Figura essencial e indissociável da Nouvelle Vague, Jacques Rivette integrou, nos anos 50, com Godard, Chabrol, e Rohmer, o núcleo duro dos anos áureos (e historicamente determinantes) dos Cahiers du Cinéma. Mas se Rivette, como os seus colegas, passaria à realização em finais dessa década, a sua obra conheceria um percurso em tudo diferente ao dos outros quatro nomes “principais” do movimento, e não é raro que a referência à sua “relevância” na história do cinema francês seja acompanhada por um relativo desconhecimento dos seus filmes – ou pelo menos dos seus filmes anteriores aos anos 80 e 90.
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Rivette realizou a sua primeira longa-metragem Paris Nous Appartient, em 1958-59. Mas contrariamente ao sucedido com Le Beau Serge (de Chabrol), Les 400 Coups (Truffaut), ou A Bout de Souffle (Godard), seria preciso esperar até 1961 para que o filme chegasse às salas de cinema, por falta de distribuidor. Truffaut homenagearia o seu colega em Les 400 Coups ao programar uma saída ao cinema da família Doinel para ver o filme ainda por estrear de Rivette. Mas em boa verdade, misterioso e labiríntico, Paris Nous Appartient vive menos desse espírito juvenil e, digamos, inebriado, que contagiava os primeiros passos dos autores da Nouvelle Vague (por muito que bem diferenciados entre si), revelando-se, pela sua estrutura narrativa fragmentada, em diagonais, e uma duração consideravelmente mais extensa, um filme que dificilmente encontraria o mesmo sucesso junto ao grande público dos seus pares.
Para Rivette, seguir-se-ia, anos mais tarde, a adaptação de um romance (então) menos conhecido de Diderot, com La Religieuse (ou Suzanne Simonin, la Religieuse de Diderot no seu título completo) que seria objecto de uma “batalha legal” até à sua estreia em 1967. Embora essencialmente rivettiano, e muito nouvelle vaguiano, pelo seu jogo entre estilos e referências cinematográficas, La Religieuse constitui uma peça algo estranha na sua filmografia. E seria esse falso faux-pas, que levaria Rivette a uma reflexão aprofundada sobre o fundamento da sua obra. A resposta viria, ao seu jeito, por um desvio, um acaso, com o convite de André S. Labarthe ao seu amigo “sem trabalho” para a realização de um episódio da importante série televisiva Cinéastes de Notre Temps, nesse caso dedicado ao pai nosso espiritual do novo cinema francês, Jean Renoir. Pela mão de Rivette, Jean Renoir le Patron (1967), passou de um a três episódios, e tornar-se-ia no capítulo mais importante da longa série (que está na origem de Onde Jaz o teu Sorriso), constituindo também um ponto de interrogação essencial de Rivette sobre um método criativo a adoptar.
Em 1968, Godard realizara já mais de uma dezena de filmes e lançava-se então na sua fase “maoista”; Truffaut apresentava Baisers Volés e era o novo nome incontestável do cinema francês (com o devido aburguesamento estilísco que isso implica); Chabrol realizava Les Biches (a sua 15ª longa metragem !); e Rohmer trabalhava os seus Contos Morais, entre La Collectionneuse e Ma Nuit Chez Maud, e um importante trabalho de documentarista – cada um traçando, enfim, um percurso individual que marcaria a seu termo a história do cinema moderno. Rivette vira, no entanto, estrear (apenas !) duas longas metragens suas.
E se os seus dois primeiros filmes serviram para identificar alguns pontos importantes que serão transversais à sua filmografia – o teatro filmado, o complot (num, por vezes, infindável McGuffin), ou o labirinto (formal e sentimental) – será então em L’Amour Fou, que a obra de Rivette parece encontrar enfim, um definitivo gesto inaugural, ou talvez o esboço estilístico de um misterioso “centro”, que se revelará, de forma evasiva, no ambicioso filme seguinte, o paradigmático (e paradigmaticamente longo) Out 1. L’Amour Fou é o filme onde Rivette encontra, enfim, um traço seu, despido de outros constrangimentos, que servirá enquanto linha condutora da sua obra no geral.
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L’Amour Fou lançaria Rivette não exactamente na improvisação, mas na ausência de um argumento (ou enredo) preciso a seguir, num cinema que poderíamos apelidar de filmado. Um filme que parece libertar-se das restrições do cinema clássico mas que, paradoxalmente, se alimenta das referências clássicas do seu autor. Em aparência próximo de um certo free cinema, mas formalmente um cinema de cinefilia, rompendo com as eventuais formalidades do classicismo mas informado pelos seus valores formativos. As bases da narrativa de L’Amour Fou são simples : uma montagem paralela entre cenas de um casal em ruptura e os ensaios para a encenação de Andromaque de Racine. Contrariamente ao enredo algo labiríntico de Andromaque (“Oreste aime Hermione, qui aime Pyrrhus, qui aime Andromaque, qui aime Hector, qui est mort.”), a trama simples ao centro do filme, entre Claire (Bulle Ogier) e Sébastien (Jean-Pierre Kalfon), será progressivamente alimentada pelos excertos da peça (aqui encenada por Sébastien) que, apresentados ao espectador numa cadência algo descontextualizada, reforçam o valor violento, carnal e furioso, daquele romance “louco”.
O filme põe em prática um princípio de “não-intervenção” sobre os seus actores. Kalfon e Ogier participa(ra)m activamente na criação das suas personagens, e esse trabalho será o fundo do filme. Em paralelo, Rivette extende a duração das sequências, mas sobretudo da globalidade do filme, muito para além dos tempos “habituais”. Verdadeiro film fleuve, L’Amour Fou parece descobrir os seus actores (ou as suas personagens ?) pouco a pouco e progressivamente, explorando pacientemente “os cantos à casa”, caracterizando-as também pelo tempo que lhes dedica na tela.
Ça tient à la structure même de l’histoire, à la façon dont histoire et personnages se développent. De toute façon, je ne cherche pas l’égalité, la perfection. Presque tous les films que j’aime sont des films inégaux et ça m’est égal qu’ils le soient. C’est plus embêtant quand effectivement cette irrégularité rejaillit en termes de désintérêt progressif. Je sais bien que je prends le risque de me couper du public adolescent à cause de la longueur, mais je n’ai pas envie d’en tenir compte.
Et puis, je pense que quand il y a eu des erreurs sur un tournage il faut les respecter. C’était un de mes grands points de désaccord avec François Truffaut, qui pensait qu’il fallait faire le tournage contre le scénario et le montage contre le tournage. Moi, j’essaye de faire en sorte qu’il n’y ait pas d’avant. Ou du moins très peu. Si auparavant je pensais qu’un film se faisait au montage, je pense maintenant que tout se passe au tournage : s’il y a un avant-tournage et un après-tournage, c’est par la force des choses.
Rivette, entrevistado por Gérard Lefort e Marcus Rothe, in Libération, 12 avril 1995
E se é possível identificar aqui uma afirmação final da ruptura estilística e formal proposta na origem da Nouvelle Vague, será importante não enveredar pela “monumentalidade” com a qual se identifica habitualmente o filme – e que se refere de forma simplista à sua duração inabitual de quatro horas. Pelo seu despojamento extremo, L’Amour Fou é determinadamente anti-monumental. Um filme de uma radicalidade que aponta a um cinema definitivamente novo. Um filme de (e em) destruição e invenção, que filma essa destruição e invenção, que lhes confere uma forma.
Passar “des mots aux mouvements” (como propõe Sébastien), filmar um trabalho (e entre Rivette e Godard a proximidade teórica é, por vezes, comparável à acentuada distância formal). L’Amour Fou é um filme sobre um processo. Em primeiro plano, o processo do próprio filme, o tal filme “filmado”, com os actores que descobrem as suas personagens em cena. Paralelamente um filme em torno do processo de criação de uma peça de teatro, com os ensaios de Andromaque filmados a dois tempos e em dois formatos (belíssimos 35mm e 16mm), entre Rivette e o falso documentário conduzido por Labarthe, que é encenado dentro filme. E enfim – na sua faceta mais romanesca – um filme sobre o processo de ruptura de um casal em movimento contínuo de auto-destruição.
Cinema e Teatro, uma sucessiva sobreposição de ficções. Um labirinto de imagens e sons, pela montagem rigorosa e agressiva de Rivette. Mise en abîme abismal, o espectador perde-se definitivamente pelo espaço da tela. Criação e destruição, amor e ódio, num filme que vive de uma força violenta narrativa mas sobretudo material e formal. E não será indevido identificar o gesto político do cinema (mise en scène e montagem) de Rivette com o acto liberador de Claire que fecha os dois extremos do filme. Circular mas enviesada, a construção progressiva de uma história por sugestões e ideias simples, por camadas graduais e gestos fortes. A partir de uma estrutura tanto rígida quanto esfarrapada, uma obra aberta ao acaso, que não redundará no acidente. Evocação e catarse, a vida real (documentada) pelo artifício. Ou o artifício enquadrado pela vida real. Filmar para descobrir, destruir para revelar.
Sempre em torno da dualidade, tudo em L’Amour Fou parece se revelar a partir da sua oposição. Circulando por espaços interiores que se fecham a (e contrastam com) exteriores muito ruidosos e intensos. O teatro e o real, Racine e registo documental, o trabalho e o amor, a união e a ruptura – Sébastian e Claire protagonizam duas partes distintas do filme (nas palavras do próprio Rivette), claramente identificadas no curioso entreacto – as duas cadeiras – que corta, ou queima, a película num dos seus períodos mais cheios e conflituosos. E se a primeira parte parece organizada sistematicamente em torno de Andromaque, o filme revelar-se-á enfim numa segunda metade intensa, orientada sobre a paranóia, ou desespero, de Claire. Andromaque terminará com vingança e morte, a resolução anunciada de L’Amour Fou será apenas possível após a destruição definitiva do mundo interior de Claire e Sébastien. Como se para escapar daquele labirinto cinematográfico fosse necessário derrubar as suas paredes, anular os seus limites.
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La mise en scène consiste à avoir une idée forte et logique de ce qui doit être sur l’écran. Ce qui permet à des gens qui n’ont aucun bagage théorique ou technique de faire des films qui existent. A preuve: Pagnol, Malraux ou Cocteau. Le comble de la mise en scène, c’est le dernier film de Rohmer, Les Rendez-vous de Paris, qui a l’air d’être fait de la façon la plus simple qui soit, rien dans les mains, rien dans les poches. C’est comme ces dessins où il faut relier des points entre eux.
Rivette, entrevistado por Gérard Lefort e Marcus Rothe, in Libération, 12 avril 1995
Cinema de ruptura, e um filme secreto e essencial de um dos realizadores maiores da segunda metade do século XX. O cerne de uma aventura cinematográfica que, a partir deste “amor louco”, não parece ter conhecido barreiras criativas.
L’Amour Fou encontra-se em exibição no Cinema Medeia Nimas, em Lisboa (dias 24 de Abril e 1 de Maio), e no Teatro do Campo Alegre, no Porto (1 de Maio). Cópia restaurada 4K.