Mais um ano, mais uma sessão de abertura completamente esgotada para dar as boas vindas à 18ª edição do Motelx. João Monteiro e Pedro Souto fizeram a antevisão daquilo que se poderá esperar desta edição em que o festival atinge a maioridade, naquela que é provavelmente a programação mais forte da história do Motelx que irá receber filmes como The Substance, Cuckoo, Oddity, MaXXXine ou The Surfer. Destaque ainda para a habitual competição de curtas metragens portuguesas, para a celebração dos 50 anos do 25 de Abril, com uma seleção de filmes proibidos pela censura portuguesa, e muitas outras surpresas.
A sala Manoel de Oliveira encheu para assistir a Speak No Evil, protagozinado por James McAvoy – um remake norte-americano do filme dinamarquês com o mesmo nome, que em 2022 ganhou, neste mesmo festival, o prémio de melhor longa metragem de terror europeia. O filme de James Watkins fez as delícias do público que, como é habitual, reagiu entusiasticamente através de risos, nos momentos que assim o pediam, e palmas nos seus momentos mais sangrentos. O ambiente foi sem dúvida de celebração.
Já na sessão da meia-noite, numa sala a meio gás para ver In a Violent Nature – um dos filmes de terror mais falados do ano – a reacção não foi tão positiva, com dezenas de espectadores a abandonarem os lugares ao longo da projecção. Outros terão adorado este filme, que é claramente polarizador.
A Tribuna do Cinema esteve presente para assistir a esses dois filmes e deixa as suas críticas:
Speak No Evil (2024) de James Watkins
Uma vez mais, completamente apinhada e cheia de entusiastas do cinema de género, a Sala Manoel de Oliveira recebe a cerimónia de abertura do MotelX que este ano completa a sua maioridade. O Festival de Terror abriu com um remake do filme dinamarquês Speak No Evil (2022), de Christian Tafdrup. Com alguma precaução e receio se recebe a adaptação do filme europeu para o mercado americano, pois estes últimos não são propriamente conhecidos pela sua delicadeza ou subtileza na percepção do perigo e suspense, a parte essencial do enredo. Em nada nos surpreende a brutalidade da abordagem americana, embora continue a ser uma história intrinsecamente sombria, mas ficando aquém do tormento e angústia do filme dinamarquês, e isso reflecte-se no seu todo, especialmente no final. Dada a tremenda crueldade do original, o americano opta quase sempre pela catarse, numa libertação de uma violência encapsulada. Poderá afirmar-se que 70% do filme é uma réplica do original, com pouco suspense, alguma previsibilidade e tão sarcástico e humorado que mais parece uma comédia ao invés de se afirmar cru e macabro, não sublinhando suficientemente a sua verdadeira essência de terror psicológico. Speak No Evil é um quase thriller de terror, tão sólido quanto seguro, que prefere diluir-se e garantir um estatuto mainstream. Definitivamente menos potente e impactante do que o original, por vezes não conseguimos encontrar lógica ou justificação nas mudanças efectuadas. É inegável que é inquientante, empolgante e extremamente cativante. A versatilidade de James McAvoy é brilhante, ele que preenche a tela com uma prestação notável e inesquecível, oferecendo-nos um pesadelo psicológico com residência numa idílica propriedade rural britânica. No entanto, nesta proposta de terror psicológico, esconde-se sobretudo uma moderada crítica de classes que, apesar de eficaz, é feita a partir de vários elementos mórbidos e cenas algo incómodas, questionando a imagem da família aparentemente perfeita mas também do realismo da felicidade pessoal. Apesar de começar bem e do incremento da tensão à medida que o filme avança, James Watkins demora muito tempo a concluir o suspense, o que faz com que este se perca e o ritmo se torne insípido a meio. Quando se atinge o clímax, a audiência recebe o que se esperava, mas é demasiado tarde e parece sempre excessivo.
Rita Cadima de Oliveira
O filme de James Watkins é o remake americano de um dos filmes sensação do Motelx em 2022, dinamarquês, que venceu o prémio de melhor longa metragem europeia naquele ano, sobre um casal e sua filha que vai passar um fim de semana à casa rural de outro casal que conhecem nas férias. Em comparação o remake é certamente mais americano e espalhafatoso que o original, mas isso não é necessariamente mau. James McAvoy volta a demonstrar as suas virtudes a fazer de “louco”, de forma verdadeiramente desconcertante, provavelmente inspirado em Jack Nicholson em The Shining, e quem não tiver visto o trailer (que revela 100% do filme) terá, tal como no original, um belíssimo slow burn repleto de suspense e desconforto, ao qual esta versão americana adiciona uma dose generosa de humor negro verdadeiramente delicioso. O desfilar de McAvoy, para quem gosta de “filmes de actores”, carrega o filme. A dada altura Watkins dá um twist americano no enredo para o bem ou para o mal. Se por um lado é verdade que transforma Speak No Evil num filme necessariamente diferente, é também por isso que o transforma num thriller necessariamente mais entretido. Speak No Evil é essencialmente um thriller de terror americano eficaz e muito bem executado, com personalidade vincada, que cumpre exactamente aquilo a que se propõe.
David Bernardino
In a Violent Nature (2024) de Chris Nash
Este slasher norte-americano assemelha-se ao heterónimo de Fernando Pessoa, Alberto Caeiro. É um filme de e para a natureza, que despreza e repreende qualquer tipo de ponderação filosófica. Dado que o pensar causa obstrução à forma como se depreende o mundo, entramos então aqui num mundo complexo e extremamente problemático onde tudo se apresenta incerto e obscuro. Principalmente porque é um filme filmado na terceira pessoa, a partir da visão do assassino. Assistimos à ressurreição de um enigmático e silencioso monstro, à sua fúria, impiedade, crueldade e brutalidade. É um filme visceral e sanguinário, à superfície, e complexo do ponto de vista da objectividade visual, pela sua linguagem cinematográfica bastante simples e sem embelezamentos. O realizador opta sempre pela completa simplicidade e realismo natural, numa completa afirmação da fauna e flora, como elementos que considera serem a única sensação de realidade. Este monstro, com a aparência de um morto-vivo, vagueia numa remota zona florestal selvagem, sempre acompanhado pelo impressionante som das suas botas a pisar a densa floresta, desencadeando-se como o icónico assassino de um grupo de adolescentes que acampa naquela região. O cenário de matança é impiedoso e impressionante, sendo apenas assolado pelo ritmo lento da acção, que poderá levar ao aborrecimento de uns mas ao interesse de outros, pela interligação de temáticas tão dispersas ou até mesmo desconexas. Apesar da sua forte premissa, as personagens são fracas e os diálogos são desinteressantes, representando este factor o motivo da sua maior nulidade, retirando-lhe o carisma que poderia e deveria ter.
Rita Cadima de Oliveira
Como Friday the 13th (Cunnigham, 1980), mas informado por Béla Tarr. In a Violent Nature, ainda que elevated horror, não retrai a herança popular do género. Este não é mais um exercício “sobre trauma”, e a sua narrativa trivial é pontuada pelas mesmas personagens teen and horny, descartáveis, que preenchem historicamente tantos outros slashers. Ainda assim, o filme não esconde também as suas ambições cinematográficas maiores. Seguindo obstinadamente sobre as costas de (mais um) antagonista sobrenatural, perdemo-nos, literal e demoradamente pela paisagem envolvente de uma floresta, anónima e misteriosa. Ao horror do género funde-se aqui a nosso necessário desconhecimento daquele mundo vegetal e animal – duas identidades mudas, e ambos elementos fortes da sua expressividade obscura. Ora, se a ideia de slow cinema, a partir da qual se descreve convenientemente In a Violent Nature, é uma noção tão vaga quanto vazia, será também indiscutível a evidente precipitação que conduz a montagem do filme. A momentos trapalhão nas suas composições, existe aqui um gosto demasiadamente apressado nos passeios do nosso monstro, uma exploração demasiadamente elíptica do conceito formal do filme. Entretanto, às interações daquela figura grunge com os seus vizinhos – divertidas por serem tão espalhafatosas – parece faltar também uma leitura mais clara da expressividade de cada gesto, do ritmo de cada golpe (…pensando em Bresson). O filme acaba, enfim, por se orientar a dois públicos “distintos”, que Nash terá imaginado antagónicos, mas aos quais quer agradar em simultâneo.
Miguel Allen
Uma proposta de partida tão interessante quanto arriscada: juntar talvez o subgénero mais concreto que existe a uma forma contemplativa, talvez etérea. Infelizmente, o receio maior (de que este exercício não fosse além de uma pequena curiosidade) confirma-se. Mais do que etéreo, este filme parece ter cheirado éter. Inebriamo-nos, sem dúvida, nas composições bucólicas, no minimalista setup de assombração florestal e nos (quase) constantes planos subjetivos do assassino. Contudo, rapidamente nos sentimos esmorecer na fatal repetição, na falta de nervo em que os momentos de matança – alguns dos quais bastante originais, há que dizê-lo – molemente se disspam e até nos clichés – quer dos slashers, quer dos indie arthouse movies feitos à medida de festival europeu. Ainda que formalmente esteja uns furos acima do que se tem feito nesta franja do terror, In a Violent Nature acaba por ser a versão mastigada do conceito (já de si duvidoso) de slow cinema. Poderia ser admirável – até escabrosa – a execução de cenas de violência a um ritmo deliberadamente lento, fosse a imaginação de Chris Nash (realizador) dotada de outros requintes de malvadez, ou de ideias que se estendessem para além do que é mostrado. Mas a natureza deste projecto parece ser mais cínica do que violenta, e a ânsia de tornar tudo digerível para um público alargado, numa era que não prima pela tolerância à lentidão, acaba por trair muitas vezes o próprio gimmick que deveria diferenciá-lo. Vale por uma fotografia e direção de arte cuidadas e pelos momentos em que o vento captado a soprar nas árvores, indiferente a cada investida do mostrengo, nos leva a crer que seremos lançados para outras paragens.
Gil Gonçalves
In a Violent Nature não foi exatamente o que estava à espera. Gostei do conceito do filme e de um ou outro toque de câmara ao estilo de Gus van Sant/Aronofsky, quando seguimos de perto o nosso token serial killer imortal. Contudo, à parte de alguns planos visualmente interessantes e de uma ou outra morte mais criativa, o filme teve, no geral, pouco de verdadeiramente memorável. O problema de o filme se focar no assassino em vez de no grupo de adolescentes prestes a serem eliminados é que não conseguimos criar qualquer ligação com as personagens. No fim, não acabamos por torcer por ninguém. E, sinceramente, com a pouca exposição que temos a estas personagens, todas elas parecem tão irritantemente tontas que talvez seja melhor assim. As mortes são bastante brutais – uma delas é algo que nunca tinha visto antes – mas sinto que o filme se apoia demasiado nisso para construir a sua identidade. É o típico “terror indie artístico com mortes brutais”. E não tem muito mais camadas além disso. O que me surpreendeu foi que, para um filme tão investido em mostrar mortes gráficas e violência ridícula – embora esporádica – foi bastante fraco na caracterização do assassino. Com a máscara, ele até conseguia ser intimidante e enigmático, mas sem ela… a maquilhagem deixou muito a desejar. Mesmo quando só vemos a parte de trás da cabeça, a aparência borrachosa e artificial estraga o efeito. Recomendo este filme mais como uma curiosidade para quem gosta de explorar filmes de terror fora do convencional. Quer ser um slasher intelectual mas com violência ao estilo de Terrifier, e para mim, essa combinação não resultou muito bem.
Carla Rodrigues
O que se diz é verdade: quase não acontece nada. Chris Nash procura fazer um filme conceito de terror elevado, filmado através de ângulos pouco ortodoxos, necessariamente mais paisagísticos (dir-se-ia, em linguagem leiga, artísticos), naquilo que pretende ser um teen slasher filmado do ponto de vista do assassino. Tudo parece muito bem em papel, mas apenas em papel. O filme de Nash filma muitas vezes as costas do assassino a andar pela floresta lentamente, é verdade, pausando essa lógica com as anunciadas mortes que serão inevitavelmente os (únicos) momentos de “interesse” do filme. A forma verdadeiramente grotesca como são filmadas, aparentemente tudo com efeitos especiais práticos, são um deleite para os fãs de um cinema de terror mais sangrento. A ironia é que mesmo todos estes litros de sangue não são suficientes. Um argumento verdadeiramente vazio, com um final longo e completamente inconsequente, que ademais viola a premissa de “slasher do ponto de vista do assassino” (nunca o é verdadeiramente), fazem de In a Violent Nature um teste de paciência a uma certa sobranceria cujo público alvo é difícil de definir. Prova disso foram as dezenas de pessoas que abandonaram a sala ao longo da exibição num festival que é precisamente dedicado aos fãs do terror.
David Bernardino