No contexto da trilogia de biopics femininos de Pablo Larraín, Maria surge-nos imediatamente como uma proposta algo diferente. Enquanto Jackie (2016) e Spencer (2021) cenarizaram duas mulheres em momentos distintos de mudança pessoal, na perda e no sufoco respectivamente, Maria fazia antever um biopic mais ligado ao convencionalismo, principalmente pela força de uma personalidade sobretudo marcada pela mitologia em torno de si. “You and I belong to a very small group of lucky angels that can go anywhere we want in this world”, diz Callas (Angelina Jolie) a JFK numa cena de encontro planeado após Callas descobrir o affair entre Jackie e o seu marido, “but we can never ever get away”. As palavras de Jolie poderiam tão facilmente ser dirigidas a Jackie Kennedy ou a Lady Di: o privilégio não resiste à ordenação social, a mulher não resiste ao mito. Maria é prendido por Larraín a um confinamento temporal e espacial, a que este procura resistir com o uso de flashbacks estilizados, mas que o mantém enlaçado a uma Paris na década de 70 e a um apartamento tão grandioso quanto constrangedor.
Callas vive uma última semana de vida na companhia de um staff pessoal de longa data, composto por uma cozinheira (Alba Rohrwacher) e um criado (Pierfrancesco Favino), que mimetiza a vida familiar que em tempos idealizou ao lado de Aristotle Onassis (Haluk Bilginer). Larraín idealiza uma estrutura narrativa não muito dissimilar daquela do mais recente filme de Paul Schrader, Oh Canada, com o uso de uma entrevista como modo de retrospecção e introspecção, o tal confessional schraderiano. Os terrores passados de Callas, momentaneamente aliviados por abusos de substâncias, são ilustrados por uma entrevista fictícia com um repórter (Kodi Smit-McPhee). “I’d like to walk with you through your life”, diz Smit-McPhee: Larraín reencontra a nouvelle vague na sua utilização do espaço citadino como motivo de reflexão. Aqui, Callas revê fogachos da vida que deixou para trás numa Grécia marcada pela ocupação nazi. A exploração sexual às mãos de soldados do exército alemão, a descoberta do talento vocal, a relação de interesse com a mãe.
Ainda assim, o principal motivador para a Maria de Larraín é um de redescoberta. Callas, na busca de um retorno à ribalta, à imagem de alguém que frequenta restaurantes, não para comer, mas para “to be adored”, vai ensaiando um regresso aos palcos com encontros acompanhados ao piano crescentemente mais desesperados. Aliás, sendo obviamente transparente o amor de Larraín pela ópera, não é de estranhar que muito do que aqui seja retratado nos confins desse espaço seja abertamente adorador da figura de Maria Callas. Stephen Ashfield vai dizendo a Angelina Jolie que “you are Maria Callas, you are not late, everyone else is early”, ainda que mais ninguém fosse esperado. O comeback de Callas pela mão de um grupo muito restrito de pessoas da sua confiança é, a todos os títulos, formalmente genuíno. O seu desejo de adoração vem, para Larraín, na sombra de um abandono geral apenas contrariado por Rohrwacher e Favino, e aqueles que a mantêm sob a luz intensa dos holofotes do passado.
Essa relação com o tempo é sobretudo sublinhada na cena de encontro entre Callas e a irmã no luxo de uma Paris familiar para Callas mas alienígena para a sua irmã (Valeria Golino). Ambas partilham os mesmos fantasmas do passado, mas Maria recusa abandonar e “fechar a porta”, seguir e abstrair, com o receio de deixar a música para trás. Essa relação com a música é retratada por Larraín por meio de uma simbiose entre dependência e amor genuíno. Maria recusa ouvir a sua voz gravada por receio de ser confrontada com a representação da sua própria perfeição, e é o confronto com a sua condição actual, a gravação do seu eu, que motiva a sua derradeira reclusão. O desabar da ilusão de renovada relevância musical leva a uma introspecção novamente marcada pela perda e pela promessa de amor familiar: ao recordar a sua última visita a Onassis, Callas lamenta ter saído pela porta dos fundos (“even in death, I was the secret”).
Esta avalanche de nostalgia coloca Maria num plano temporal marcadamente diferente de Jackie, profundamente um filme do seu presente, ou Spencer, de olhos postos num futuro desagrilhoado (ao som de All I Need Is A Miracle). Jolie não é um encaixe tão natural e inspirado enquanto Callas quanto Portman e Stewart o foram em relação a Jackie e Diana respectivamente, mas a insistência de Larraín em construir uma Paris opressiva, com a inspiração da fotografia de Ed Lachman, envolve a figura de Callas numa prisão de sua própria criação que funciona competentemente enquanto sublimação do trágico. Estes flashbacks que preenchem os espaços que em Jackie e Spencer simplesmente não necessitaram de ser preenchidos, contudo, forçam Maria a tornar-se decididamente mais explicativo e menos hábil do que os seus antecessores, mas colocam o filme inegavelmente onde vive: no passado.