala no decorrer do filme, Nelson diz “Tristeza só nas músicas”, mas o teor melancólico de seu discurso e de sua figura o contradiz. Nelson Cavaquinho parece sempre bêbado, mas mais que ébrio, embriagado de tristeza. Em seu tom soturno, o contraste dele junto ao povo parece com o contraste que apontei na transição feita dos créditos para o primeiro plano. Meu ponto aqui é simples: a representação de Nelson Cavaquinho é cristã, religiosa. O músico fala durante todo o tempo sobre a tristeza de sua vida, de como sofreu, é martirizado pelo filme. O primeiro plano mostra a figura sacralizada, no segundo ele é humanizado, e parece que todo o percurso do filme busca essa nova ascendência, que será alcançada na conclusão. O último bloco do filme começa, na minha visão, a partir do momento em que a câmera entra na casa dele, plano já mencionado. Ali vemos Nelson humano, religioso, quase miserável. No plano seguinte, vemos um bar e temos o único zoom-in do filme (Imagem 05 e 06) que é quase litúrgico, todos em silêncio e voltados para Nelson e seu cavaquinho. A letra anuncia a partida.

imagem 05 e 06

 

Até chegarmos no último plano do filme, único grande plano geral, que é apoteótico (imagem 07). Aqui, parece que o bar não é mais bar, mas um espaço suspenso no tempo, é uma imagem quase celestial. Junto a Nelson Cavaquinho, pela primeira e única vez, as pessoas fazem coro cantando juntas a ele. Como se o ciclo houvesse terminado, o escuro volta a tomar conta na tela até que um letreiro anuncie o fim (imagem 08). Nelson volta ao estado divino, e as pessoas que cantam com ele no último plano continuarão levando sua música consigo. O martírio foi concluído, e os sorrisos permanecem.

imagem 07, 08 e 09

 

Enrico Mancini