O Festival e a Revolução
Nos passados dias 7 a 17 de Março, celebrou-se em Lisboa a 23º edição da MONSTRA, um dos grandes eventos anuais no cinema da cidade, neste tomo que teve como temas-chave a liberdade de expressão e os 50 anos da Revolução dos Cravos – assim nos diz Fernando Galrito, o director artístico do Festival, na sua apresentação. Estivemos presentes, e a cerimónia de abertura foi, com felicidade, um evento agregador, de celebração e de grande entusiasmo no Cinema São Jorge, como tem sido ao longo dos últimos anos.
Abriu-se precisamente com os temas em destaque, na forma de duas curtas feitas a muitas mãos diferentes, uma, “A Revolução”, oriunda de escolas de animação de vários países europeus, juntos em colaboração, e a segunda, “Esta é a Nossa História”, fruto de uma residência artística com jovens dos 17 aos 23 anos que teve lugar na Casa da Cerca – Centro de Arte Contemporânea, em Almada. Depois, assistimos também à estreia mundial do novo filme de André Carrilho, “A Menina com os Olhos Ocupados”, e, finalmente, à atribuição de Prémio Carreira a José Manuel Xavier, acompanhada da estreia do seu novo filme “Saudades… Talvez”, uma curta-metragem de excelência que destacamos pessoalmente.
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Tivemos também direito a número de dança tradicional irlandesa, pois foi este o país-irmão, país em destaque, desta edição da MONSTRA em 2024, e a programação dedicada passou, entre outras coisas, por mostra dos filmes do estúdio Cartoon Saloon e importantes retrospectivas de Jimmy Murakami (When the Wind Blows) e de Don Bluth.
Em Busca do Vale Encantado (1988) e Todos os Cães Merecem o Céu (1989), de Don Bluth
Foi nas sessões deste último que estivemos mais presentes, tendo tido a oportunidade de ver All Dogs Go to Heaven (Todos os Cães Merecem o Céu, 1989) e The Land Before Time (Em Busca do Vale Encantado, 1988), filmes extraordinários, o segundo (The Land) mais do que o primeiro, devido a uma maior destilação emocional e moral (não é à toa que Bluth, Spielberg e Lucas – que estiveram na produção executiva – idealizaram inicialmente o filme sem diálogo, como acontecera 50 anos antes em Fantasia). É um filme com uma história de produção interessante, existindo mais de 12 minutos cortados devido a um consenso por parte de Spielberg, o produtor Gary Goldman e outros de que o filme seria demasiado perturbador para crianças – esses 12 minutos corresponderiam a sequências prolongadas dos ataques do Tiranossauro Rex, assim como de maiores perigos e dificuldades para os protagonistas. Continua a ser um filme notavelmente sensível, na medida em que estamos sempre conscientes de uma grande precariedade (fome, rumo desconhecido, perigo mortal) que acompanha Littlefoot e os amigos, de uma grande ameaça à sua sobrevivência – mas isto é uma qualidade, não um defeito, pois carrega em si a promessa, e depois a concretização, de um final verdadeiramente feliz.
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Bluth, que não apreciou estes cortes, voltaria a ter de fazer uma pequena cedência em All Dogs go to Heaven, pois a cena onde o cão Charlie tem um pesadelo sobre estar no Inferno seria originalmente um pouco mais comprida – a sensibilidade das crianças foi mais uma vez citada. Estamos efectivamente a falar de um filme que nos mostra Satanás a visitar a Terra, perto do final, quando Charlie tem de se despedir da pequena Anne-Marie, a sua companheira – apesar de ser felizmente aniquilado de súbito às mãos de um anjo, fruto da derradeira bondade que Charlie mostra na sua vida (afinal, todos os cães vão para o céu porque, ao contrário das pessoas, são naturalmente clementes, leais e bondosos).
Há um elemento biográfico que talvez ajude a clarificar estas curiosidades: Bluth faz parte da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (Igreja Mórmon), e numa boa entrevista à revista LDS Living, explica a diferença entre filmes da Disney como Branca de Neve, Pinóquio ou Bambi, e, por exemplo, Robin dos Bosques, onde ele próprio trabalhou. Os primeiros, diz-nos, transmitiam a “alta moral” de uma forma extraordinária, pois os vilões eram terríveis e assustadores (e evocamos aqui facilmente a baleia de Pinóquio, também ela alvo de alguns cortes na animação para moderar o terror) . Outros filmes posteriores, talvez com mais receio de perturbar espectadores, talvez com mais preferência pela comédia, afastaram-se desta tradição. Bluth diz-nos: “Na vida real, temos um vilão? Sim, Satanás. E temos um herói? Sim, trata-se de Cristo. E os dois estão em guerra, e nós somos o prémio. Portanto parece-me que se vamos falar sobre coisas reais, mesmo na caricatura, mesmo em desenhos animados, temos de incluir esse cenário.” Para o realizador, um dos centros dos seus filmes é esta oposição entre o bem e o mal, delineada pelos obstáculos no percurso do protagonista heróico e pela sua resolução destes.
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Bluth realizou, é facto, extraordinárias fábulas morais, com um impacto geracional marcado – estas duas entre outras – e mostrou-se um nome profundamente importante na história da Animação; tivemos nós a felicidade de ter a sua obra em retrospectiva aqui este ano.
The Concierge, de Yoshimi Itazu e Mars Express, de Jérémie Périn
Tivemos também a oportunidade de assistir a duas longas em competição: The Concierge, primeiro filme do realizador anime Yoshimi Itazu, é uma comédia caricata sobre um centro comercial, com empregados humanos, que existe apenas para servir animais de espécies extintas ou em vias de extinção (mamutes, lobos japoneses, dodós), para que estes possam passar tardes a comprar vestidos caros, relógios, perfumes e jantares em restaurantes de luxo. As vinhetas cómicas – e dramáticas – relacionam-se com a protagonista, uma empregada de andar recém-contratada, e os desafios que tem pela frente para trazer felicidade a todos estes clientes.
“Mars Express” visto por David Bernardino, com parágrafo da sua autoria:
Mars Express, do realizador Jérémie Périn, foi uma belíssima surpresa. Filme sci-fi puro, para um público adulto, trata a velha dualidade do género: humanos vs robots, inteligência artificial vs inteligência analógica (?). O filme de Périn bebe das influências de Paprika e Akira, mas apresenta-se de uma forma muito mais mundana, dir-se-ia credível, com um universo meticulosamente construído tal como a lógica por detrás da sua tecnologia. O futuro talvez possa vir a ser isto. Mars Express mistura ação sci-fi com noir, sempre em torno do tema da coexistência entre máquinas e seus criadores. Mars Express claramente beneficia por ser animação e não live action, permitindo uma maior liberdade criativa e artística que provavelmente não seria possível sem um enorme orçamento para efeitos visuais que decerto acabariam por sugar a alma ao universo do filme. Em vez disso, obtivemos uma excelente produção oriunda de França que ombreia com alguns dos melhores exemplares vindos da animação japonesa.
Das curtas-metragens a que assistimos, gostaríamos de destacar Green Grass de Eli Augarten, Disc+Dog, de Tomek Duckl, Compound Eyes of Tropical, de Zhan Zhang Xu, e Heart Hug, de Rimma Gefen e Nika Zhukova.
Com a certeza de presença para o ano, e nos outros todos, despedimo-nos de mais uma grande MONSTRA em Lisboa.