Desde Novembro de 2021 que a produtora/distribuidora The Stone and the Plot se juntou ao programador e especialista em cinema japonês Miguel Patrício para trazer às salas comerciais portuguesas algo de verdadeiramente diferente: os ciclos dos “Mestres Japoneses Desconhecidos” que, com um integral da realizadora Kinuyo Tanaka pelo meio, estrearam no passado dia 30 de Janeiro a sua quarta incursão. As obras escolhidas por Miguel Patrício, desta vez, foram: Roída até ao Osso (1966) de Tai Katô, Imagem de uma Mãe (1959) de Hiroshi Shimizu e Yoko, a Delinquente (1966) de Yasuo Furuhata.
Três filmes distintos em permanente diálogo. No centro dos três, uma mulher protagonista. No fim, raras resoluções felizes, sob o olho de 3 realizadores masculinos em momentos distintos das suas carreiras.
imagem de destaque : Catarina Sampaio
Roída até ao Osso (1966) de Tai Katô
Roída até ao Osso será eventualmente o mais desconcertante dos três filmes, principalmente do ponto de vista formal, com planos fechados absolutamente caóticos, que insistem em colocar o olho do espectador dentro da própria câmara, observando perfis cortados, informação em background e foreground, traduzindo-se numa estética absolutamente autoral naquele que é, na verdade, um cineasta de estúdio em meio de carreira. Essa “falta de regras” de imagem poderá, para alguns, ser interpretada como uma ausência de rigor, ou até falta de gosto, mas não é só na sua componente formal que Roída até ao Osso é desconcertante. A narrativa trágica foca-se numa jovem vendida pelos pais a um bordel do início da era Meiji, devido às dificuldades económicas, mas também para que esta tenha um futuro enquanto Geisha e possa enviar dinheiro para a família. Essa narrativa, evidentemente trágica, saltita inesperadamente entre o melodrama e um jeito cómico, por vezes até algo infantil, tendo alguma dificuldade em encontrar um equilíbrio tonal. Talvez seja por essa razão que o filme de Tai Katô é um objecto tão único, rebelde a todos os níveis, numa história com laivos aparentemente tradicionalistas.
Imagem de uma Mãe (1959) de Hiroshi Shimizu
Considerado por alguns a jóia da coroa desta IV edição dos Mestres Japoneses Desconhecidos, Shimizu regressa às salas portuguesas depois do sucesso de O Som do Nevoeiro. Imagem de uma Mãe será, de certa forma, a antítese de Roída até ao Osso. Um filme clássico do pós guerra japonês, redondo, com uma narrativa melodramática poderosa sobre uma mulher que se torna madrasta de uma criança cuja mãe faleceu. O último filme de Shimizu é uma contemplação sobre essa espécie de amor materno, que nunca o é realmente, filmado principalmente do ponto de vista do jovem Michio, silenciosamente revoltado. Ao colocar esta mulher no papel de protagonista, e de certa forma vilã (que não é), o filme explora as subtilezas das dinâmicas familiares numa sociedade onde a educação e as normas sociais impedem a comunicação livre e clara, criando um silêncio impiedoso, capaz de revolver as entranhas emocionais do espectador num jogo emocional que culmina em inevitáveis lágrimas.
Yoko, a Delinquente (1966) de Yasuo Furuhata
Ao passo que Imagem de uma Mãe foi o último filme realizado por Hiroshi Shimizu, Yoko, a Delinquente trata-se do primeiro filme de Yasuo Furuhata, realizado no mesmo ano que Roída até ao Osso. Novamente centrado numa personagem feminina, Yoko é uma jovem rapariga do campo, recém-chegada a Tokyo, que rapidamente se deixa influenciar pela vida nocturna e a marginalidade dos jovens da época, viciados em comprimidos para dormir com efeitos psicotrópicos. Contrariamente aos outros dois filmes do ciclo, Yoko, a Delinquente apresenta uma estética pop, veloz e sem pudores, frenética, com uma câmara a flutuar entre os quartos dos jovens marginais (muitos deles filhos de boas famílias) e os clubes de jazz adornados por uma banda sonora absolutamente eclética e quente. Um excelente exemplar da contra-cultura da nouvelle vague do cinema japonês, é de destacar uma das caóticas cenas no bar de jazz frequentado por estes jovens, onde um homem mais velho julga o seu comportamento. Trata-se de Shuji Terayama, o mesmo que viria a realizar mais tarde a obra-prima desta corrente do cinema japonês “Throw Away Your Books, Rally in the Streets“. Curiosamente, está também presente Eiji Okada, protagonista de Hiroshima Mon Amour.