Motelx 2024 – Dia 5 : Kill, The Devil’s Bath, Sasquatch Sunset, Do Not Enter e Handsome Guys

EquipaSetembro 17, 2024

Dia forte, este quinto dia de Motelx, com destaque para a exibição de Kill, apelidado de “filme indiano mais violento de sempre”. Um filme de acção que está taco a taco com as coreografias de John Wick e que promete sair de Bollywood para tomar o mercado ocidental de assalto. Uma viagem louca e surpreendente a bordo de um comboio sobrelotado para Nova Dehli.

Assistimos também ao bizarro Sasquatch Sunset, um filme ausente de diálogos que acompanha uma família de pés grandes e o seu dia a dia nas montanhas. Da comédia negra à mensagem ecológica, Sasquatch Sunset recebeu gargalhadas e aplausos. Já The Devil’s Bath ficou aquém das expectactivas. Um folk horror austríaco de época em lume brando que teima no que diz respeito a concretização, mas que satisfaz na realização e atmosfera. O dia terminou com a famosa sessão dupla do Motelx composta pelo found footage paraguaio Do Not Enter que nos fez saltar da cadeira e a comédia de terror sul coreana Handsome Guys, repleta de demónios e mal entendidos que fizeram ecoar gargalhadas nessa madrugada no São Jorge.

As críticas são assinadas por Rita Cadima de Oliveira, David Bernardino e Carla Rodrigues.

 

Kill (2024) de Nikhil Nagesh Bhat

Um filme de acção com um gravitas e coreografia que estão taco a taco com John Wick, num filme de acção adaptado ao mercado indiano, que se apresenta como filme indiano mais violento de sempre. O plot twist é que, não tendo sido assim tão bem sucedido na Índia, Kill aparenta ter encontrado o seu público no Ocidente, o que pode significar um ponto de viragem verdadeiramente histórico para que Bollywood consiga finalmente, de forma mais regular, chegar ao mercado Europeu e Norte-Americano. Gente bonita, uma banda sonora épica e os valores de união familiar, tudo características elementares do cinema Indiano, são aqui aplicados a uma lógica fílmica de acção ocidental. Imaginemos Die Hard, ou Under Siege, mas num comboio sobrelotado para Nova Dehli, capturado por dezenas de bandidos. Mal sabem eles que a bordo está um comando militar da Índia, movido a amor pela sua noiva que se prepara para selar um casamento arranjado pelo seu poderoso pai, que irá passar por cima de tudo e todos para a salvar. O que se desenrola posteriormente é, dentro do género de acção, muito melhor do que se poderia imaginar, incluindo do ponto de vista dramático. Chad Stahelski encontrou um rival à altura vindo do outro lado do Mundo.

David Bernardino

 

Kill é um filme indiano que apesar de ter como maior premissa o amor como arma mais mortífera e ousada do mundo, desabriga-se completamente do preconceito e rescinde com a expectativa e previsibilidade de se associar a um filme de Bollywood. Sem rodeios e com uma firmeza refinada, esta é a versão sul asiática de John Wick. O comboio é o local onde a acção toma lugar, numa coreografia furiosa e cheia de adrenalina, banhando-se em facas, sangue, membros partidos e morte. O próprio título atira-nos para a expectativa de algo foleiro, não sendo possível negar que a sua excentricidade nos leva por vezes ao limite, nem sempre se tornando credível. O factor exagero está altamente presente na transgressão física e psicológica, devendo-se apenas ao facto deste banho de sangue se tornar cada vez menos contido e mais fundamentado e humano (?) à medida que as personagens são exploradas, com o seu pathos desesperado a aprofundar-se ao mesmo ritmo que a contagem de corpos mutilados e prostrados aumenta. Sendo o título claramente genérico, embora memoravelmente contundente, este Kill é mesmo um massacre descaradamente e assumidamente etiquetado com R-rated.

Rita Cadima de Oliveira

 

The Devil’s Bath (2024) de Veronika Franz e Severin Fiala

Depois de uma bem sucedida incursão num horror contemporâneo com a produção ingles e norte-americana com The Lodge, a dupla Veronika Franz e Severin Fiala abordam um terror atmosférico slow burn passado num meio rural montanhoso, na Áustria, em meados do séc XVIII. O filme repleto de superstição e folclore vai beber à sensação de mal que invade a tela que vimos, por exemplo, em Hagazussa ou The Witch. Contudo, à medida que vai compondo ominosamente as suas set-pieces, The Devil’s Bath vai adiando um clímax que parece nunca chegar nas suas extensas duas horas. Pedia-se mais numa produção desta dimensão que prefere manter-se à tona do realismo ao invés de embarcar naquilo que poderia ter sido verdadeiramente horripilante. A moral da história é mais do mesmo: os seres humanos são o maior dos monstros e as desigualdades sociais talvez não se tenham alterado assim tanto em 300 anos. Ou pelo menos é isso que o filme pretende transmitir.

David Bernardino

 

A fotografia excepcional de The Devil’s Bath leva-nos para florestas profundas de uma Áustria do século XVIII. A densidade campestre e rural deste filme recordam-nos do pragmatismo ancestral, na atribuição de uma causa concreta às dores humanas, realçando a sua oposição e cepticismo em relação às posteriores descobertas científicas do mundo da psiquiatria contemporânea. Neste slowburn feminino, uma mulher é condenada à morte depois de matar um bebé e o seu cadáver decapitado e esquartejado é morbidamente exposto como prenúncio de consequência para crimes semelhantes. Por seu lado, Agnes é condenada ao casamento com o seu amado, preparando-se para uma vida de esposa e sincera serventia. Naquilo que é uma rejeição física por parte do seu agora marido, Agnes sente-se pesada, na cabeça e no coração, passando as provações resultantes de sentimentos não correspondidos. Dia após dia, esta sente-se cada vez mais presa num caminho obscuro e solitário que a transporta para pensamentos cada vez mais negativos. Assim, o terror neste filme é mesmo a transgressão religiosa que se apresenta como o crime mais punível. Neste psicodrama angustiante e assombrado pelo tédio quotidiano e enraizado da vida agrícola, revela-se relativo respeito pela heroína moralmente e emocionalmente isolada, enquadrando a sua evolução como parte de um fenómeno mais vasto. As lacunas eclesiásticas que explicam as suas escolhas são menos importantes do que o desespero que a leva a fazê-las. The Devil’s Bath concede uma atenção imaculada aos detalhes, ao serviço da inescapável actualidade das suas circunstâncias. Esta é uma história sobre a procura desesperada de expiação a uma mulher recém-casada e deprimida, numa sociedade que vê as mulheres sem filhos como um pecado vivo, recusando-se a deixar-nos julgar as suas acções por qualquer outro padrão. A intemporalidade das suas circunstâncias não é assustadora nem motivo de condenação, talvez apenas as especificidades que se dá à resposta a este temática. Apesar de The Devil’s Bath não ser um filme convencional de terror, é facilmente assustador pela missão imposta à mulher desde os primórdios. A sensação de desconforto que nos causa, por meio da sua génese bucólica e rústica, assumidamente focada na saúde mental como demónio desconhecido, tornam este slowburn previsível mas nem por isso menos inquietante ou desconcertante.

Rita Cadima de Oliveira

 

Saúde mental na Áustria rural do século XVIII. Resume-se assim, de forma muito diluída, a premissa deste The Devil’s Bath. Mais do que diabos ou banhos (mas com uma excelente exploração do que a expressão banho do diabo significa), este filme de época oferece-nos um olhar sombrio sobre a saúde mental, a religião e os papéis limitativos impostos à mulher numa sociedade patriarcal. Seguimos Agnes, uma jovem recém-casada que se vê esmagada pelas expectativas de ser uma boa esposa e uma boa mãe. O marido de Agnes, apesar de não ser deliberadamente cruel, é emocionalmente distante e desinteressado nela, tanto a nível pessoal quanto sexual, o que a impede de cumprir o esperado papel de mãe. No entanto, ela carrega essa culpa sozinha, isolada e sem apoio, o que a empurra ainda mais para o obscurantismo religioso. A religião não serve como um escape, mas sim como (mais) uma ferramenta de controlo que leva as pessoas a fazer o impensável. The Devil’s Bath sublinha o quanto as normas religiosas e sociais podem agravar problemas psicológicos, especialmente numa época onde a depressão era desconhecida, e encarada como uma falha moral, falta de fé ou – pior – obra de Satanás. Visualmente, o filme é uma pequena jóia, apesar de pouco ter a mostrar que não a dureza da vida numa pequena aldeia piscatória e os seus parcos confortos disponíveis. Filmado em 35mm e com planos belíssimos, foi com justiça que venceu o Urso de Prata pela cinematografia de Martin Gschlacht na Berlinale. Comparando com outros folk horrors recentes, como The Witch ou Hagazussa, The Devil’s Bath distingue-se ao focar-se menos no sobrenatural e mais na dura realidade histórica. A narrativa baseia-se em factos reais – Veronika Fiala e Severin Franz recorreram a transcrições de processos judiciais da época e a uma investigação profunda sobre este período largamente desconhecido da história para conferirem ao filme um realismo e uma textura notáveis. Ao contrário de monstros ou bruxas, o verdadeiro terror aqui está no realismo – naquilo que sabemos ter realmente acontecido a centenas de pessoas, centenas de mulheres. Embora seja um filme denso e desafiante, The Devil’s Bath recompensa o espectador paciente com um retrato poderoso e doloroso de uma página esquecida da história. Não é fácil de ver, mas traz à tona uma realidade que nunca deveria ser ignorada—e nunca mais vão olhar para pêlos de cavalos da mesma maneira.

Carla Rodrigues

 

Sasquatch Sunset (2024) de Nathan Zellner e David Zellner

Sasquatch Sunset é exactamente aquilo que se espera dele, mas consegue ir além disso. Observamos uma família de 4 sasquatches isolados nas montanhas, isolados do Mundo, no seu dia a dia. São 90 minutos de macacos a andar, comer, defecar e interagir sim, mas não só. Esta bizarra comédia, sem diálogos, e habilmente filmada em cenário natural, é também sobre um certo sentido de descoberta, de ilusão, numa espécie de infantilidade que terá um paralelo meta filme com aquilo que o filme, de facto, é. É também uma leve reflexão negra e livre de preconceito acerca do impacto humano nos ecossistemas, sem nunca fazer disso bandeira. Um pequeno filme de produção ousada e corajosa condenado ao fracasso, que atinge exactamente aquilo a que se propõe: colocar o riso do lado do espectador. A idiotice é conjunta, filme idiota a ser idiotamente visto pela sua singular audiência. E só por isso leva uma estrela a mais do que noutras circunstâncias mereceria.

David Bernardino

 

Este é um filme sobre a bizarria dos big foot na densa floresta norte-americana, procurada por indesejáveis campistas mas não defraudada pela sua imensa povoação de fauna e flora. Nela vive uma família de enigmáticos Sasquatches, possivelmente os últimos da sua espécie, que têm no seu rotineiro quotidiano o embarque em épicas e absurdas viagens numa constante procura pela sobrevivência. A narrativa ao centrar-se nas aventuras que este grupo hilariante de quatro Sasquatches vivem ao longo de um ano, revela-nos também que tal como nós humanos, estes desgrenhados, frenéticos e muito pouco ágeis seres, lutam pela sobrevivência enquanto se encontram em rota de colisão com o mundo em constante mudança que os rodeia. Quase toda a sua duração incide na concretização tão física quanto expressiva das suas funções fisiológicas, causando-nos algum desconforto, mal-estar e nojo. É mesmo um filme que nos confronta com temas de repulsa e abjeção. Mas também focando-se na vergonha, por meio de um espelho para os humanos, que eventualmente poderão sentir ao ver a sua parte mais animalesca ser representada de uma forma não tão controlada nem regulada. Mesmo que nos estejamos a sentir reprimidos, aparentando qualquer conservadorismo ou sensação púdica, Sasquatch Sunset lembra-nos da nossa parte mais grotesca e fá-lo de uma forma um tanto ou quanto subversiva: vendo a nossa imagem ao espelho e fazendo-nos rir e sentir algum peso na consciência. Por sua vez, o seu lado mais cinematográfico é progressista, num quase cenário documental, que reforça o impacto ambiental do humano e das suas exigentes necessidades na natureza, causando uma afasia ecológica, brevemente representada na tela pela desflorestação, incêndios e acampamentos ilícitos.

Rita Cadima de Oliveira

 

Do Not Enter (2024) de Hugo Cardozo

Raro exemplar de terror do cinema paraguaio, adaptado aos tempos actuais em que ser streamer e youtuber é sonho e realidade de tanta gente, tanta gente essa que igualmente segue atentamente o trabalho de determinado streamer ou youtuber. Aldo e são esses aspirantes a youtuber, em busca da fama (e proveito), um mais que outro, que decidem elevar a fasquia e entrar à noite numa mansão que afirmam poder estar assombrada. A atmosfera deste found footage é eficaz, com cenários e uma luz que faz a diferença e o eleva dos seus pares. Enquanto o filme é descoberta e atmosfera, à medida que as portas da misteriosa mansão são abertas, o arrepio e atenção são constantes e surpreendentes para esta modesta produção do Paraguai. No entanto, a dada altura, a escolha narrativa passa de desoberta e atmosfera para sobrevivência, e quase tudo cai por terra. Um final com uma segunda decisão narrativa pouco favorável acrescenta-se aos poucos ingredientes que impedem Do Not Enter de ser um found footage que joga taco a taco com os melhores do seu subgénero.

David Bernardino

 

Handsome Guys (2024) de Nam Donghyub

Uma comédia de terror sul-coreana aparentemente inspirada em Tucker & Dale vs Evil, mas não só, que consegue ser um belíssimo exemplo de slapstick comedy (vulgo Leslie Nielsen). Dois carpinteiros de coração puro mas aspecto ameaçador cruzam-se numa casa de montanha com um grupo de jovens que os interpreta de forma errada. O que se segue é exactamente aquilo que se espera: uma sucessão de trapalhadas e mal-entendidos, surpreendentemente eficazes e hilariantes, bem como, naturalmente, cabras demoníacas e serventes do Diabo. Lee Sung-min e Lee Hee-jun, os dois Handsome Guys titulares, arrancam expressões dignas de aplauso. Pouco mais haverá para escrever sobre o filme, excepto que, não trazendo nada de novo ao seu género, se assume como um dos seus melhores exemplares.

David Bernardino