Napoleão – Don’t Cry for Me, Josefina

No discurso corrente, a noção de “escala” está de tal maneira colada à obra de Ridley Scott – lembramo-nos porventura de um filme seu que não tenha sido publicitado como “épico”? – que adquiriu contornos de lei. Sabemos, desde há décadas, que dele podemos esperar filmes longos (mas sempre muito movimentados), planos gerais ambiciosos, batalhas com muitos figurantes, personagens de estatuto semidivino ou larger than life, cenários espaciais, enfim, espetáculos de grandes proporções. A verdade é que se “escala” e “épico” dizem muito pouco sobre o real valor de um filme ou de um cineasta, no caso de Scott – um realizador de estúdio sem grandes traços autorais distintivos – os vazios chavões publicitários estão perigosamente próximos das virtudes totais de um catálogo filmográfico que é tão tematicamente versátil como qualitativamente inconsistente. Isto para dizer que não se adivinhando, de Napoleão, mais do que um divertimento, a expectativa principal era a de perceber se este novo épico penderia para o montículo de trabalhos competentes, ou para o de abomináveis, que Scott produziu nos últimos 20 anos.

Depois das costumeiras linhas orientadoras em ecrã negro (“Paris, 1789” e mais uns etceteras de contexto), mergulhamos no biopic. Encontramos Napoleão, ainda jovem oficial do exército, num dos eventos de charneira da acidentada transição para a República francesa: a decapitação de Maria Antonieta. Em conversas de bastidores, que passam em tempo record, é-nos dado a conhecer um lado reservado, aparentemente astuto e ambicioso de Napoleão, o guerreiro. De modo formulaico, seguimos para a primeira batalha, em Toulon, onde assistimos ao primeiro grande feito de guerra, numa narrativa que parece seguir o trajeto, também ele formulaico, de ascensão e queda, exibido no habitual tom austero da ficção histórica. Mas depois Josefina entra em cena e rapidamente percebemos que vamos ter dois filmes num, ou seja: dois tons distintos, a pintar dois lados quase opostos de uma personagem supostamente complexa. Na presença de Josefina, Napoleão, o marido, revela-se inseguro, infantil, sexualmente disfuncional e controlador, à medida que seguimos os eventos sórdidos da sua vida conjugal. Havia potencial para um retrato interessante e algo inusitado, dentro do género, mas Scott presenteia-nos com uma inépcia quase amadora no equilíbrio entre a solenidade dos momentos de batalha e a (primária) comédia do drama conjugal, que começa a estender-se progressivamente a uma sátira política vazia e inconsequente, votada a denunciar – com a confiança de quem fez uma monumental descoberta – que as grandes decisões históricas, as que mexem com a vida de milhares de seres humanos, se resumem ao ego dos líderes.

No esforço de ridicularizar ao máximo uma Grande Figura, assistimos a uma sucessão de momentos, quais sketches humorísticos, em que Napoleão foge, cai, é invariavelmente estúpido, incompetente ou refém de um estupor de tesão. Todos eles demasiado grosseiros, todos eles demasiado repetitivos para nos rirmos com eles (em vez de rirmos deles), ou para estabelecer alguma ligação à política contemporânea (como o momento do Golpe de Estado parece querer indiciar). Uma caracterização absurdamente boçal que retira qualquer tensão à dinâmica entre Napoleão e Josefina – uma vez que é impossível sentirmos a verdadeira ameaça de uma relação abusiva, quando o perpetrador é uma caricatura ambulante, interpretada por uma autoparódia de Joaquin Phoenix – e demasiado monótona para permitir qualquer avaliação profunda sobre a psique destas personagens.

Por outro lado, os momentos de batalha não respiram o suficiente para que sintamos qualquer gravidade, para que mergulhemos nalgum tipo de espetáculo. Os nomes, as datas e os locais sucedem-se em catadupa, como quem tem pressa de memorizar toda a matéria de História antes do exame, reduzindo o tal arco narrativo de ascensão e queda do estratega militar a pouco mais do que bullet points de uma entrada de Wikipedia, dos quais só é possível concluir que “Napoleão costumava ser mais esperto do que todos os outros generais, até ao dia em que deixou de ser”. O que o distinguiu dos outros até aí? Por este filme, nunca saberemos.

Todo o desequilíbrio tonal é exacerbado por uma montagem absolutamente desastrosa, onde cada cena parece truncada, com pressa de chegar ao próximo evento histórico ou à próxima discussão do casal, onde o ritmo é quebrado pela manifesta falta de soluções de continuidade (o que raio são aqueles fade to white, a que se seguem saltos temporais de anos?), por uma cinematografia desequilibrada, que oscila entre o tableau de contrastes acentuados e cores vívidas, nas cenas de interiores, e o filme do History Channel, nas cenas de batalha (cores baças, imagem demasiado escura, ou ocasionais brancos explodidos, e CGI datado) e, enfim, por uma realização em piloto automático, que falha, em toda a linha, o propósito que se propôs cumprir. Chegamos ao fim deste filme histórico sem qualquer aporte ao nosso conhecimento sobre o homem, o estratega ou o líder (e muito menos sobre Josefina); sem qualquer reflexão sobre sistemas de governação, a máquina de guerra ou, já agora, sobre casamento, sexo ou amor. Problemas estruturais que, segundo alguns, ficarão resolvidos num já previsto director’s cut de 4 horas. Perante tal demonstração de fé, só nos podemos curvar. É que de napoleónico este filme só tem as proporções do desastre e ninguém merece aguentar mais 1 segundo que seja deste suplício.

Gil Gonçalves