Motelx 2024 – Dia 6 : The Surfer e Strange Darling

EquipaSetembro 18, 2024

O último dia da Tribuna do Cinema na 18ª Edição do Motelx. Dia de cerimónia de encerramento, com a exibição do psicadélico solarengo The Surfer, protagonizado por Nicolas Cage, actor querido da casa. O filme foi antecedido pela entrega de prémios e devida homenagem à organização do Festival.

O Procedimento, de Chico Noras, venceu o prémio para Melhor Curta de Terror Portuguesa, no valor de €5000, de forma merecida. Uma comédia negra deliciosa. Oddity venceu o prémio Méliès d’Argent para melhor longa europeia de terror. Já o prémio do público foi para o muito aplaudido The Substance. À meia noite assistimos ainda a outro dos mais badalados filmes desta edição do festival: Strange Darling, e o seu thriller romântico em 6 capítulos que joga com os papéis de género no cinema.

Rita Cadima de Oliveira e David Bernardino assinam a cobertura deste dia.

 

The Surfer (2024) de Lorcan Finnegan

A carreira de Nicolas Cage tem na última década andado de mão dada com o cinema de género. O seu acting muitas vezes neurótico e seu amor pelo cinema, que não faz distinção entre a série B e as grandes produções, parece assentar que nem uma luva na premissa que Lorcan Finnegan criou para The Surfer: um homem decidido a surfar na praia australiana onde cresceu, e lá comprar casa, mas que é impedido por um gang de surfistas bullies que controlam a praia. The Surfer aponta a vários caminhos em várias camadas e consegue a proeza de ser um filme muito mau e muito bom ao mesmo tempo. Numa camada mais superficial o filme inicialmente parece ser uma espécie de revenge flick em que Cage sozinho enfrentará o gang de bullies, mas rapidamente evolui para uma espiral de degradação e solidão pessoal à medida em que realidade, psicadelismo e loucura se misturam. Esse é provavelmente o momento em que The Surfer é muito mau. Finnegan sustenta o desinteresse e miserabilismo do seu argumento na performance de Cage e na soberba realização: os dois pilares muito bons. O calor, a luz do sol, o céu azul, o asfalto, os pequenos animais exóticos que habitam aquele parque de estacionamento junto à praia, a experiência sensorial existe e é visualmente inebriante, com o actor a entregar a alucinação que se espera dele. No seu vector imagético, The Surfer é verdadeiramente fabuloso. Descendo a camada da superficialidade apalpamos depois diversos temas: a masculinidade tóxica dos gangs e os seus rituais de integração, o desprezo social pelos mais desafortunados, a pressão parental, culminado naquilo que se poderia apelidar de quase propaganda contra a cultura australiana do surf. Felizmente The Surfer nunca faz bandeira de nada disso, seguindo o seu rumo se forma escorreita para um terceiro acto que inverte o desinteresse argumentativo que existe até então e confirma, para o bem e para o mal (escolhemos a primeira opção), o seu trolanço de forma altamente satisfatória.

David Bernardino

 

A cerimónia de encerramento da 18ª Edição do Motelx agraciou-nos com mais um retorno de Nicolas Cage, desta vez em modo back to basics. Ele que regressa a Luna Bay, na sua Austrália-natal, anos após ter construído vida e carreira em território norte-americano. É à beira-mar que reivindica o amor do filho adolescente mas é também com vista para a falésia que é humilhado e ridicularizado por um gangue de surfistas locais. Estes que se apresentam como senhorios absolutos cuja propriedade é a isolada praia da infância de Cage (The Surfer). Ferido e hostilizado, pelo distanciamento familiar e pelo vexame de que é alvo, decide permanecer na praia, declarando guerra aos que controlam a baía. Mas à medida que as altercações e os conflitos se agravam, os riscos que corre levam-no a uma espiral de descontrolo, atingindo o limite da sua sanidade mental e física. Ele e nós. A ansiedade é tal e tão desequilibradamente demorada que acaba por esgotar a audiência na incessante expectativa de vingança e na tão prometida desforra do Surfista para com os membros do culto. Mas nada nunca acontece. E é assim que este psycho thriller falha e se vai tornando perdedor. A arena abstracta na qual se insere dificulta-lhe o brilho, impossibilitando-o de tirar partido dos seus aspectos inovadores, tornando-o num conceito narrativo monótono e artificial. A parte satírica é excessivamente barata e literal. O enredo é forçado e entediante dado que os motivos que são inventados e construídos para lhe dar relevo, acabam por ser tornar absurdos. Mesmo que se aceite a falta de lógica ou a incoerência argumentativa, The Surfer apenas se vai tornando grotesco pois ao invés de evocar um vasto leque de emoções, evoca apenas risos ocasionais de embaraço. As caricaturas ou estereótipos compõem uma tentativa inapta de criticar figuras da autoridade; gurus formatados às novas eras e, por fim, a masculinidade tóxica personificada pelo empoderamento do macho alfa. Nada disto impossibilita The Surfer de ser um filme hilariante apesar da sua opacidade. A isto soma-se a excessiva gradação de cores que faz lembrar um comercial televisivo da Sun Quick ou as fotografias macro da natureza estilo BBC Vida Selvagem que não são capazes de o redimir ou salvar de se lançar no seu próprio precipício.

Rita Cadima de Oliveira

 

A quarta longa de Lorcan Finnegan coloca-nos perante o lugar familiar que é ver Nicolas Cage como o homem a tentar lidar sozinho contra a hostilidade. Armado com pouco mais que a sua própria nostalgia e uma ratazana que conhece pelo caminho, Cage é o homem moderno: confrontado com uma sociedade que lhe despreza, a tentar regressar a um passado que ele próprio efabulou como idílico, mas que está sobretudo no seu imaginário. Encontra num clã de surfistas na sua praia de infância o némesis para o seu sonho de reparação da vida. Hostil e profundamente embrenhado em provas de masculinidade retrógrada, o gangue de Julian McMahon representa tudo aquilo que separa Cage do seu idílio, mas simultaneamente aquilo que estimula em Cage um mínimo de sentido de pertença perante a sombra dos seus traumas familiares. Finnegan tenta construir uma encenação contida num espaço curto, não mais que uma praia e um parque de estacionamento, não conseguindo, apesar de tudo, grande evocação de claustrofobia ou prisão. Ao invés, a tensão é sempre às custas da performance neurótica de Cage e de alguma imagética psicadélica que parece empurrar Cage sempre numa direção menos plausível. O resultado final é sobretudo o de um argumento algo transparente, a querer surfar (yes!) a onda de Cage sem lhe transmitir grande personalidade pelo caminho.

Hugo Dinis

 

Strange Darling (2024) de J.T. Mollner

Se o demónio está nos detalhes, então nada é o que parece. E quanto menos se souber, melhor. Nesta narrativa não linear, pautada por seis capítulos que nos são apresentados de forma tão desordenada como vibrante, Strange Darling aparenta focar-se num notívago, banal e casual envolvimento físico entre um casal, num clássico motel americano. Rapidamente esta relação se transforma numa série de assassinatos perpetuada por um arrojado assassino em série e na forma quase imprevisível como são escolhidas as suas vítimas. O seu aspecto impressionante, filmado em película 35mm, como é descaradamente anunciado no início, é ainda mais consolidado pelo desempenho tão deslumbrante quanto avassalador de Willa Fitzgerald. Ela que é um peso pesado mas que vem acompanhada por um reverso. Este filme é uma fantasia de vingança escrita por homens para uma mulher tão manipuladora quanto narcisista. O guião, o design de som, a cinematografia e os desempenhos são extremamente intensos, acelerando o suspense mas também as suposições e antecipações daquilo que é o julgamento do público. Porém, o argumento aparenta estar tão concentrado em esconder essa reviravolta, desafiando as nossas expectativas e criando suposições de género, fazendo-nos assumir que um assassino em série é um homem quando, na verdade, é uma mulher. O brilhante uso de uma narrativa não linear, engana as nossas expectativas e atrai-nos para um labirinto espelhado de violência que não se contém apenas na sensualidade e erotismo, é sobretudo um jogo de poder sexual. O conceito por si só parece novo e intrigante mas a falta de profundidade da personagem, mesmo à medida que o filme avança, acaba por não revelar ou explorar as causas que criaram este monstro. Ainda assim, a estrutura não linear de JT Mollner funciona quase sempre a favor da narrativa e quase nunca contra ela.

Rita Cadima de Oliveira

 

JT Mullner constrói este thriller acerca de um serial killer e a sua vítima em 6 capítulos apresentados de forma não linear, isto é, em ordem narrativa não cronológica. Esse mero artifício, sendo bem executado, é suficiente para fazer de Strange Darling um filme “engraçado”, mas é muito mais que isso. O cenário de um Oregon rural, florestal e montanhoso, as suas personagens tipicamente americanas ao olho europeu que revelam uma certa sujidade pulp dos anos 90, a sedução, a emboscada, tudo isso constrói, passo a passo, um filme de forte personalidade e com todos os ingredientes para se tornar um filme de culto por direito próprio. A cinematografia e banda sonora hipnóticas fazem deste Strange Darling um belíssimo representante da chamada estética americana, isto é, o tecido cultural e estético (pessoas, conceitos, ritos) que compõe a identidade cultural daquele país, invocando uma nostalgia cinematográfica difícil de traduzir em palavras. O seu subtexto acerca dos papéis de género também tem muito que se lhe diga, tão assertivo quanto polémico, com decisões argumentativas corajosamente contra corrente. Duas interpretações simbólicas com potencial de originar o salto para maiores produções, num filme imaculadamente executado em estilo série B filmado em 35mm.

David Bernardino

 

Strange Darling faz do jogo do gato e do rato um exercício formal de estilo. Não existe aqui propriamente um argumento forte ou sequer interessante, contudo é a desconstrução narrativa em capítulos e a cinematografia intoxicante que faz a produção funcionar. Willa Fitzgerald é a protagonista de um cenário de perseguição que acaba por se tornar em jogo de espelhos não pela sua narrativa, mas pela disrupção formal com que esta vai sendo coligida ao público. Apresentando desde logo uma voz-off explicitamente criada para ludibriar as expectativas do espectador, Strange Darling torna o artifício narrativo a principal força da simples história de um serial killer. Essa subversão, ainda assim, é sempre formal e nunca substancial, pelo menos no que toca a ir para lá da simples inversão de papéis de género que imagino que tornarão Strange Darling um tanto problemático. Não é, contudo, um recurso utilizado em vão pela mão de JT Mollner, que acaba por construir um cenário eficaz de atração mútua entre Fitzgerald e as suas presas. Não obstante, a construção de diálogos entre predador e presas consegue dosear quantidades certas de tensão, desespero, comédia e plausibilidade num mundo bucólico com personagens sabujas ao estilo Coen.

Hugo Dinis