Marx Può Aspettare, de Marco Bellocchio: da ficção ao documentário

Bruno VictorinoSetembro 12, 2022

Marco Bellocchio, realizador octogenário e uma das referências do cinema italiano, passou grande parte da sua carreira a tentar compreender o suicídio de Camillo Bellocchio, seu irmão gémeo, em 1968. Utilizando a ficção como instrumento, tem procurado, através da abstração da sua experiência pessoal, encontrar alguma verdade escondida na tragédia, que, de alguma forma, apazigue o inescapável sentimento de culpa que o assola desde então. Ciente de que a sua vida e a dos restantes irmãos se vai aproximando progressivamente do fim, Bellocchio opta agora por realizar um documentário, sugerindo que a ferida deixada pelo trauma permanece por sarar, recorrendo agora a este formato para mais diretamente lidar com ela.  

O filme vai intercalando fotografias familiares pré 1968 e testemunhos dos Bellocchio, com excertos dos filmes realizados pelo próprio durante a carreira e que abordam, direta ou indiretamente, o luto provocado pela fatalidade. É a permanente costura com os filmes anteriores que vai elevando a forma de Marx Può Aspettare para além do documentário convencional, composto maioritariamente por “cabeças falantes” e que abunda pelas plataformas de streaming. Um dos momentos de montagem mais marcantes ocorre quando Bellocchio revisita o filme Gli Occhi, la Bocca (1982), onde o protagonista profere a expressão que dá título ao novo documentário, que, sabemos agora, foi proferida pelo irmão do cineasta italiano pouco antes de atentar contra a própria vida. Um silencioso grito de ajuda, só posteriormente percepcionado como tal. Palavras cravadas no espírito de Marco Bellocchio, sucessivamente exorcizadas através do cinema, ainda que infrutiferamente.

O apelo da última obra de Bellocchio não estará totalmente dissociado do envolvimento e conhecimento do espectador da restante filmografia do cineasta italiano, das suas preocupações e sensibilidades. Tanto Marx Può Aspettare é enriquecido pelos filmes anteriores do realizador, como a sua restante obra cinematográfica acaba engrandecida pelo presente documentário. Um movimento recíproco na forma como o autor permite ao espectador aproximar-se do seu íntimo e ligar as referências autobiográficas da sua obra. Referências de uma experiência individual que acabam por ser também ilustrativas de uma época e de se cruzar com a história de um país (Itália). Confrontando os valores da família e da religião profundamente enraizados na sociedade italiana, Bellocchio procura libertar-se das amarras de um conservadorismo castrador e indiretamente responsável por tragédias como a sua. Se a ficção não foi suficiente, pode ser que o documentário lhe permita alcançar um pouco mais de paz.     

Bruno Victorino

Bom

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