Megalopolis, de Francis Ford Coppola : do assombro e do desastre

Miguel AllenOutubro 17, 2024

Megalopolis quis-se e vemo-lo hoje como o filme final de Francis Ford Coppola. O filme quis-se e vemo-lo hoje como um anunciado “regresso” do autor após projectos independentes menos emblemáticos (porque menos monumentais – falamos de números e não dos filmes em si) e, porque não, como uma anacrónica apologia ao valor histórico do cinema por um dos seus autores mais celebrados na segunda metade do século passado. Mas que filme é este Megalopolis? O filme chega-nos, enfim, com algum atraso e inevitavelmente carregado das necessárias opiniões, quiçá ensurdecedoras, de todos os que puderam, entretanto, testemunhar o evento.

 

Neste monumental festim de cinema “barroco”, é muito pouco provável que algum espectador possa encontrar em Megalopolis a obra que esperava. Parece-nos, aliás, pouco provável que o próprio Coppola encontre sinceramente neste filme o Megalopolis que transportou consigo durante longos anos. Chegados ao fim – do filme e provavelmente da obra de Coppola – Megalopolis é um gigantesco e extenso bazar do cinema do velho autor. Um “bazar” em tudo que a palavra nos pode oferecer de sugestivo e misterioso, ou de confuso e sobrecarregado. A “Sunny Hope” e o bébé “Francis”, Shia LaBeouf e Jason Schwartzman*, film noir e musical, sócio-realismo político e ficção científica. Algures, e estranhamente, entre The Godfather (1972) e Youth Without Youth (2007),  mas discorrendo como um The Cotton Club (1984) totalmente incongruente. Arrebatador e insuportavelmente kitsch. A tempos espantoso, mas sempre confrangedor.

Um filme terrivelmente carregado de “tralha”, um’A Morte de Virgílio (Broch, 1945) por youtube. É-nos difícil encontrar uma “forma” de apreciar Megalopolis. Narrativamente, é uma grande bagunça (não necessariamente algo de negativo), não sendo por isso de admirar que Peter Bradshaw não tenha gostado do filme. A sua evidente pretensão é sustentada por diálogos pomposos que, por vezes no limite do compreensível, evocam um abundante e abrangente mau gosto. E fora algumas “frases-chave”, a fábula de Coppola, sem ser particularmente confusa, é muito pouco legível, e nisso, até mesmo os seus pontos mais frágeis – como a projeção do realizador na sua personagem principal, íntegra, talentosa e capaz de poderes especiais – não chegam aqui a chocar.

 

De um ponto de vista formal, a sobreprodução ostensiva das suas imagens não está longe de um trabalho de fundo publicitário – a direção de fotografia de Mihai Mălaimare Jr. é desastrosa**, e a materialidade do filme revela-se quase sempre “sintética”. Um enjoo, tudo parece aqui onerosamente barato. A montagem é um mistério, dificultando a leitura de muitas passagens e roubando-as de qualquer intuito que poderia existir para além do seu imediato carácter jocoso (veja-se a discussão quase – quase – “teatral”, de intento shakespeariano mal orientado, sobre a maquete da cidade). E claro, num filme que tanto nos cansa com pormenores superficiais, existem simplesmente demasiados palhaços em cena.

Quando aborda o seu Cesar Catilina (Adam Driver assoberbado de trabalho), a trama de Megalopolis parece então tentar justificar qualquer das suas extravagâncias de fanfarrão como a demonstração de um génio excêntrico. Ser-nos-á impossível não bocejar defronte do empenho balofo de qualquer performance de Cesar no seu atelier. E aquela utopia desenfreada das suas arquitecturas (ah, desenha como um César !), ilustrada como se de um generoso gesto messiânico se tratasse, é afinal o esboço do mesmo lixo alienado burguês, que enche hoje as escolas de arquitectura. Com tanta conversa sobre “humanismo”, a obra do iluminado arquitecto é, afinal, profundamente desenraizada de uma realidade social dura que Coppola se lembra, por vezes, de mencionar. E Megalopolis, como a horrenda transformação que Cesar projecta para aquela zona destruída da cidade (ah, o inusitado satélite soviético que surge para servir o ímpeto de expressividade umbilical do nosso criador !), é o projecto definitivo de um autor, potencialmente genial, cuja mão parece hoje ultrapassar, em larga medida, a sua noção de lugar, tempo, e sociedade.

Partamos enfim da reflexão figurada, algo infantil, que o filme labora (“don’t let the now destroy the forever“). Será na sua incapacidade de olhar sobre um Presente, que Megalopolis não conseguirá encontrar-se e, daí, projectar-se num Futuro. Os horizontes que desvenda, ainda que com lampejos de génio, são afinal delírios confusos e atabalhoados sem clara noção de espaço ou contexto. Até mesmo a referida decadência daquele império de New Rome, jamais se chega a evidenciar (ou justificar). E pela maior das ironias, o filme é afinal, uma obra terrivelmente ancorada no seu tempo, um filme de “hoje” – porque tão ostensivamente envolto e perdido no seu próprio lixo.

 

Claro que Megalopolis também nos sabe encantar, esporadicamente, a partir da evidente inspiração de algumas (…poucas?) das suas inúmeras ideias – composições surrealistas, sobreposições evocativas, e aquela mão que nos rouba a lua. E enquanto um “todo”, se esse todo pudesse de facto aqui existir, trata-se de um filme que ainda nos interessa, apesar da sua megalomania cinematográfica – ou, melhor, por causa dessa dita megalomania, desse seu monumental desfasamento com algo de concreto. Enfim, o maior elogio que lhe poderemos encontrar hoje, é que nos relembra Attack of the Clones (2002, George Lucas), mas como se realizado por Powell & Pressburger, num estado de embriaguez tal que não conseguiriam terminar nem a mais simples frase. Uma miscelânea explosiva de conceitos, o louco desastre de uma obra-prima (?) estourada pelo próprio autor. Não conseguimos desviar o olhar, talvez, mas nem sempre pelas melhores razões. A rever, seguramente, mas com as devidas reservas. O tempo não parou.

 

 

* ambos horríveis, e cada vez piores. Se Schwartzman é provavelmente o pior actor da história, o tempo em cena de LaBeouf será um dos aspectos mais difíceis de suportar do filme – excruciante;

** os planos que se presumem ser da autoria de Ron Fricke são uma bem-vinda lufada de ar fresco num filme tão asfixiado pelas suas imagens saturadas. Nesses breves planos tudo parece ter outro peso, e falar enfim de qualquer coisa mais tangível.

 

Miguel Allen