“Não aguento mais, Sr. Vladimir” (Angela Răducanu)
“Ai aguenta, aguenta!” (Fernando Ulrich)
A resposta ao desabafo de Angela, protagonista de Não Esperes Demasiado do Fim do Mundo, não é dada pelo presidente do BPI, naturalmente, nem se refere às medidas de austeridade que o governo da PàF mantinha em Portugal, no ano de 2012, seguindo a cartilha da troika. Mas este crossover não seria descabido, dadas as intenções temáticas e provocadoras, bem como as anárquicas opções estéticas e estruturais de Radu Jude para a sua 12ª longa metragem. Esta sátira política ao projeto europeu e ao mundo contemporâneo – provavelmente a mais completa e conseguida dos últimos… 10 (15, 20?) anos – faz pontaria à História da Roménia, à influência das imagens na nossa perceção do mundo, às relações entre estados-membro da UE e também à atomização e anomia sociais que se vivem um pouco por todo o lado. Tão ambicioso e abrangente quanto direto e focado, este é o filme urgente, punk e politizado que já não esperávamos ver.
As notícias do fundo chegam-nos quando o signo máximo do nosso tempo (um telemóvel) dispara o alarme às 5:50 da manhã, roubando protagonismo aos outros elementos dispostos na mesa de cabeceira: uma garrafa de cerveja, um copo de vinho quase vazio e dois clássicos da literatura – Tom Jones, de Henry Fielding, e À Sombra das Raparigas em Flor, de Marcel Proust (o segundo volume de Em Busca do Tempo Perdido). Assim nos é apresentada Angela Răducanu, assistente de produção numa empresa de audiovisual de Bucareste, que acorda a contragosto, nua, para mais um dia de labuta. As suspeitas de um capital cultural que ficará por cumprir no estertor do mundo contemporâneo chegarão certamente ao espectador acompanhadas de um auto-reconhecimento: afinal o telemóvel será, para o bem e (sobretudo) para o mal, o companheiro mais próximo de uma heroína sem tempo para ler. É dele que recebe chamadas constantes do patrão e indicações de GPS para as múltiplas viagens que tem de fazer, de forma a cumprir as tarefas, de trabalho e não só, que se vão acumulando ao longo da sua interminável jornada laboral. É também através do telemóvel que acede ao TikTok, onde encontra o seu único escape. Munida de um filtro facial grotesco, Angela grava vídeos satíricos em nome do seu alter ego, Bobiţă, uma caricatura brejeira, misógina e verborreica, que terá como grande inspiração Andrew Tate – porta-estandarte da masculinidade tóxica na Internet (recentemente detido e condenado, na Roménia, devido a acusações de violação e tráfico humano).
Estes escapes da protagonista para o mundo virtual são, inicialmente, apresentados como a imiscuição de um universo paralelo no da narrativa “real”. Não só por surgirem sem explicação, mas também por serem filmados nativamente num telemóvel e a cores – em contraste com o preto e branco escuro, assético e depressivo com que as comutas de Angela são exibidas, em estilo semi-documental. Aqui temos um primeiro vislumbre do formalismo mutável (e notável) que permitirá a Jude expandir o seu universo crítico. Neste caso, a abordagem “empírica” do imediatismo digital ajudará a melhor ilustrar as suas preocupações para com um presente saturado de imagens degradadas, e altamente manipuláveis, que deturpam quotidianamente a nossa mundividência. Será também por aqui, contudo, que entreveremos uma outra linha definidora deste filme: a empatia. Ainda que veja nesta forma “degenerada” de criação um potencial destrutivo e alienante, o cineasta compreende (e procura mostrar) o porquê de alguém com impulso criativo e olho vivo para os absurdos do dia a dia recorrer a este último reduto, quando nada nem ninguém lhe oferece, no mundo real, qualquer estímulo ou plataforma para alimentar o seu talento. Não é por acaso que Angela aproveita todos os momentos em que apanha ideias no ar para gravar estes vídeos, independentemente de estar sem tempo ou energia – é uma necessidade de criação, não apenas um desabafo. De resto, a personagem funcionará como lugar-tenente da agonia de Jude, na narrativa – alguém que faz os vídeos como “brincadeira” para “não enlouquecer”, mas que acredita que as pessoas serão “suficientemente inteligentes” para perceberem a piada, em vez de a recriminarem pelo mau gosto das tiradas de Bobiţă.
Mas nem só de imediatismo ou do presente vive este filme. É, aliás, da assunção de que o cinema pode unir e pertencer a vários tempos – bem como da que houve um caminho histórico que nos trouxe ao estado a que chegámos – que nasce o gesto formal mais radical de Radu Jude, neste Fim do Mundo. Abrindo a porta a um segundo universo paralelo, este em registo de metacinema, o autor intercala a narrativa a preto e branco de Angela com excertos generosos de um outro filme a cores – que reenquadra e reaproveita, retardando o ritmo, efetuando crops aos planos, ou ainda recorrendo a alterações de profundidade de campo, de modo a enfatizar detalhes preciosos. Trata-se de Angela Merge Mai Departe (Angela Segue em Frente), de Lucian Bratu, lançado em 1981. Igualmente centrado numa mulher chamada Angela, uma taxista interpretada por Dorina Lazăr, é tanto um retrato (naturalmente oblíquo) da Roménia do regime de Ceauşescu, como uma abordagem dialética que questiona se a Roménia de hoje, assolada pelo mesmo trânsito caótico, a mesma masculinidade tóxica e o mesmo desnorte (talvez maior, porque mais disperso e difícil de explicar), se poderá considerar um lugar melhor, depois da queda do bloco soviético e do acolhimento no ocidente, nomeadamente através da adesão à União Europeia. Não se trata de dizer que “antigamente é que era bom” – aliás, duas ou três pequenas histórias são suficientes para mostrar qual a posição de Radu Jude sobre o regime anterior. Trata-se, sim, de um questionamento necessário (e raramente encontrado no cinema europeu atual) sobre a montanha de promessas – de liberdade, prosperidade e inovação – que, para tantos países da periferia, continua a parir ratos.
Neste cruzamento de temporalidades, Jude constrói um filme que é tão agressivamente do presente quanto historicamente fundamentado e denso na sua análise. As referências rápidas a eventos mundiais da atualidade (guerra da Ucrânia, violência armada nos EUA, Andrew Tate) situam a Roménia no imbróglio da presente globalização, ao mesmo tempo que as histórias do passado, que enformam os encontros e conversas das duas Angelas, pintam os traços distintivos da sua sociedade, das dores e saberes específicos das suas gentes. Jude inunda os diálogos de uma miríade de reflexões, piadas e referências que vão de Marx a Anthony Bourdain, de Antonioni a Uwe Boll (que aparece no filme, a fazer de si próprio), de Casablanca ao Pornhub. Uma nebulosa de temáticas que emula a fragmentação da vida na Internet, sem nunca perder o foco nos alvos para os quais reserva os golpes mais implacáveis: a crescente precarização das condições laborais, as indignidades desumanizantes de uma farsa chamada gig economy, a hegemonia de uma linguagem publicitária, que permite às empresas e governos distorcer e esvaziar qualquer assunto da sua real importância, a desmontagem e venda da Roménia para peças às economias mais poderosas da Europa, a agressividade e polarização das contendas nas redes sociais, uma vivência cada vez mais marcada por estímulos alienantes, a ausência de tempos reais de lazer e a crescente perda de laços afetivos. Não obstante os seus momentos de grande diversão e absurdismo, é de um lugar de profundo desespero e indignação que este Fim do Mundo denuncia a hipocrisia, venalidade e cobardia da nossa era.
Tanto os alvos como o repúdio ficam muito claros no enredo central. Pensemos na tarefa do dia de Angela e nas suas implicações. Ela é encarregada de gravar alguns funcionários de uma fábrica romena que foram gravemente feridos em acidentes de trabalho. A produtora para a qual trabalha está a fazer um vídeo de medidas de segurança laboral para a multinacional austríaca que detém a fábrica. Ao funcionário selecionado é prometido um prémio em dinheiro e a oportunidade de contar a sua história para a câmara, desde que apele aos seus colegas para seguirem os protocolos de segurança estipulados pela empresa. E aqui é que está o busílis da questão. É que este apelo corresponde a uma assunção de culpa por parte da vítima, e consequente desresponsabilização da entidade patronal. Como atestam as duas aparições de Nina Hoss (que interpreta a diretora de marketing austríaca) – uma numa reunião de Zoom, para escolher o candidato mais apelativo para o vídeo; outra num diálogo com Angela, em que diz nada saber sobre a devastação que a sua empresa causa nas florestas romenas, porque não é o seu departamento – tudo não passa de um exercício de proteção corporativa, que se vai revelando de forma progressivamente mais escabrosa, até à devastadora e titânica cena em que culmina Não Esperes Demasiado do Fim do Mundo.
Neste longo plano de 35 minutos, filmado com câmara fixa, Jude troca a dispersão episódica do road movie de Angela por um estruturalismo rigoroso. A tragédia pessoal de Ovidiu (Ovidiu Pîrșan) – o trabalhador escolhido para o vídeo – cruza-se com uma caótica comédia de falhanços, numa analogia perfeita para a degenerescência cultural e humana em que todos vivemos. No set de gravações, Ovidiu, que sofreu um grave traumatismo craniano, entrou em coma e agora usa uma cadeira de rodas, aparece em plano com a sua família. Perante os semblantes desolados de mulher, filha e mãe, conta a sua história para a câmara, mas as intervenções de dirigentes da fábrica, dos criativos da produtora e até do CEO da multinacional austríaca obrigam a uma enormidade de takes, que vão diluindo progressivamente a verdade. A cada take, detalhes potencialmente incriminadores para a empresa são cortados e o doloroso testemunho humano é transformado numa anódina amálgama de chavões corporativos.
A falta de Angela, que mal aparece neste capítulo final do filme – fora quando entra ocasionalmente em plano, entre takes da gravação – é amargamente sentida. Sem ela, esvai-se o farol humano e ficamos entregues à barbárie do business as usual, que esmaga os mesmos de sempre. Apenas ouvimos as suas cada vez mais frequentes (e frustradas) transformações em Bobiţă. As suas tiradas imaginativamente misóginas, putinistas e boçais mal ocultam o amargo de boca que sente, juntamente com o espectador, ao presenciar a injustiça com que o mundo daquela família se desmorona. Também ela queria sair deste filme.
Entre muitas outras coisas, este desolador momento final permite apreciar retroativamente a performance de Ilinca Manolache, como Angela. É nela que assentam todo o calor e decência que suavizam as pesadas realidades das pessoas com quem se cruza. Subitamente, lembramo-nos das piadas ordinárias que conta, de forma espontânea, e entendemos a diferença que fazem, ainda que por breves instantes, na vida dos trabalhadores que foi encarregada de convencer; do dinheiro que oferece a uma mulher sem-abrigo, seguido da reprimenda que dá ao trabalhador do restaurante que a enxota, entre outros momentos. Independentemente de todas as suas dificuldades e defeitos, Angela dá de si a um mundo que lhe dá muito pouco.
Além de toda a originalidade formal, competência técnica e inteligência programática com que Radu Jude erige a sua sátira, fruto de um claro (e salutar) desespero, há dois grandes fatores que a distinguem das demais e a elevam a um patamar especial. Um é a clareza de espírito que recusa (e até parodia) o espalhafato de buzz words, tendências da Web ou imagens chocantes a que muitos conteúdos se entregam para criticar a farsa em que todos vamos definhando. O fim do mundo já tem tanto de ridículo, que basta descrevê-lo. Outro é a sua genuína preocupação para com as Angelas e Ovidius deste mundo. Para lá de todo o humor cáustico e visão azeda da atualidade, há momentos de uma comovente generosidade, que provam que este não é um filme cínico, feito à medida do reconhecimento em festivais de cinema e pouco mais. É um filme de pessoas. Na retina ficam a longa e silenciosa montagem das cruzes que ladeiam uma estrada romena mal projetada, em honra dos que lá morreram em acidentes de viação, e o sentido de parentesco que se estabelece quando a protagonista encontra a outra Angela (a do filme dos anos 80), agora idosa e ainda interpretada por Dorina Lazăr. A transferência desta personagem de um universo fictício para outro permite uma ligação fugaz, mas inefavelmente preciosa, que remete para a solidariedade intergeracional que a Arte, e o cinema em particular, proporcionam.
Gil Gonçalves