Motelx 2024 – Dia 2 : Cuckoo, Do You See What I See, One Night With Adela

EquipaSetembro 12, 2024

O segundo dia de Motelx trouxe sensações mistas. Começámos por assistir ao filme indonésio Do You See What I See, com a presença de representantes da Embaixada da Indonésia para a apresentação do filme. Claramente um filme de grande aposta para a realidade do cinema indonésio, mas que infelizmente ficou aquém das expectativas mas que cumpriu no terror.

Assistimos ao regresso do realizador Tilman Singer ao Motelx para apresentar um dos filmes mais aguardados desta edição do festival, Cuckoo, protagonizado por Hunter Schafer e Dan Stevens, perante uma sala Manoel de Oliveira esgotada que ficou para um Q&A com o realizador no final.

A sessão da meia noite trouxe-nos o espanhol One Night With Adela, protagonizado por Laura Galán (Piggy), numa espécie de vingadora nocturna que se move num plano sequência único em busca do seu twist final. O público ficou dividido.

David Bernardino, Rita Cadima de Oliveira e Rafael Fonseca deixam as suas críticas:

 

Cuckoo (2024) de Tilman Singer

Tilman Singer apresentou a sua segunda longa-metragem, Cuckoo, no 2º dia da 18ª Edição do MotelX, para uma sala absolutamente composta e curiosa com a interpretação de uma das estrelas do momento, Hunter Schafer. Ela que desempenha um papel notável de adolescente rebelde, intempestiva e relutante na sua mudança de vida para os Alpes alemães com o pai e a sua nova família, por ocasião da morte da mãe. Gretchen (Schafer), sempre protegida pela sua faca butterfly, é a premissa deste filme de terror, nesta nova cidade atormentada por ruídos, segredos sinistros e visões perturbadoras. Num loophole constante, uma vilã arrepiante e assustadora, por meio de guichos e sons agudos, persegue a jovem, envolvendo-a num núcleo emocional indescrítivel, que nos cede cenários perplexos, intrigantes e até mesmo com um toque de entretenimento emocional. Denota-se que Tilman Singer bebe alguma da narrativa vaga e incoerente de Argento, Cronenberg e De Palma, e ao mesmo tempo premeia-nos com uma tensão contínua e cativante. Cuckoo é um filme de terror e mistério, ambicioso, estranho e grotesco, com fortes inspirações no Eurohorror dos anos 80, salpicado de uma vibe retro, mas nunca deixa de ser completamente autónomo ou independente. No seu todo, Singer é uma obra de combustão lenta, com uma atmosfera, luz e cores irrepreensíveis, a par de uma saturação granulada e esteticamente apetecível, e sobretudo composto por um nítido trabalho sonoro, já que o design de som acompanha excepcionalmente toda a atmosfera e é ocasionalmente e acertadamente interrompido por uma banda sonora de rock. Toda esta envolvência oferece-nos um trabalho hipnótico, com recurso ao sobrenatural de sombras e amplitude de ângulos, embora por vezes de uma forma bastante isolada. A intriga que Cuckoo causa à audiência tende a perder-se à medida que a narrativa se prolonga, o que vai mantendo o público quase sempre distante do mistério central, o que penaliza o filme pelo distanciamento emocional que daqui poderá surtir. Concluindo, é apreciada a introdução da temática da aceitação familiar pelo matéria genérica do trauma mãe-irmã, que impõe a Schafer a energia física, a avidez e os nervos de uma adolescent punk e angustiada numa tentativa de resistir e escapar à estranheza do mundo dos adultos. Os olhos arregalados e o sangue de Gretchen são indutores mas também acumuladores de stress nos espectadores, sob a forma de ossos partidos, ligaduras, gesso, pontos e nódoas negras, tornando-se este filme tão inconveniente quanto provocador, mas também como um digno representante da resiliência e da rebeldia juvenis.

Rita Cadima de Oliveira

 

Um misto de originalidade, boas ideias e execução confusa, a verdade é que essa confusão beneficia e faz do resultado final de Cuckoo algo de francamente positivo. Hunter Schafer, protagonista vibrante e repleta de carisma, consegue em si agarrar o espectador neste misto de estranheza e euro-horror algures nos Alpes alemãos. Do outro lado está ainda Dan Stevens (The Guest, Rental), um dos actores mais interessantes do cinema de género que por uma razão ou outra nunca deu o salto, mas cuja presença é sempre algo de positivo. Cuckoo vence principalmente pelo voyeurismo, aguçando a curiosidade do espectador pelo que se passará neste hotel nos Alpes onde de noite um estranho som cria confusão a quem o ouve e existe uma estranha e sinistra mulher que corre pelos bosques. A coerência parece não existir, e no final, aquando da “explicação”, já nada importa porque o resultado já foi conseguido: um filme de terror com personalidade punk aguçada, que vence pela sua idiossincrasia.

David Bernardino

 

Do You See What I See (2024) de Awi Suryadi

Este filme indonésio particularmente místico, de cariz espiritual e sobrenatural, com representações folk e religiosas, poderia ter todo os constituintes para ser uma obra representativa de género mas perde-se no seu próprio glamour pop e amadorismo exorcista. Ao mesmo tempo, tenta sublinhar a sua veia modernista, renascendo o culto a Tupac e à geração tik-toker mas tudo de uma forma muito artificial e superficial. É numa tendência quase sempre suicida que segue a vida da adolescente Mawar e do seu grupo de amigas e companheiras de casa. A juventude, os seus males, amores e desamores e as perdas parentais são o garante de mais um filme comum e estranho e que tem na temática do amor humano-demónio a sua maior incidência. A sua maior fraqueza é a má edição e iluminação assim como o mau acting, sendo forte nos clichés associados aos elementos representativos do terror, mas não sabendo fazer uso dos mesmos. É particularmente longo e repetitivo, tornando-se aborrecido na exaltação feminista repetitiva e desinspirada e mais uma vez tantas vezes vista.

Rita Cadima de Oliveira

 

Custa muito criticar Do You See What I See, provavelmente um filme de grande orçamento para a realidade do cinema indonésio, que é fantástico do ponto de vista do design de produção e mesmo realização, mas que é péssimo em tudo o resto. Um misto de filme de terror com coming of age, seguindo Mawar, que se junta a um misterioso namorado, e o seu grupo de amigas, o filme de Awi Suryadi parece seguir o caderno de encargos daquilo que “se faz lá fora”. Um filme de terror de espíritos clássico, que a cada 10 minutos vai desenterrando uma nova camada de argumento, adensando a sua história mais e mais até à exaustão. A ausência de suspense e gravitas é total, vivendo de jump scares óbvios que roçam o bocejo que é mesmo inevitável perante a falta de interesse em tudo aquilo que se passa. A terrível edição, que prolonga cenas e ideias sem qualquer noção de ritmo, apenas contribui para a sensação de que “isto nunca mais acaba”. É uma pena.

David Bernardino

 

One Night With Adela (2024) de Hugo Ruiz

Filme espanhol de Hugo Ruíz, a sua estreia, protagonizado pela singular Laura Galán, protagonista de Piggy, assistimos ao que é um plano sequência único de 105 minutos de uma noite da trabalhadora nocturna de recolha de lixo prestes a explodir mentalmente. Trata-se pura e simplesmente de um filme conceito, uma mise en scéne gigante em busca do seu twist final, altamente eficaz, mas que dificilmente justifica o longo e moroso caminho que nos leva até ele. Curioso paralelismo pode ser feito com In a Violent Nature, o tal slasher do ponto de vista do assassino, que também se verifica em A Night With Adela nas suas cenas iniciais, excelentes, prometendo ao espectador uma noite de loucura que no seu intermédio nunca chega a existir. Cenas excessivamente longas em que nada acontece que pedem desesperadamente que sejam editadas, acabam por não o ser em nome do tal conceito do plano sequência ininterrupto que parece ter sido mal medido e está refém da actuação de Laura Galán e seus movimentos. Não deixa de ser interessante essa visão de realismo de movimento, com uma aura que invoca títulos nocturnos como Taxi Driver, entre outros. A Night With Adela está repleto de boas ideias e boas intenções, mas o excessivo prolongar da maior parte das cenas quebra a cadência de crescendo que nos prepara para o desenlace. Existe também uma certa crítica social familiar que irá satisfazer certo público.

David Bernardino

 

One Night with Adela, de Hugo Ruiz, está convencido de várias coisas, a mais flagrante sendo que o velho truque de “um filme rodado num único plano” simplesmente vai funcionar sem fazer grande coisa a mais. Teria sido pensado que esse achievement formal levantaria o filme aos ombros? Continua a ser preciso alguma coisa estar a acontecer – nas sequências intermináveis de Adela a andar, a conduzir de um lado para o outro ou sentada enquanto consome as mais variadas drogas, dou por mim a implorar que o realizador se lembre de que pode a qualquer momento usar as ferramentas milenares do corte e da montagem. (Para um filme que consegue com o mesmíssimo truque vingar em vez de falhar, ver Victoria (2015) de Sebastian Schipper). De resto, a trama é a de uma jovem perturbada que se quer vingar dos “traumas” que os pais lhe infligiram: o argumento explana este assunto repetidamente e em grande detalhe. Pela altura em que nos dá a misericórdia de terminar, estou mais preocupado com o realizador do que com a sua personagem.

Rafael Fonseca

 

A noite afirma-se neste filme como um elemento negro, que promete vingança e desforra, por oposição ao dia que se assume como taciturno e insonso. Adela é a vilã com a mente e físico atormentados, que busca a retaliação e todas as represálias de uma vida enclausurada na vergonha e na ruína familiar e social. Apesar da sua condição parental relativamente burguesa, Adela é varredora e colectora de resíduos municipais. Faz da noite a sua casa, e da sua solidão laboral um escape para uma vida de vícios perniciosos. É neste plano sequência da sua jorna, que Hugo Ruíz nos envolve num filme vagaroso, pouco audaz e com um ritmo demasiado lento, que exigia um compasso bem mais frenético e aguçado. Enquanto trabalha, Adela é acompanhada por dois vícios distintos: um programa nocturno radiofónico de apoio emocional e o bullying resultante da masculinidade tóxica de homens alcoolizados que vagueiam na noite com o único propósito de se elevar. Todo o seu turno laboral é alimentado por estupefacientes mas também pela provocação contínua e nefasta à sua condição física mórbida. A noite é alimentada por bodyshaming, cocaína e charros. Toda esta conjectura tornam Adela numa mulher vingantiva, implacável e rancorosa cuja única pretensão é a vingança. Mas esta vingança não se serve fria. É demasiado gratuita, violenta e despropositada. O tom jocoso de Ruíz é delirante e prejudicial à narrativa, acabando por a arruinar. Assim como o overacting de Laura Galán. O que lesa este filme é a forma nefasta e pouco envolvente que não nos permite criar qualquer ligação ou conexão com a vítima, mas sim originar uma sensação de repulsa e fastio na fórmula demasiado solitária e filosófica de Adela magicar infinitos e intermináveis planos e conjecturas maquiavélicas sob a forma de fumo de cigarro e linhas de cocaína.

Rita Cadima de Oliveira