Kneecap, de Rich Peppiatt: A Língua como Acto de Resistência

Hugo DinisAbril 7, 2025

O uso da língua é um acto político. Por um lado, remete para as formas como a tradição e o conservadorismo ajudam a calcificar nacionalismos bacocos em torno de noções imaginadas da linguagem (uma das polémicas du jour). Por outro, como sublinha aqui a personagem de Michael Fassbender, é nas bocas e nas línguas dos oprimidos que mora a verdadeira arma contra os opressores. Na língua, e nas suas formas de expressão, está a força de um povo fustigado pela opressão, mas sobretudo em busca de uma representação cultural com verdadeiro significado. É assim que se apresenta Kneecap. À torrente de imagens relativas aos Troubles (conflito armado que opôs nacionalistas republicanos – maioritariamente católicos – a lealistas do Reino Unido – maioritariamente protestantes), Rich Peppiatt sobrepõe, em voz off, um lamento derivado da sua percepção única da cidade de Belfast. É difícil ouvi-lo sem pensar no filme de Kenneth Branagh (Belfast, 2021), mas a sequência inicial de Kneecap coloca o foco noutra faceta do tradicionalismo cultural irlandês, uma que se demonstra na dimensão funcional da língua: em tom monocórdico e em desinteresse geral, um grupo de estudantes é forçado a repetir um conjunto de frases escritas em gaélico…

Kneecap procura quebrar esse desinteresse e mostrar a língua gaélica quer como arma de combate, quer como elemento camaleónico de representação cultural. Um organismo vivo, capaz de ser moldado em quase tudo o que o seu povo quiser. A dupla de rappers que constitui o colectivo, contudo, está envolta em toda uma convencionalidade do biopic musical que não se coaduna com esta atitude punk de ruptura com o sistema vigente. Naoise e Liam (Móglaí Bap e Mo Chara enquanto nomes de palco, respectivamente) são filhos de um antigo combatente republicano forçado a recorrer à clandestinidade depois de fingir a própria morte. Ambos representam a geração de jovens concebidos imediatamente após os Troubles. Em tempos de paz, esta juventude vive num limbo: entre o vazio da actividade política inspirada pelos seus progenitores e a da procura de um significado social.

A ausência do pai Fassbender molda os dois jovens num contexto marcado pela pobreza e pela consolidação de rancores passados. O duo vive com a mãe em Belfast ocidental, dedicando-se ao tráfico de droga em pequenas dimensões e à escrita no gaélico de gema. A forma como se conecta à preservação da língua tem aqui uma interessante possibilidade: até que ponto poderá estar nas mãos de dois rappers a salvação de todo um idioma? Peppiatt evita esse tipo de considerações em prol de uma comédia de costumes relativamente segura, jogando com os estereótipos de irlandeses e britânicos, desde a religião ao futebol (a namorada inglesa de Mo Chara diz-lhe que o Celtic não presta durante as suas relações sexuais). A marcar esse registo está um estilo de edição vincadamente fluido, à maneira de Trainspotting de Danny Boyle, que tem vindo a assinalar boa parte do output cinematográfico do indie britânico dos últimos 30 anos. Consoante o grau de aceitação do leitor, este run-and-gun formal pode situar-se em diferentes pontos do espectro que vai do dinâmico ao irritante, mas não há dúvida que confere uma apreciável velocidade aos acontecimentos que, em pontos, se vão tornando cada vez mais próximos do biopic tradicional.

Veja-se aqui o papel representado pelo gangue rival que procura colocar os irmãos sob a sua alçada. Sob a égide do republicanismo, trabalha o mais básico gangsterismo criminal. Na ausência de significado político, surgem as realidades cruas do capitalismo: uma sociedade que se rege pelo domínio de quem mais pode, na ilusão do que já antes teve significado. Como faz questão de dizer o seu líder, só porque são Radical Republicans Against Drugs (RRAD), não significa que a ênfase das duas primeiras palavras se deva perder no vazio das duas últimas. Na verdade são apenas traficantes mascarados de activistas. Mas então quem serão os Kneecap? Um bom mote é dado pela personagem de DJ Próvaí (uma referência aos combatentes do grupo paramilitar IRA Provisório), o terceiro e mais velho membro do colectivo, e na verdade o seu produtor. Um professor de música numa escola gaélica, casado com uma mulher activista pelo reconhecimento oficial da língua. Simultaneamente entorpecido pela rotina e marcado pela opressão do quotidiano respeitável dos subúrbios, DJ Próvaí resolve safar Mo Chara de um interrogatório policial no qual este se recusa a falar inglês. A necessidade de fuga ao quotidiano surge como motivação para esta espécie de breaking bad de DJ Próvaí, mas a factura da “edição Boyle” de permanente intuito velocipédico (por muito eficaz que seja na construção de um mundo afundado no consumo quotidiano de drogas) faz-se sentir: neste, como noutros casos, a inversão de personalidade da personagem acaba por ficar sub-explorada.

O choque entre a respeitabilidade da causa da preservação da língua (simbolizada pela personagem da mulher de DJ Próvaí, que vai promovendo marchas e debates televisivos sobre o assunto) e a natureza chocante das letras dos Kneecap coloca os desafios de um desenlace esperado. Ainda que a agenda mediática se oriente por princípios de decoro, hoje e sempre, a sua falácia original estará sempre naquela que é a divisão entre o popular e o formal. E esse é o conflito na base de Kneecap, muito mais do que aqueles entre católico e protestante, Irlanda do Norte ou Norte da Irlanda, republicano ou unionista, Celtic ou Rangers. O popular e o burguês poderão sempre coexistir, mas só no entendimento de que a diferença é um abismo. Kneecap entende isso e produz uma peça de comédia que, evitando uma ruptura mais clara, em linha com o ethos do grupo que retrata, faz da linguagem de classe a piada.

 

Hugo Dinis