Não é o teatro que me interessa, não é a pintura que me interessa, não é a escultura, não é nenhuma arte especial. O que me interessa, a mim, é o espectáculo! Espectáculo quer dizer VER…Ver…O espectáculo pode estar onde quiserem, mas que esteja e que seja visto. Olhe que isto de haver no mundo a possibilidade de haver espectáculo que todos saibam ver… é sério…
A magia não confunde os sentidos, apura-os. Às apalpadelas pelo escuro, no desconhecido que fascina, uma sensação de alerta constante leva-nos à incógnita. Queremos mais dúvidas, mais pavor que mais não é que electricidade. E é nessa condição frenética, neste estado flutuante, que as histórias de encantar fazem pleno sentido. A criança crê. Não é salto de fé, é vontade fome. O corredor ilumina-se com o seu olhar, as donzelas dormem nas suas mãos e despertam nos seus ouvidos.
Cocteau e Disney são, na ilustre acepção da palavra, dois grandes fiteiros. O seu manifesto é o artifício descarado. Veja-se a abertura de “La Belle et la Bête”, na qual o francês surge a escrever o genérico num quadro de giz. Remete para a infância e, mais importante, para o espectáculo. Desde o primeiro momento, Cocteau assume a batina para uma cerimónia auspiciosa. O assistente pronto para filmar e… “Coupez! Une minute.” Tudo é mentira. É preciso crer nesta mentira, pois não será antes um espelho da verdade? Desenha o espectáculo invocando, no seu precioso genérico, as diferentes artes: actores, fotógrafos, cenógrafos e escritores, mas falta o mais valioso, o criador. O criador público entenda-se. O filme apenas resulta se também (nós) participarmos na construção de cada imagem.
Não menos enfático, Disney é outro agente fingidor. A necessidade de antropomorfização e a fixação no ritmo como veículo preferencial de expressão artística são cartas há muito conhecidas. O seu espectáculo tem o imediatismo das marionetas e a força (e calor) do lápis de carvão. Apavorada, Branca de Neve corre pela floresta. A cada plano do clássico da Disney (realizado por David Hand, Ben Sharpsteen, William Cottrell, Larry Morey, Perce Pearce e Wilfred Jackson), novo segundo no palpitar da princesa, multiplicam-se linhas e contornos ganham novas leituras. Sobressai também a música que, meticulosamente, acompanha os passos dela e traça em crescendo as carantonhas nos troncos. O que vem primeiro a imagem ou o som? Montagem como peça a duas vozes, tão simples e tão eficaz.
Falámos de mágicos, falemos de magia. Os dois filmes apresentam a magia como assomo de fraqueza. Invejosa da beleza de Branca de Neve, a Rainha deixa-se extasiar na concretização do seu feitiço. A transformação em corrupio colorido, no qual o décor age como prolongamento do delírio do seu corpo. Apenas tem a voz como constante, primeiramente sôfrega, depois mórbida, até alcançar, segura, o vórtice das suas maquinações. “My voice…my voice… a perfect disguise!”
O fausto do palácio da Besta, dos candelabros e bustos às portas falantes e restante bricabraque anatómico – a antropomorfização mais uma vez – reproduz o seu génio triste. Nem o templo de Diana no jardim, nem Magnifique, o fiel cavalo que o leva a qualquer destino, nem mesmo o espelho que tudo mostra, conseguem tirar as amarras, agrilhoado que está à maldição de existir. Existir como besta. “Ne m’appelez pas Monseigneur, je suis une bête.”
O que via a Rainha no seu espelho mágico? Como portal para o desejo impossível, ela partilha com a Besta a fúria de ver o inatingível. Para a Rainha a mocidade de Branca de Neve, no caso da Besta a pureza de Belle. Sinónimos? Se ambas as figuras sabem manobrar artes que fariam imensa comichão ao Santo Ofício, como a dado momento duas irmãs aleivosas resmungam no filme de Cocteau, separa-as a reação ao reflexo do espelho. A Besta contempla o reflexo como salvação momentânea, permite respirar do trauma. Por sua vez, a Rainha vê e abraça o abismo. Em suma, a magia será sempre insuficiente.
Luz. Não só de reflexos se compõem os filmes, há um inconfundível brilho que emana das protagonistas. Branca de Neve é uma Diana em ascensão. “Whistle while you work”, “I’m wishing” ou “Someday my prince will come” são canções apresentadas em comunhão com a natureza, dir-se-ia quase em quadros pré-rafaelitas. Junto aos animais e à paisagem, a desenvoltura da princesa ostenta-se num templo de melodia e gags. Os rabinhos dos esquilos como espanadores, a barriga de uma tartaruga a enxaguar as camisas dos anões, muitos são os exemplos em que o humor dos animadores projeta a fantasia.
Belle é encurralada pela magia da Besta, apenas para encontrar um espectáculo estéril. Percorrendo os corredores do palácio, como se um zéfiro a bafejasse suavemente, cedo se reconhece mestre do domínio. Os colares, as jóias e as pérolas brilham unicamente na sua presença. Cocteau faz com que as restantes personagens se desloquem na sua órbita e não o contrário. Assim que a jovem se move, um travelling invisível ou um plano imaginário preenche a tela.
É, pois, neste confronto entre magia e luz, fraqueza e força, que as duas obras se debatem. Disney insiste no poema sinfónico, a elegância do estilo confunde-se com a obsessão no esquema rimático. Cada nota e cada gesto no desenho, seja comprimido ou esticado, corresponde a uma intenção, um sinal! A magia rende-se à luz, daí a grandiloquência com que a música obriga o plano a abrir. Branca de Neve e o príncipe transformam-se em traços etéreos, porém diminutos perante a cúpula final da animação. O crescendo orquestral rasga aos poucos as nuvens e eis, finalmente, o desígnio da película: o castelo – matéria de sonhos, despojo da imaginação.
“La Belle et la Bête” guarda o furor da libertação. Ver novamente a arte, abraçar a mitologia, enfim, pensar sem idade. “J’aime avoir peur…avec vous”, exclama Belle ao ver o seu par. O encontro entre os dois marca a criação de uma nova dimensão que escapa à geometria. A linguagem de Cocteau, desde o evidente movimento contrário à exaltação dos gestos, anuncia uma nova ordem, tão nova quanto a velha. Longe da ficção e do ordinário, o poeta exige o desdobramento do espectáculo. Não é preciso Mozart, não é preciso Shakespeare. O espectáculo está onde quiserem como diz Almada, seja no sorriso de uma jovem, seja na lágrima de um monstro.
Todos sabemos ver Branca de Neve. Todos sabemos ver a Bela e o Monstro. Face ao imenso poder de tal igualdade perante o espectáculo, porquê separarmo-nos deste? Ver! É em ver que se esconde a chave desta ausência de mistério. Os sinais estarão sempre lá, não é preciso acreditar na sua existência, basta vê-los. En route!