Les Chambres Rouges, de Pascal Plante: Cumplicidade Passiva

Carla RodriguesJunho 24, 2025

Diz-se que existem sites nas profundezas da dark web onde se pode pagar para assistir, em directo, à tortura e ao assassinato de pessoas. São conhecidos como red rooms (“chambres rouges”), ou salas vermelhas, e a própria ideia basta para nos girar as entranhas. Não se sabe ao certo se são reais. Mas a possibilidade existe. Ou, pelo menos, existe o suficiente para que o mito se espalhe, acicatado por fóruns obscuros, vídeos anónimos, e screenshots duvidosos.

Quando carreguei no play de Red Rooms (Les Chambres Rouges, no original), não sabia nada sobre isto. Calhou ver o filme em branco. Sem sinopse, sem trailer, sem saber onde me estava a meter. E talvez por isso o impacto tenha sido maior. Red Rooms brinca nesta caixa de areia das salas vermelhas digitais, mas não da maneira que se possa supor. Este thriller psicológico canadiano evita caminhos fáceis. Prefere transformar a inquietação subjacente num espelho sombrio da nossa curiosidade. O realizador Pascal Plante pega no conceito para criar uma obra mais interessada em quem assiste ao crime do que no crime em si, sem nunca precisar de sangue nem de violência explícita para ser perturbadora.

O filme dá-nos poucas âncoras, e a principal é Kelly-Anne (Juliette Gariépy), uma modelo de olhar vidrado que passa os dias obcecada pelo julgamento de Ludovic Chevalier, um alegado assassino que terá feito livestream de pelo menos três homicídios num desses famigerados cantos da dark web.

Seria fácil imaginar que a vida em Montreal de uma modelo bem-sucedida, nos seus vinte e poucos anos, seria preenchida de glamour, de luxos, de gosto pelos finos prazeres da vida, de companhias sensuais. Mas não neste caso. Kelly-Anne dorme ao relento, num beco perto do tribunal, para garantir lugar no julgamento, e, fora isso, a sua vida é pouco mais que a de uma eremita. Encasula-se em casa, vasculha fóruns online a horas pouco recomendáveis, infiltra-se em servidores privados, compra vídeos de teor questionável em leilões com criptomoeda. No meio de tudo isto, mantém sempre uma expressão imperturbável que torna quase impossível perceber o que sente, o que pensa, se é que sente ou pensa alguma coisa.

thriller psicológico canadiano

É difícil aceitar essa impossibilidade. Enquanto espectadores, é natural tentar entender o que se passa com ela. Porque é que está tão obcecada? O que é que procura naquele julgamento? Porque é que nada mais a move? Kelly-Anne arrasta-nos com ela na sua obsessão, até que, de forma inesperada, começa a desenvolver um laço bizarro com Clémentine, uma jovem excêntrica que acredita abertamente na inocência do réu. Clémentine representa uma espécie de relativa naïveté face à romantização do mal. Não é difícil perceber como encaixa num universo cada vez mais saturado de teóricos, detectives amadores e “caçadores da verdade” de teclado. Pascal Plante evita, e bem, transformá-la numa caricatura. Mesmo nos momentos mais exagerados, há nela algo de genuíno e frágil. Já Kelly-Anne é outra coisa.

thriller psicológico canadiano

Gariépy constrói a sua personagem com uma rigidez hipnotizante. Uma frieza mecânica que contrasta por completo com a expressividade nervosa de Clémentine.  E nunca deixa de ser Kelly-Anne quem nos assombra. Não porque acredite ou duvide da inocência ou culpa do réu, mas porque participa. Não quer absolver ninguém. Quer apenas continuar a olhar. E é essa ausência de julgamento moral que nos obriga a confrontar a forma como nós próprios olhamos.

thriller psicológico canadiano

Red Rooms é um espelho do fascínio que o cada vez mais badalado true crime exerce sobre alguns de nós. Aquelas histórias reais; os fascínios mórbidos que se transformam em obsessão colectiva, podcasts ouvidos de forma compulsiva, documentários de streaming produzidos em formato “à dúzia é mais barato”, fóruns que funcionam como tribunais paralelos e salas de investigação virtuais. A linha entre interesse legítimo e voyeurismo torna-se cada vez mais difícil de distinguir. Vivemos rodeados de conteúdo que transforma tragédia em produto, dor em consumo.

Aqui, Pascal Plante não dá ao alegado assassino oportunidade de falar, não mergulha muito na sua backstory cruel fora das tiradas legais que vão sendo expostas em tribunal. Em vez disso, desvia o foco para quem observa e, nesse processo, convida-nos a olhar para nós mesmos. O verdadeiro mal pode não estar só no acto filmado, mas na complacência tranquila de quem o vê acontecer e segue em frente.

thriller psicológico canadiano

Visualmente, e apesar da sua escala modesta, este thriller psicológico canadiano é imaculado. Os planos são longos, calculados, sobretudo nas sequências no tribunal e nas cenas passadas no apartamento de Kelly-Anne, onde ela se entrega à sua rotina nocturna de deriva digital por cantos da internet onde a escuridão humana é um poço sem fundo. A luz do monitor de Kelly-Anne, que emoldura o seu rosto num vermelho tão febril quanto a sua obsessão, torna-se um portal para outro mundo. A fotografia transverte os espaços em vitrinas proto-assépticas. Tudo limpo, demasiado arrumado, quase clínico. Estar no apartamento de Kelly-Anne é como estar numa sala de exposições com a última colecção do IKEA: parece que mora ali alguém, mas não. Uma ilusão de vida. E curiosamente, é essa mesma sensação que se tem ao olhar a personagem nos olhos.

thriller psicológico canadiano

Numa obra que quase nunca nos mostra aquilo que outros filmes não hesitariam em nos abanar à frente dos olhos, o som tem uma importância fora de série, e é um elemento vital para seu sucesso. A ausência de imagens cruéis não minimiza o impacto; intensifica-o, muito graças ao sound design que dá corpo ao horror invisível. Pascal Plante participou na construção do ambiente sonoro, recorrendo com precisão cirúrgica à utilização de zumbidos, respirações, sussurros, gritos, barulhos húmidos que deixam adivinhar o pior. Não vemos o que se ouve, e isso é parte da violência. Plante sabe que o terror não precisa de ser visível para ser real. É uma escolha consciente, corajosa e, acima de tudo, muito eficaz.

Em vez de uma conclusão fechada, Red Rooms deixa-nos com perguntas que não se dissipam facilmente. Questões morais, zonas cinzentas. Uma linha porosa entre espectador e participante. Red Rooms sabe que o verdadeiro terror está não no que é mostrado, mas no facto de não conseguirmos — ou não querermos — desviar o olhar. Sentemo-nos com esse desassossego.

 

Filme disponível em filmtwist.pt – o primeiro serviço de streaming em Portugal dedicado ao cinema fantástico e de culto.

Carla Rodrigues