Le Grand Chariot, de Philippe Garrel: Ossos do Ofício

Bruno VictorinoAbril 11, 2024

Philippe Garrel é um dos cineastas mais marcantes da história do cinema francês e um dos últimos herdeiros da Nouvelle Vague. Em Le Grand Chariot, estamos perante um filme menor do septuagenário realizador, longe das suas obras primas e até do impacto do seu último filme. No entanto, o mais recente filme de Garrel não deixa de ser um objeto intrigante, talvez mais pelas reflexões que suscita, associadas à sua restante filmografia e ao seu carácter iminentemente autobiográfico, do que aquilo que nos oferta enquanto obra cinematográfica por si.

Este artigo contém spoilers.

E podemos iniciar precisamente pela nuance autobiográfica, amplamente utilizada por Garrel desde o início da carreira. Como a tradução do título do filme em português nos encarrega de explicar (Retrato de Família com Teatro de Marionetas), Le Grand Chariot acompanha uma família (pai e três filhos), que trabalha junta num teatro de marionetas, assiduamente acompanhados pela avó. Os atores que interpretam os filhos, Louis, Esther e Léna Garrel, são os próprios descendentes do realizador, partilhando inclusivamente os nomes com os personagens. Este ofício que desempenham em conjunto encontra eco com o próprio ato cinematográfico, sendo recorrente os filhos contracenarem nos filmes do realizador francês. A tudo isto junta-se ainda o facto de Maurice Garrel, pai de Philippe Garrel, ter sido ele próprio marionetista.

Outra problemática que o filme levanta é o confronto entre o clássico e o moderno. Com o desaparecimento do pai, a família e a companhia enfrentam uma crise que os leva a questionar se não deveriam pensar em novas peças e construir novas marionetas, uma pressão para a inovação e modernização do seu conceito. Isto seria algo à partida rejeitado pelo pai, pelo compromisso com uma determinada forma tradicional de exercer o seu ofício. A rima com o pai Garrel e o ofício do cinema faz-se naturalmente sozinha, sendo uma forte convicção do realizador filmar sempre em película e nunca em digital. Não se trata propriamente de uma questão de saudosismo, mas sim de um determinado comprometimento com a natureza artesanal da respetiva arte, “sem recurso a meios sofisticados ou técnicas elaboradas ou industriais”, desapegado de qualquer preocupação com o lucro.

Algumas das cenas mais divertidas e reveladores do filme são efetivamente aquelas onde podemos contemplar o teatro de marionetas propriamente dito, sendo que Garrel opta por mostrar, tirando momentos pontuais, o ponto de vista dos bastidores, a forma como os atores se movimentam e as expressões que fazem enquanto seguram e gesticulam as marionetas. Como se este jogo fosse uma encenação dentro da encenação, transmitindo ao espectador (do filme) muito do que são os personagens, pela forma como se comportam durante a peça. O público, maioritariamente crianças, surge fora de campo, sendo que os risos e gargalhadas vão pontuando e dando o sinal de aprovação ao espetáculo com que se deparam.

A morte do progenitor permite a Garrel explorar a ideia do impacto que poderá vir a ter para os seus filhos o seu desaparecimento. Não numa perspetiva narcisista, antes pelo contrário, projetando as eventuais consequências práticas nas vidas dos seus filhos. Talvez seja difícil imaginar Louis (ator e realizador), Esther (atriz) e Léna (atriz) fora do mundo do cinema, mas não deixa de ser uma forma de lidar com o peso da herança entre as duas gerações. Esta dimensão de passagem de testemunho entre pai e filhos é explorada frequentemente no filme, e mais uma vez reflete e funde a realidade com a ficção.

Não seria um filme de Philippe Garrel sem a existência de um triângulo amoroso entre os personagens e sem a força das elipses. O personagem de Louis Garrel apaixona-se pela ex-namorada do amigo e também marionetista da companhia, sendo que, no flirt constrangido entre os dois, se podem encontrar alguns dos momentos mais enternecedores e levemente cómicos do filme. No que a elipses diz respeito destaca-se, por exemplo, a escolha do cineasta em elidir as circunstâncias da morte do pai, focando-se fundamentalmente no pós falecimento.

Desaparecimento talvez seja a palavra-chave de Le Grand Chariot. Desaparecimento da figura paterna. Desaparecimento do ofício. Philippe Garrel contrapõe estas questões através da colocação em cena dos próprios filhos, explorando as fronteiras e paralelismos entre o teatro de marionetas e o cinema e entre a realidade e a ficção. Não será, porventura, o seu último filme, mas é difícil imaginar uma despedida mais crua, sincera e comovente.

Bruno Victorino