John Carpenter foi o objecto do mais recente “Histórias do Cinema” na Cinemateca Portuguesa. No seguimento da entrevista de André Filipe Antunes ao crítico/historiador Jean-Baptiste Thoret, que organizou e apresentou o ciclo, a Tribuna dedica um artigo a esse grande autor – John Carpenter através dos seis filmes escolhidos por Thoret.
Assault on Precint 13 1976
O Mal manifesta-se de várias formas no cinema de John Carpenter. Pode vir do outro mundo (The Thing), pode encontrar-se dissimulado (They Live), ou pode surgir organicamente (Assault on Precinct 13). A segunda longa-metragem do cineasta norte-americano apresenta como característica, singular na sua obra, o facto de não possuir qualquer elemento fantástico. Mas não é por estar mais próximo da “realidade”, que o Mal em Assault on Precinct 13 é menos violento, implacável ou perturbador. O inicial pacto de sangue entre os membros do gangue tal auspicia, e a forma como, despudoradamente, um dos seus elementos tira a vida a uma inocente criança enquanto compra um gelado, num crescendo de tensão magistralmente encenado por Carpenter, plenamente o confirma. É um mal sem rosto ou empatia, propositadamente unidimensional, que vem abalar o status quo e as estruturas sociais, materializadas pela Esquadra de Polícia e pelos personagens que, circunstancialmente, lá se encontram.
Embora não nos encontremos em território fantástico, o cerco montado pelo gangue à Esquadra assume contornos quase sobrenaturais, pelo modo como, subitamente, oculta qualquer vestígio do intenso tiroteio que ali se desenrola. Carpenter faz um uso extraordinário da mise-en-scène durante este confronto, socorrendo-se de vários planos ponto de vista do interior da Esquadra que alternam entre os avanços imparáveis do gangue armado e coberto por carros, e planos onde toda esta ofensiva desaparece, suspensa no tempo e no espaço. É precisamente este trabalho com o fora de campo, característico do cineasta, que potencia a inquietação do espectador. Carpenter opta pela contenção em detrimento da ação explosiva e descontrolada habitual neste tipo e género de produções hollywoodianas. Os próprios membros do gangue utilizam silenciadores nas suas armas. É como se a operação ofensiva do gangue sobre a Esquadra estivesse plenamente alinhada com a operação cinematográfica de John Carpenter.
Esta operação tem como mote fundamental a defesa do espaço à ameaça externa. É nesse microcosmos que Carpenter reencena o seu Rio Bravo, através de um western urbano que se faz valer dos códigos do género, atualizando-os para uma época e espaço geográfico diferenciados. O que de mais radical tem este experimento do cineasta é a escolha dos personagens que derradeiramente lutam pela defesa daquele espaço desolado mas, ainda assim, último reduto do poder do estado no território: um polícia (Ethan), uma secretária (Leigh) e um assassino condenado (Wilson). As convenções sociais suspendem-se em nome da entreajuda e camaradagem necessárias para fazer face à ameaça externa. No final, eliminada a ameaça, o status quo prepara-se para regressar. No entanto, a tentativa de algemagem do assassino Wilson é evitada por Ethan, que, de seguida, prontamente lhe diz: “It would be a privilege if you’d walk outside with me.”. Carpenter coloca em paridade polícia e assassino, proporcionando ao segundo um último momento de glória antes do inescapável regresso à normalidade, suspendendo a ficção por mais uns instantes até rolarem os créditos finais.
por Bruno Victorino
Halloween 1978
Há algo de hipnótico em Halloween (1978). Sentimo-nos, em partes iguais, mesmerizados e tensos desde os primeiros acordes da icónica banda sonora. O filme não perde tempo com backstories elaboradas — sabemos apenas que, numa noite de Halloween, um menino de seis anos matou a irmã à facada. Quinze anos depois, esse já-não-tão menino, Michael Myers, escapa do hospital psiquiátrico e regressa à sua terra natal, onde planeia continuar a matança que começara. E assim plantamos os pés em Haddonfield, um subúrbio americano que poderia ser qualquer um, mas que está prestes a se tornar mais infame. O que torna Halloween tão especial não é a premissa, que à primeira vista parece banal, mas sim a forma como John Carpenter a executa.
Michael Myers não é um assassino comum. Carpenter filma-o como uma força imparável, um vulto que paira nas sombras, que ora surge, ora desaparece com uma cadência mecânica desconcertante. O filme nunca tenta explicar demasiado — Myers é o mal puro, sem motivações, sem traumas para explorarmos, para o percebermos. Ele apenas existe. E isso é mais assustador do que qualquer explicação.
O que Carpenter fez com Halloween foi definir um género. Os slashers já tinham dado sinais de vida com filmes como Psycho (1960) e Black Christmas (1974), mas foi Carpenter quem realmente refinou o slasher e estabeleceu as suas regras fundamentais. Pegou na ideia do assassino mascarado e implacável e deu-lhe uma identidade visual tão eficaz que tudo o que veio depois bebeu diretamente da sua abordagem. Até o conceito de final girl encontrou em Laurie Strode a sua personificação definitiva. Não foi o primeiro filme a apresentar uma sobrevivente icónica, mas foi Halloween que consolidou a final girl como a jovem inteligente, responsável e astuciosa capaz não só de fugir e sobreviver, mas principalmente de fazer frente ao assassino até ao inevitável confronto final – um arquétipo que influenciou quase todas as protagonistas femininas dos slashers que se seguiram.
Em Halloween, a tensão não vem do sangue (há pouco, na verdade), mas da mise-en-scène, da forma como a câmara nos transforma em cúmplices involuntários do olhar de Myers. É um filme de terror que entende que o verdadeiro medo não está nos berros, nem no sangue, mas no silêncio, naquele momento de inquietude em que sentimos que está alguém atrás de nós… e talvez esteja mesmo.
por Carla Rodrigues
The Thing 1982
1982 foi um ano lendário para o cinema. Ao longo dos meses, os espectadores puderam ver nas salas One From the Heart, Fitzcarraldo, Rocky III, Poltergeist, E.T., Tron, Fast Times at Ridgemont High, Rambo: First Blood e Tootsie, entre outros. Mas foi no fim de semana de 25 de junho que se viveram momentos históricos. Nessa altura, estrearam duas obras-primas que redefiniram a ficção científica e influenciaram gerações futuras: Blade Runner, de Ridley Scott, e The Thing, de John Carpenter. Carpenter, que sempre se viu como um realizador de aluguer, foi desde cedo influenciado por mestres como Hitchcock, John Ford e, sobretudo, Howard Hawks. Foi precisamente deste último que tirou inspiração para recriar um clássico de 1951: The Thing from Another World.
Nesta versão, Carpenter transporta-nos para um posto avançado na Antártida, onde um grupo de cientistas, incluindo Kurt Russell e Keith David, se vê cercado por uma criatura alienígena capaz de assimilar e imitar organismos vivos. O resultado é um slasher psicológico num deserto de gelo, pontuado por efeitos práticos que parecem saídos de um pesadelo, uma banda sonora arrepiante de Ennio Morricone e uma localização tão isolada que amplifica a sensação de claustrofobia e terror existencial.
No entanto, é a paranoia crescente entre os cientistas que faz deste filme uma obra-prima. A famosa cena do teste do sangue, filmada com close-ups meticulosos e movimentos subtis da câmara, demonstra a mestria de Carpenter na construção de suspense e antecipação. Na estreia, The Thing foi um fracasso comercial e crítico, ofuscado pelo fenómeno E.T. mas o tempo fez-lhe justiça. Com o boom do VHS, o filme tornou-se uma referência absoluta do terror e a joia da coroa da filmografia de Carpenter.
por Francisco Sousa
Christine 1983
No verão de 1983 é lançado um filme sobre um carro. Nele, Tom Cruise faz de jovem adolescente filho de pais ricos nos subúrbios de Chicago que acidentalmente deixa que o Porsche do pai vá parar ao fundo do lago Michigan. Para pagar os estragos, sem que os progenitores fiquem a par, Cruise elabora um esquema de proxenetismo para poder manter a sua imagem de wonder boy prestes a entrar em Princeton. Risky Business foi um sucesso porque veio na corrente americana dos tempos: exalava iniciativa individualista e intrepidez pessoal na busca de objectivos pessoais, ao mesmo tempo que o fazia sob o pano de fundo de um subúrbio afluente e atraente a todos os títulos.
No inverno de 1983, John Carpenter levava às salas o seu filme sobre um carro. No argumento de Bill Phillips baseado no livro de Stephen King, Christine é a todos os títulos uma desconstrução iconoclástica do mito consumista americano e da romantização da juventude boomer dos fifties. O cinema de Carpenter tem sempre esta relação ambivalente face ao passado. A uma pulsão fundamentalmente desconstrutora surge sempre associado um gosto pelo espectáculo muito própria dos clássicos. Em Christine, essa vertente surge seja por intermédio da luz encadeadora dos faróis dos carros, seja pela perseguição febril ao bully Repperton (William Ostrander). O carro em si é o objecto de obsessão por excelência, o símbolo do consumismo americano que é destruído ao som de “rock and roll is here to stay“. Dá para imaginar o terror na cara dos amantes da cultura adolescente romantizada por George Lucas em American Graffiti ou mesmo nos filmes de John Hughes que lidam com a adolescência individualista dos anos 80.
Mas Christine é também algo mais do que a simples iconoclastia que a afirmação de Alexandra Paul de que “I hate rock and roll” aqui sentencia. “I finally found something uglier than I am“, diz Arnie, quando tenta colocar em palavras o seu amor por um carro abandonado. Christine é a extensão do ego ferido de uma masculinidade muito própria da cultura nerd dos anos 80, algo que Arnie vê não apenas como objecto de amor e obsessão, mas sobretudo como algo que faz parte de si. E nesse aspecto está a maior revolta de Carpenter, não contra os clássicos mas sobretudo contra a cultura dos tempos. A obsessão pelo carro, pela posse e pelo objecto, nas palavras de Arnie, destrói tudo.
por Hugo Dinis
Starman 1984
Em 1984 Carpenter já era um autor consolidado no cinema americano, com Halloween e The Thing, provavelmente os seus dois filmes mais icónicos, já no bolso. Starman é um produto de meia carreira, e o mais educado da filmografia do realizador. Fugindo do terror e da acção, Carpenter apresenta um filme cândido, fofo, romanticamente emocional. Um road movie que coloca Karen Allen a conduzir um alienígena que assumiu a aparência do seu falecido marido, Jeff Bridges, em direcção à fuga do planeta Terra. Carpenter poderia ter ido pelo caminho mais fácil, criando uma espécie de confusão na protagonista (será este mesmo o meu marido?), mas assume desde o início que este alienígena é um impostor, criando a correspondente afeição emocional. A forma como joga de forma leve com alguns dos temas mais sombrios, como a morte de um ente querido, tornam Starman um produto interessantemente estranho e amorosamente trapalhão. Jeff Bridges faz sons e gestos que noutra produção poderiam ser ridículos, mas que aqui curiosamente funcionam. Vem à cabeça K-Pax: Um Homem do Outro Mundo, coincidentemente também interpretado por Jeff Bridges, como sua antítese de estilo formal. Fora da estrutura narrativa expositiva de Starman temos os seus vários interlúdios, por vezes românticos, oníricos, acompanhados pela banda sonora belíssima de Jack Nitzsche. Esta é apenas uma de quatro vezes em que Carpenter não compôs ou orientou a banda sonora num dos seus filmes, ajudando a caracterizar Starman como um corpo estranho, talvez o mais diferente, dos filmes de Carpenter. Existe uma certa inocência Spielbergiana dos anos 80, particularmente ET – O Extraterrestre, na estética desta fuga para o espaço. O clímax artístico do filme confundir-se-á com o clímax narrativo e essa mesma fuga. As cores absolutamente arrebatadoras, a luz, a despedida. Existe algo poético em Starman, a reinterpretação delicada dos seus temas sociais de sempre, aqui aplicados a um alien perseguido pelas forças da autoridade.
por David Bernardino
They Live 1988
Juntamente com Matrix (1999), They Live é um dos filmes mais citados por todo o tipo de sistemas de crença que se caracterizam pela existência de uma verdade oculta por trás de um dogma estabelecido – oculta de forma sinuosa, mal-intencionada – uma divisão entre aqueles que a “vêem” e os “adormecidos”. Nestes conjuntos, a capacidade de discernir esse verdadeiro estado das coisas é por norma automaticamente revolucionária, unificadora: podemos encontrar o discurso associado às mais estranhas ou às mais comuns teorias e mobilizações. É um “they” móbil e modular, capaz de representar qualquer tipo de colusão. Quem quer que eles sejam, não querem que saibas a verdade, mas ela estará disponível neste canal de telefonia, ou com acesso a estes óculos de sol, óculos que são aqui uma espécie de hóstia, distribuída aos fiéis. É importante irmos buscar as palavras de Nietzsche: “Para nós, a falsidade de um juízo não constitui nenhuma objecção contra ele (…) A questão é saber quanto é que um juízo corresponde às exigências da vida, de conservação da vida”.
Não bastará isto para jogar uma luz sobre aquela que é talvez a cena mais curiosa deste filme, em que Roddy Piper e Keith David lutam num beco durante seis minutos em relação ao direito deste último se abster de experimentar as mágicas “lentes Hoffman”? Quando o protagonista visita Frank nas obras, depois da sua aventura homicida, este aponta-lhe: “Tenho mulher e filhos, por isso deixa-me em paz!”. Ora, não é a verdade sobre os seres alienantes e alienígenas aquela que corresponde às “exigências da vida” do protagonista de Piper, nómada, vagante, desembocado no bairro de lata onde começa a trabalhar na construção civil – sujeito solitário e preparado para receber essa verdade?
Na véspera do assalto final suicida e martirizante que termina o filme, os dois homens estão num quarto de hotel a conversar. Sem nada que o parecesse anunciar, até para o espectador, Piper começa a contar uma série de abusos físicos que sofreu às mãos do pai.
“Maybe they’ve always been with us – those things out there”, responde Frank, agora também voluntariamente despojado, inclusive da “mulher e filhos” nunca mais mencionados. Piper termina com “I ain’t daddy’s little boy no more”, deixa que provoca risos em sala, como várias neste filme, mas em que é curiosíssimo pensar. O engodo que é o próprio engodo da ‘verdade’ talvez explique a resistência de Frank naquele beco, como a estranha presença de Holly, interesse amoroso abortado, na longa sequência de acção quase solipsista que termina o filme. Neste filme de culto (polissemias incluídas), talvez se esconda uma verdade, e não é a que vocês pensam: coloquem só estes meus óculos.
por Rafael Fonseca