Motelx 2024 – Dia 4 : The Substance, Handling the Undead e Fréwaka

EquipaSetembro 16, 2024

Ao quarto dia de Motelx assistimos ao principal cabeça de cartaz do Festival: The Substance. O filme que venceu melhor argumento em Cannes, e que conta com o regresso de Demi Moore à ribalta, proporcionou uma sessão verdadeiramente inesquecível repleta de body horror. O público reagiu de forma efusiva ao filme que viria a receber o prémio do público, e nós concordamos. Não foi só um dos melhores filmes desta edição do Motelx. Será talvez um dos melhores filmes do ano.

Vimos ainda o twist à linguagem do subgénero zombie do filme norueguês Handling the Undead que dividiu os nossos críticos de forma diametralmente oposta, e o irlandês Frewáka, um slow burn com ingredientes de folk horror que não nos entusiasmou particularmente. Fica a nossa cobertura a mais um dia de festival, assinada por Rita Cadima de Oliveira, David Bernardino e Miguel Allen.

 

The Substance (2024) de Coralie Fargeat

Regresso triunfal de Demi Moore ao grande ecrã perto de fazer 62 anos, neste filme vencedor do melhor argumento em Cannes, interpretando uma personagem que se funde com a sua própria percepção social: uma mulher cujos dias de glória no cinema estão no passado e que procura rejuvenescer numa melhor versão de si própria. É o que faz Elisabeth Sparkle (Moore), quando terminados os seus dias de glória aceita participar numa bizarra experiência de clonagem em busca dessa versão. The Substance, de Coralie Fargeat, não se coíbe de ir buscar inspiração, imagem e temas a diversos filmes de culto: Requiem For a Dream, The Fly, Carrie, Elephant Man, Alien, enfim a lista é longa. Mas nem por isso The Substance em algum momento perde um fio da sua própria identidade. Filmado de forma absolutamente vertiginosa, num crescendo constante, Demi Moore, e Margaret Qualley, movem-se por entre longos corredores, salas espaçosas, casas de banho assépticas, numa plasticidade claustrofóbica que que se entranha, literalmente, na pele. Tudo isso é pontualmente pontuado por um Dennis Quaid repugnante, o representante dos trolls da indústria do espectáculo, que não dá espaço à respiração. À medida que o filme avança, The Substance é mais que a sua “mensagem” acerca do prazo de validade das pessoas, descartáveis claro, nesta idade de imediatismo imagético que teima em renovar-se. O tema está lá, mas o pretensioso preaching é totalmente deixado de lado a favor de um body horror (quase totalmente sem recurso a computador, comme il faut) e um drama existencial de direito próprio. A um ritmo alucinante, e com um visual permanentemente invasivo, Coralie Fargeat estica a corda de cada vez que aparenta estar perto da sua conclusão, acrescentando camadas que surpreendentemente mantêm a corda firme e continuam a espremer o espectador sensorialmente em busca de uma experiência rara em cinema. The Substance é um dos filmes que melhor representa, precisamente, o cinema dos nossos dias.

David Bernardino

 

Coralie Fargeat não segue qualquer instrução nas recomendações de uso do manual de uma nova e apetecida droga do mercado negro, que seduz uma celebridade em declínio, forçando-a a encomendar a substância que lhe irá replicar células e criar temporariamente e espaçadamente uma versão mais jovem e sobretudo melhor de si mesma. Demi Moore e Margaret Qualley são respectivamente a representação vertiginosa do velho e do novo, neste filme completamente insano, brutal e electrizante. Das cores berrantes à aberração vai muito pouco. Do glamour às purpurinas; das bolhas de champanhe resultante do sucesso e do aroma das rosas presenteadas pelo reconhecimento ao sangue e a momentos gore vai ainda menos. The Substance não só é metáfora para a não aceitação do fim e para a negação da inevitabilidade do envelhecimento físico como também é a personificação desesperada e exacta do momento de saída do palco. Este é também o filme que grita de forma drástica e em sufoco quando os holofotes são apagados e quando o momento de retirada é redigido para uma audiência que aplaude ao invés de lamentar. O body horror é canibalesco e conceptualmente é mais oportuno do que nunca. Confirma-nos que o tempo não pode ser empatado, que somos rápida e facilmente substituíveis e que a vaidade é um banquete que nos etiqueta e castiga como narcisistas e responsáveis pela nossa própria destruição.

Rita Cadima de Oliveira

 

Handling the Undead (2023) de Thea Hvistendahl

É verão em Oslo, uma cidade em estado escaldante e repletas de ventoinhas. E moscas. Trazidas pelas tumbas destapadas e pelo retorno dos que se pensava nunca mais voltar. Handling the Undead elabora-se numa abordagem mórbida mas elegante ao conceito de zombie, numa metáfora sombria e nostálgica de como fazer as pazes com a perda, sublinhando o peso de um luto insuportável. O que fazer se o presente nos possibilita reaver os mortos? Numa linguagem visual deslumbrante e quase analógica, mas movendo-se de uma forma lenta e de ritmo punitivo, é um filme que se comporta de uma forma tão letárgica quanto frustrante, apenas com o intuito de comunicar melancolia. É um poema sobre a morte. Mórbido. Severo. Áspero e Cruel. Apesar de desumano, a sua cinematografia obedece a um formalismo e classicismo absorventes. A sua geometria centra-se no luto, mas nem sequer é um luto de fantasmas. É sim o horror de ver alguém chorar o cadáver em decomposição de alguém que já foi vida, sendo apenas uma nefasta semelhança de algo que não mais existe. Renate Reinsve personifica exemplarmente a representação pura do horror dessa perda e do choque de olhar para a morte como recordação da vida, numa decomposição tão física quanto psicológica. É o desaparecimento do palpável, do físico, mas é por oposição, a permanência da alma e da ausência do objeto do amor. Handling The Undead é um filme desumano, não é divertido, é sim um filme de terror sobre a depressão mórbida, é emocionante, não é sangrento e os momentos de violência, auto-mutilação e crueldade são dolorosos. Tem um toque gelado que nos bofeteia, tem a pele encerada e o zumbido das moscas a pairar em terra pútrida, num grito que não se dá e na angústia trazida da morte para o mundo dos vivos. É também uma abordagem moderna e engenhosa do estilo zombie, num compasso ultra lento mas persistente. O seu maior trunfo é mesmo uma cinematografia clássica, formal e geométrica. Com uma banda sonora soberba e uma fotografia fora de série. Dele fica uma atmosfera controlada mas assombrosa, uma combustão lenta, arrepiante e sinistra. Uma assombração bem trabalhada, bem filmada apesar de lenta e discreta. É um filme extremamente inteligente, lúgubre e com duração curta mas assertiva.

Rita Cadima de Oliveira

 

Um melodrama choroso mascarado de produto cultural mascarado de filme de género. Cinema de especulação de mercado, a sua abordagem ao sobrenatural parece-nos, ao longo do filme, quase sempre desnecessária – até que, a afirmação final enquanto verdadeiro filme de horror é tanto forçada quanto desonesta. “Handling the Undead” sustenta o seu pretenso valor num pretenso mistério das suas imagens – mas os seus silêncios densos são essencialmente prova da total carência de ideias de mais uma alegoria “sobre trauma”. As qualidades estéticas (“formais” seria aqui exagero) das suas composições são evidentes, talvez, num exercício de estilo forte em pretensão quanto mais desprovido de fundamento. Já o discurso de miserabilismo celebra um gosto voyeurista pela desgraça alheia (as cenas com a criança morta sendo, nesse aspecto, particularmente desagradáveis, ricas do encanto enigmático de um corpo em decomposição). A partir de leituras pervertidas do vôvô Bergman (o realizador que informa o pior cinema de autor que hoje se faz), o cinema escandinavo afirma-se desde há longos anos como uma fonte recorrente de produtos culturais comercialmente inteligentes e moralmente abjectos. Neste caso específico, Thea Hvistendahl parece ter encontrado no cinema de horror o contexto ideal para as ambições gráficas das suas lacunas morais.

Miguel Allen

 

Fréwaka (2024) de Aislinn Clarke

A realizadora Aislinn Clarke assina o seu filme de terror atmosférico que acompanha a cuidadora de uma idosa agorafóbica e supersticiosa, num meio pacato da Irlanda onde ainda se fala gaélico irlandês. O cenário, coberto de símbolos de um certo trauma religioso, parece estar bem afinado, no entanto Aislinn Clarke parece estar menos preocupada na linguagem cinematográfica do seu filme do que em traduzir para o cinema um certo trauma social à medida que percorre a sua checklist de temas da ordem do dia: trauma parental, catolicismo, machismo, etc. Na realidade tudo vai funcionando de forma minimamente expectável, com alguns truques de horror rasca (agora estou aqui, agora já não estou) pelo caminho, e sem grandes ideias para executar o “género” onde pretende inserir-se, até que finalmente se chega ao tão esperado clímax que o filme parece estar mortinho por atingir. E é aí que a Fréwaka cai aos trambolhões, com um desfile pretensioso de símbolos cuja única consequência é um tremendo revirar de olhos.

David Bernardino

 

O filme que se diz ser inteiramente falado em Gaélico Irlandês acaba por ter momentos plenamente britânicos, sublinhando a sua veia de trauma geracional originado por guerras civis específicas da comunidade irlandesa. Fréwaka exalta-se no mergulho profundo que a realizadora Aislinn Clark dá na mitologia irlandesa e no obscurantismo dos recantos históricos do país. A transmissão das tradições como maior representante da identidade mitológica e folclore irlandesas, tem nas sua raízes o seu maior legado. O enredo centra-se na assistente e enfermeira Shoo, assombrada por tragédias pessoais, que é enviada para uma aldeia remota com o intuito de cuidar de uma idosa residente. Nesta intersecção a realizadora consegue de uma forma quase magistral combinar temáticas como a maternidade, os conflitos geográficos, a saúde mental, a religião e o folclore irlandês, lançando o espectador numa ansiedade amplificada pelo som utilizado. É uma obra atormentada pelo simbolismo, explorando exaustivamente traumas herdados, tanto pessoais como históricos, recorrendo a diversos simbolismos e elementos mitológicos, que vão do grotesco ao sobrenatural. No fundo, Fréwaka contrasta as crenças geracionais e tradições ancestrais com uma racionalidade moderna, sublinhando a tensão entre as convenções e o pensamento contemporâneo. Apesar do seu estilo visual marcante, do suspense bem elaborado e de uma partitura musical distinta e evocativa, Fréwaka tem dificuldade em encontrar uma resolução satisfatória para os seus conflitos narrativos e temáticos, mas não deixa de sobressair como uma nova adição moderna e incisiva ao género de terror popular. Com um elenco quase inteiramente feminino, Fréwaka é particularmente notável pela sua ênfase nas perspectivas femininas e pelas ricas alusões a símbolos, elementos religiosos e mitológicos, como por exemplo o derradeiro foco na ferradura e na porta como passagem para o desconhecido.

Rita Cadima de Oliveira