Les Passagers de l’Ennui

Miguel AllenJaneiro 12, 2023

Paris 1984, três anos depois duma viragem “à esquerda” de grande optimismo com a eleição presidencial de Mitterand. Elisabeth/Charlotte Gainsbourg, abandonada pelo seu marido, partilha solitariamente um apartamento anos 70 no bairro de Beaugrenelle com seus dois filhos adolescentes – ela militante de esquerda, ele sonhador e poeta… ah la la, la France. Em busca dum rumo, Elisabeth erra pela noite até à Maison de la Radio vizinha, onde encontra Vanda / Emanuelle Béart, autêntica figura de cera que anima um programa de rádio para corações solitários até altas horas da noite. Kim Wilde e Lloyd Cole, ville bleue, e arquitectura pós-moderna sob néons coloridos.

Conta-me como foi, Les Passagers de la Nuit é uma evocação saudosa e sensível duma Paris nocturna dos anos 80, bem como de algum do melhor cinema que a retratara e eternizou. Seguindo um legado de homenagem e cinefilia tão característico ao cinema francês desde a Nouvelle Vague, o filme estende o braço em aliança a obras maiores de realizadores franceses históricos, mas é ao lembrar essas outras obras que expõe as suas tremendas fragilidades, deitando por terra as suas eventuais ambições. Ao ver os “passageiros” entrar furtivamente numa projeção de Les Nuits de la Pleine Lune (1984), o confronto entre as imagens tão prosaicas de Hers com o trabalho de Rohmer, de tamanha sensibilidade e relevância (mesmo num dos seus filmes aparentemente mais ligeiros), parece indevido. Hers tenta conduzir a “cinefilia” do seu filme de bom humor, enquanto os personagens brincam divertidamente com os diálogos de Pascale Ogier et Fabrice Luchini (“Octave…!”). Mas, como Dassin um pouco depois, numa das cenas mais enternecedoras, mesmo se não particularmente conseguida, do filme, é como se cantando “et si tu n’existais pas, dis-moi pourquoi j’existerais ?” que Hers se aproxima de Rohmer ou Rivette (entre outros). Elemento central da insistente homenagem juvenil de Hers (composta por não uma mas duas projeções de filmes com Pascale Ogier e um cameo algo indesejável de Rivette), a personagem motor da acção, Talulah / Noée Abita, uma toxicodependente melancólico-desesperada, é um espelho esquemático de Pascale Ogier (e sobretudo da sua Louise de Pleine Lune), mas comparar as duas actrizes é como comparar o timbre doce do fantasma enigmático de Ogier com a voz esganiçada e extremamente irritante de Abita.

– C’est pathétique…?

– C’est pas pathétique !

Sim sim, é algo patético. E cansativo, porque tão banal. Historietas fungadas de amores e desamores (perdemos a conta das vezes que Gainsbourg nos chora pelo filme) e melancolia urbana em torno duma família tornada mono-parental, cuja dinâmica se vê perturbada pela adopção daquele pouco misterioso gato preto que é Talulah. Num ritmo francamente despojado de intento, com uma direção algo televisiva de propósito puramente narrativo ou contextualizante, Les Passagers nunca revela um verdadeiro “estilo”, um traço cinematográfico (e diga-se que o conceito de elipse parece ser um autêntico mistério para o realizador). Paris, tão sensual e evocativa nas imagens de arquivo que servem de separadores à acção, surge aqui francamente despida desse manto de sonho e melancolia que a narrativa pretende alcançar (veja-se a paupérima cena no telhado). A noite titular é uma pura casualidade, num filme onde não existe nunca um verdadeiro mergulho (jogo de palavras intencional, sendo essa cena particularmente má e desprovida de qualquer tipo de romantismo) e tudo parece sanitizado, sem mistério ou fundo. Uma cidade muito multicultural e igualitária, claro – num 1984 filtrado pelos valores sociais de 2022 -, e perfeitamente despida de alma, de carácter. Mesmo a boa ideia das “vozes da rádio” sobre espaços escuros, silenciosos e vazios, perde a sua força pela mão imprecisa de Hers.

E de salientar também que uma das particularidades mais surpreendentes de Les Passagers de la Nuit é evidenciar involuntariamente a importância do “som directo” no Cinema Francês. Essa coerência – ou laço – entre som e imagem está aparentemente longe de preocupar Mikhaël Hers, num filme que, apesar da banda sonora interessante, tem uma sonoplastia relativamente superficial (algo irónico neste caso em particular). Mas um rigor maior na origem do som “em cena”, como o mostrado pelos autores aos quais Hers se tenta colar, talvez nos poupasse, na verdade, da edição trapalhona e caótica de consideráveis e importantes sequências, nomeadamente diálogos, do filme.

Enfim, Les Passagers de la Nuit é interessante enquanto ideia para um exercício de estilo, mas passa sem deixar o mínimo efeito, sobretudo dado a sua execução banal e “insistência” narrativa. Pequenos eventos procuram desesperadamente atribuir uma textura que as imagens não revelam. E assim, não nos percamos, e passemos directamente a Les Nuits de la Pleine Lune, tal como parece sugerir Hers, ou por exemplo ao Police de Pialat, ou mesmo, se fôr hora para algo mais estilizado e desesperadamente juvenil, a Boy Meets Girl de Carax. A noite em Paris, os anos 80, existe para todos os gostos.

 

 

Pascale Ogier (1958 – 1984) em Les Nuits de la Pleine Lune (1984)

Miguel Allen