O cinema chinês tem nas últimas décadas dado um salto quantitativo e qualitativo substancial, não só aumentando o número de filmes produzidos, mas também sendo capaz de fabricar obras de elevado valor de produção, equiparáveis aos blockbusters de Hollywood. Nos últimos anos em particular, tem sido cada vez mais comum ver um ou dois filmes oriundos do país asiático entre os mais lucrativos – são casos Wolf Warrior 2 (sétimo em 2017), Ne Zha (décimo-segundo em 2019) e Mei Ren Yu (décimo-quarto em 2016), já não contando com o domínio do cinema chinês nos anos marcados pela pandemia de Covid-19(1). Apesar deste percurso impressionante, e ao contrário dos seus congéneres americanos, as grandes produções chinesas devem o seu sucesso nas bilheteiras quase exclusivamente (nalguns casos exclusivamente) ao mercado interno(2).
É neste contexto que começam a surgir as grandes produções sino-americanas: se, por um lado, as produtoras chinesas gostariam de levar o seu trabalho além-fronteiras e alargar o seu mercado, para Hollywood a perspectiva de acesso mais facilitado (à semelhança do que acontece em muitos países europeus, a China aplica quotas de mercado ao cinema nacional, mas, no seu caso, estas limitam grandemente o número de filmes estrangeiros lançados comercialmente) a um universo de espectadores que consegue levar sozinho um filme ao topo de vendas mundiais é muito aliciante. Porém, apesar do sucesso relativo de alguns destes filmes, os resultados ficaram aquém do esperado e, para muitos espectadores, a sua qualidade percepcionada era baixa.
Assim, surge em 2018 o The Meg original, o inesperado filme de tubarões que viria a tornar-se a produção sino-americana de maior sucesso comercial de sempre – 527,8 milhões de dólares, dos quais 143 nos EUA e 153 na China, destronando desta forma o anterior dono do título, O Panda do Kung-Fu 3 (2016) (521,2 milhões)(3). Realizado por Jon Turteltaub, The Meg ficava um pouco aquém quanto à sua imaginação visual, com poucas sequências memoráveis e ainda menos demonstrações de controlo da parte da realização, cabendo em grande medida ao guião absurdista e despreocupado e ao elenco, cujo carisma conseguiu projectar os seus momentos mais cómicos, torná-lo uma experiência cativante, evidentemente capaz de convencer audiências pelo mundo fora.
Como se deixa perceber por este historial, é o lucro e a economia global que traz estes desenvolvimentos e move quem os pensa e financia, não fosse na sociedade actual a arte, incluindo o cinema, apenas mais uma indústria a explorar. Ainda que as condições em que se encontram as pessoas sejam essenciais para o desenvolvimento das suas opiniões e ideias, há um elemento subjectivo em constante mudança e difícil de prever e, por isso, até com filmes produzidos em laboratórios sociais, o mercado por vezes escreve torto por linhas direitas (não é preciso ver o filme para se dizer que o Matt Damon a correr pela Muralha da China fora tinha tudo para ser o sucesso que não foi). Deste modo, se por um lado as grandes produções cinematográficas sino-americanas são uma natural consequência do desenvolvimento da economia capitalista e global e, em particular, da interdependência das economias norte-americana e chinesa (para além do elevado volume de trocas comerciais entre ambas, a República Popular da China é o segundo maior dono estatal de dívida pública americana, a seguir ao Japão (4)), por outro, navegam num mundo onde o discurso mediático nos EUA e seus aliados é cada vez mais hostil à China.
Será porventura por isso que, ao retomar a história do piloto de submarinos Jonas Taylor iniciada com o original, Meg 2: O Regresso do Tubarão Gigante (2023) dá prova de uma consciência social aumentada relativamente ao seu predecessor, ainda que sem aprofundar (jogo de palavras inevitável) muito os relevantes temas que introduz. No interregno entre os dois filmes, a personagem de Jason Statham dedicou-se a missões de prevenção de exploração submarina indevida, trabalhando para uma ONG de conservação do oceano, a par do trabalho que continua a ter no âmbito da empresa responsável pela plataforma de investigação marina do primeiro filme, agora adquirida por um empresário chinês – interpretado por Wu Jing, protagonista da série de filmes Wolf Warrior, anteriormente referida -, também ela assumindo a sua vertente ecologista de exploração sustentável dos recursos oceânicos.
Esta perspectiva entra naturalmente em choque com uma outra, liderada por uma oligarca norte-americana, infiltrada dentro da empresa, que procura utilizar a produção científica da plataforma para secretamente levar a cabo operações ilegais e altamente lucrativas de mineração submarina de metais raros – “essenciais para o fabrico de semicondutores”, como nos é explicado -, que, em última análise, põem em risco não só os ecossistemas submarinos, como também as populações. Deste modo, o piloto de submarinos americano (embora interpretado por um actor inglês) e o empresário chinês terão de unir esforços para parar estes terríveis planos, juntamente com a sua também internacional equipa de investigadores (ou serão apenas bolseiros de investigação?).
Comparativamente ao primeiro The Meg, Meg 2 aumenta a parada significativamente tanto quanto número, quanto à variedade de criaturas jurássicas que apresenta, tanto que, se um Meg 3 se perspectivar, este tem uma elevada probabilidade de ser um filme kaiju assumido – uma desinibição visual que, contudo, não dá origem a muito mais que umas poucas sequências mais originais. Aumentar a parada é, aliás, o único caminho em frente para um filme que não consegue segurar tensão narrativa ou visual e, por isso, sistematicamente injecta mais e maiores monstros para dar novo alento a uma história que parece estar sempre na iminência de terminar. A mudança na cadeira de realização para Ben Wheatly é praticamente imperceptível, sendo o filme incapaz de forjar uma identidade visual estimulante – à excepção da cena de mergulho próxima do início do filme, quase não há imagens expressivas ou surpreendentes, até de um ponto de vista meramente estético. A falta de concepção espacial das cenas mergulha (lamento a escolha de palavras) o espectador numa desorientação total, um efeito que parece agravado pelo 3D. O enredo, embora preservando alguns momentos cómicos, é, globalmente, menos orientado para a comédia e mais para um drama familiar que pouco acrescenta – assim acontece quando uma criança se torna adolescente.
Não obstante as suas limitações, Meg 2 vai-se mantendo à tona (foi a última vez) com o seu elenco ainda carismático, os seus tubarões de efeitos especiais e, sobretudo, o seu significado. A emergência da economia chinesa e aumento da sua influência política à escala internacional são elementos que objectivamente contrariam os objectivos do imperialismo norte-americano de hegemonia global, dando azo a uma guerra comercial mais ou menos declarada através de apelos a “decoupling estratégico” (ou a sua mais recente variação eufemística, “de-risking” (5)) e aplicação de sanções. Os semicondutores mencionados no filme são actualmente fundamentais para as indústrias tecnológicas e a sua produção está concentrada na ilha de Taiwan (6), tornando este território num ponto nevrálgico do conflito. A visita não-anunciada de Nancy Pelosi à ilha que os próprios EUA reconhecem como parte integrante do território da República Popular da China no ano passado, assim como os repetidos anúncios de apoio militar americano à ilha, mais recentemente no mês passado com o valor de 345 milhões de dólares (7), não podem ser entendidos senão como provocações e instigações da confrontação. No passado, quando a China era o território de eleição para a burguesia inglesa escoar o seu ópio em troca de matérias-primas valiosas, o Imperador chinês, ao ver a saúde da população, cada vez mais dependente desta droga, degradar-se, procurou limitar o fluxo de ópio para o país fechando os mercados. Estes foram então abertos à força naquelas que ficaram conhecidas como Guerras do Ópio. O sucesso comercial de filmes como The Meg é apenas mais um pequeno sinal de como hoje, talvez até mais do que à época entre China e Inglaterra, existe uma integração económica de parte a parte entre China e EUA que realisticamente exclui a possibilidade de um “decoupling”, como, de resto, os indicadores económicos que contradizem este discurso também o comprovam (8). Por estas razões e tendo em conta o historial, o aumento das tensões entre os dois países não pode, de qualquer modo, ser visto como solução. Pelo contrário, Meg 2: O Regresso do Tubarão Gigante aponta um caminho alternativo, onde as duas maiores economias do Mundo cooperam em torno de temas cruciais como o combate às alterações climáticas e a conservação do meio ambiente, onde os interesses económicos de uma pequena minoria são postos de lado pelo interesse das populações que nada têm a ganhar com as guerras – económicas, ou outras.
(1) – https://www.boxofficemojo.com/year/world/2020/
(2) – https://chinapower.csis.org/chinese-films/
(4) – https://usafacts.org/articles/which-countries-own-the-most-us-debt/
(5) – https://www.youtube.com/watch?v=E-vI1Rz6SWY
(7) – https://www.aljazeera.com/news/2023/7/29/us-announces-345m-weapons-package-for-disputed-taiwan