Naufragio (1978), de Jaime Humberto Hermosillo – A Cidade e o Mar

Bruno VictorinoMaio 2, 2025

O Cinema e Conrad, Conrad e o Cinema é um ciclo da Cinemateca Portuguesa dedicado a Joseph Conrad (1857-1924), escritor britânico de origem polaca, cuja a obra foi frequentemente adaptada ao cinema. Programado por José Manuel Costa, antigo diretor da Cinemateca, importa determo-nos nas suas palavras: “(…) está explicada a dimensão assinalável do ciclo, que nasce para dar a conhecer a longa atração do cinema por Conrad e as etapas e veredas da resposta a esse desafio. Essa atração não é só visível, claro, nas adaptações de obras específicas, sabendo-se a que ponto, nestes casos, o escritor até poderá estar mais presente em filmes em que nenhuma obra foi adaptada.(…)” E é precisamente o caso de Naufragio, livremente baseado em Tomorrow, uma das histórias da coletânea Typhoon, publicada em 1903.

Naufragio inicia com um plano aproximado do mar revolto. De seguida, surgem no ecrã imagens aéreas do centro da Cidade do México, onde podemos ver uma série de arranha-céus amarelos idênticos (semelhança que virá mais tarde a ser utilizada como gag). O ruído das ondas do mar permanece nas imagens urbanas. Há algo de experimental na forma como os prédios são filmados, remetendo-nos, inclusivamente, ao cinema de vanguarda do realizador Ernie Gehr. Esta dialética entre o mar e a cidade é central no desenrolar da narrativa, ainda que a sua materialização seja, no mínimo, peculiar.

Personificando o mar temos Miguel Ángel, jovem marinheiro ausente há 6 anos, que deixa a sua mãe em obsessiva e permanente espera pelo seu regresso. Todas as noites Amparito prepara a cama no quarto do filho, na esperança que seja nessa madrugada que Miguel retorna a casa. O realizador Jaime Humberto Hermosillo faz-se valer de um efeito puramente cinematográfico, o peso que a ausência de um personagem carrega nos que subsistem. No caso, o paradeiro de Miguel Ángel é incerto, tanto pode ter falecido como andar a vaguear de barco pelo mundo, mas a força da sua presença espectral em nada fica a dever a Laura (Otto Preminger e, porque não, David Lynch), Angélica (Manoel de Oliveira) ou Rebecca (Alfred Hitchcock).

Amparito vive com a jovem Leti, a quem aluga um quarto. A cumplicidade entre ambas faz com que a própria jovem anseie pela chegada de Miguel Ángel, alguém que nunca conheceu. Diariamente ouve falar sobre ele e olha para as fotografias e pertences que abundam no seu quarto tornado altar, onde podemos também ver afixados quatro pósteres do filme Lord Jim, de Richard Brooks, baseado no livro homónimo de Conrad, que narra precisamente a história de um jovem desventuroso marinheiro. Leti acaba por se apaixonar pelo espectro de Miguel, tal é a intensidade e virtuosismo da imagem que projeta no seu imaginário.

Num momento em que a esperança aparentava estar perdida o nosso marinheiro enfim aparece. E corresponde em pleno à imagem idealizada. Amparito está no hospital, mas tanto o espetador como Leti são compensados pela espera. Hermosillo encena uma noite perfeita para o par, que inicia com uma das cenas mais fascinantes do filme, onde Leti contempla Miguel Ángel a dormir no quarto da mãe e a montagem intercala o crescendo de desejo e tensão sexual (preponderante a vários níveis durante Naufragio), com planos do rosto de Leti, do corpo do marinheiro, da imagem de Cristo na cruz e dos objetos pertencentes a Amparito, que toma o lugar do filho como figura fora de campo. 

Mas rapidamente o sonho vira pesadelo. No final, o ciclo completa-se. O mar, que inicialmente vemos separado da cidade, apenas aproximado pelo milagre da montagem de imagem e som, irrompe pelas janelas do apartamento. É a tragédia da comunhão entre a natureza e o concreto, a ilusão e a realidade, o selvagem e o progresso, o erotismo e o assédio, o milagre e o pecado. Naufragio é um daqueles filmes que nos compelem a escrever, na vã tentativa de, por um lado, expurgar a complexidade dialética que as suas imagens suscitam e, por outro, sinalizar veementemente a existência de uma obra-prima que permanece anónima e por descobrir. Mas deixemos que as imagens falem por si.

Bruno Victorino